Corpo Presente | Embaúba Filmes |
O cineasta veterano Leonardo Barcelos, resolveu embarcar, desta vez, na direção de outro documentário bastante experimental. O produtor apresenta “Corpo Presente”, filme com um tom bastante conceitual, que dialoga com as questões e pluralidades que nossos corpos podem representar na sociedade. Narrado e protagonizado pela atriz Ludmilla Ramalho, mas também com narrações de depoimentos citados em paralelo por alguns expoentes sociais brasileiros como Suely Rolnik, Ailton Krenak e Erika Hilton. O documentário é dividido em cinco atos, são eles: a pele, o outro, a natureza, as marcas e a expansão. E é a partir de cada um deles que destrincharei esse texto.
Ato 1 – A pele
“Busco saídas pra não ser
devorada no meio da cartografia que desenho”, Ludmilla comenta. Nesse primeiro
momento é possível perceber que a narradora expõe sobre as problemáticas das
cobranças que a sociedade impõe aos nossos corpos, principalmente no que tange
o feminino. Em um uma determinada cena, há uma personagem inteiramente coberta
com uma espécie de algodão enquanto outro personagem vai retaliando e moldando
a forma desta camada branca. Isso nos traz para um lugar onde analisamos sobre
como temos sempre padrões de beleza inalcancáveis e muitas vezes tentamos nos
moldar para chegar nesses parâmetros. Nossa matéria física é constantemente
inferida e julgada; nossos aspectos são reduzidos, quando, na verdade, simplesmente refletem a singularidade e a diversidade de quem somos como pessoa.
Ato 2 – O outro
“É só através do outro que posso
existir? Estou preso nessa imagem que fazem de mim e eles também? O mesmo
processo.”
Nesse ponto a personagem se
questiona como os outros são muitas vezes nossos espelhos e nos identificamos a
partir de outros corpos. No início do documentário, há um plano de uma cena bem
dirigida fotograficamente com um espelho numa praia de costas para o mar, como
se nós, espectadores, estivéssemos nos olhando nesse objeto. Entretanto, não há
reflexo de ninguém, apenas das ondas no mar desaguando na baía. Essas alegorias
tanto do espelho quanto do mar interrelacionam com os reflexos que temos como
ser humano e como o mar representa as infinitas possibilidades que podemos nos
enxergar de si mesmo, mas também no outro. A busca pela nossa identidade é
contínua, seja nos modos de nos expressarmos, como no modo de agir,vestir,
andar, falar, gesticular, etc.
Nossos comportamentos e
influências, muitas vezes, são pautados pelo outro, mas até onde vai esses
limites de comparação? É possível sermos nós mesmos sem estarmos o tempo todo
nos olhando a partir da percepção do “outro”? Sendo que provavelmente o “outro”
também pode estar seguindo o mesmo padrão. São questões que precisamos repensar
como indivíduos e discernir até que ponto devemos nos deixar ser enxergados por
outras pessoas e por opiniões que não nos cabem, nosso corpo é apenas uma
estrutura física de quem somos. Nossos pensamentos, ideias e personalidades
também fazem parte do nosso corpo, é preciso levar em conta esses fatores e não
nos limitarmos em relação ao interlocutor.
Ato 3 – A natureza
“A mulher é a matéria, o homem é
o verbo. O homem é uma ideia e a mulher um barro que deve ser moldada”
Neste ato, a protagonista discute
sobre a visão da mulher em relação ao homem, abordando sobre o viés machista e misógino
que a sociedade vive. O homem, na maioria das vezes, é visto como símbolo de
liderança e porta-voz, enquanto a mulher uma agente condescendente que deve
seguir as regras e os comportamentos ditados por ele. Isso pode ser comprovado
em diversos aspectos sociais, exemplo disso, é a questão que ocorreu
recentemente no novembro passado, na
Câmara de Brasília, onde vários deputados, na maioria homens, votaram a favor
da PEC 164 na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), com 35 votos
favoráveis contra 15 opositores, essa PEC em questão pode acabar com os
direitos das mulheres de interromperem gravidezes em caso de estupro,
anencefalia fetal e risco de morte da gestante, lei essa que já é outorgada no
5º parágrafo da Constituição Federal. Ou seja, são direitos de corpos femininos
que podem ser violados por opiniões ideológicas masculinas na esfera política.
Isso reflete em vários outros campos
da sociedade, onde a mulher é inferiorizada ou questionada pelos seus atributos
apenas por ser quem é, sem contar a grande taxa de feminicídio que o Brasil tem
anualmente. Enquanto os políticos em atividade poderiam estar trabalhando em
programas de combate à violência contra mulher que acontece em varias camadas
sociais, muitos estão simplesmente debatendo sobre a redução dos direitos das
mesmas.
Ato 4 – Marcas
“O corpo feminino tem essa
história de violência, de Aia […] O corpo fala e expõe conflitos, se dividem em
ideologias e preconceitos. Lembrar do corpo afro indígena que tem no Brasil. É
preciso lembrar da ancestralidade”.
A partir deste trecho é destacado sobre os corpos que sofreram violência no passado, principalmente em peles indígenas e africanas femininas. Durante esse ato, o documentário nos mostra cenas de corpos negros e de variados pesos. As mulheres, desde os tempos de colonização eram sujeitas a várias barbáries, inclusive o estupro. Elas sempre foram vistas como um corpo apenas de reprodução ou prazer carnal. Até os tempos atuais, é possível perceber essa herança ancestral de preconceito, e analisar como muitas vezes os corpos femininos são objetificados e violados.
Etnias
indígenas, quilombolas e outros grupos de raça negra têm um histórico de
exploração muito forte no país, o que acabou perpetuando em várias gerações
posteriormente. Além disso, os corpos negros são os que mais sofrem repressão atualmente.
Corpos negros femininos são muitas vezes sexualizados e estereotipados pela
população e precisamos como cidadãos desmitificar esses estigmas e reconhecer essa
violência propagada por nossos antepassados e promover discussões que viabilize
essas histórias, para que, de alguma maneira, tenhamos mais consciência sobre a
realidade que um corpo negro vive e já viveu no país. Não podemos ter memória
curta.
Ato 5 – A expansão
“Não há limites para o corpo. Ser
arquiteto da sua identidade. A construção do gênero é binária, uma cultura
antiga. Cada um pode estar no lugar onde quer. Transfobia. Esses corpos são
invisíveis. A sociedade precisa enxergar o lado deles. Dessa humanidade.”
A narradora expõe aqui sobre a
expansão dos corpos tradicionais, sobre a ilimitada possibilidade que os corpos
podem ser. Discute sobre como a sociedade desde os primórdios, implementou essa
cultura da binariedade e ao mesmo invisibilizou corpos não binários. É o caso
do preconceito com todos os grupos LGBTQIA+. Esses corpos sentem na pele todo
tipo de discriminação infringido sobre eles, em um instante do documentário é
mostrado um caso de violência que aconteceu com um corpo trans na vida real, registrado
em vídeo, e não aparecia ninguém prestando assistência; é uma impunidade
constante. São indivíduos que possuem inúmeras dificuldades para se inserirem
na sociedade e que lutam para ter o mínimo de respeito. Ao longo desse ato, é
possível ouvir em um trecho da deputada federal, Erika Hilton, que é travesti e,
está sendo porta-voz em um discurso que parece ser em uma tribuna, reafirmando
e conscientizando sobre a justiça e liberdade desses corpos trans.
Mesmo com tanta informação, dados
científicos, pesquisas, etc., ainda é possível visualizar o quanto a população
está longe de legitimar esses corpos. Exemplo disso, são as pesquisas de taxas
que revelam que o Brasil é um dos países que mais matam pessoas trans no mundo.
É uma luta constante que esses grupos enfrentam para serem reconhecidos e
validados.
Acredito que o documentário poderia
esclarecer melhor as identidades das personalidades que possuem citações, as
quais são ouvidas em paralelo. Não é mostrada nenhuma imagem desses ícones,
tampouco legendas para o espectador. Nem todo mundo tem consciência de quem são
esses expoentes, como Suely Rolnik que é uma grande escritora e psicanalista,
Ailton Krenak, um indígena e ambientalista dos mais respeitados do país, e
claro, Erika Hilton, uma política muito eloquente que luta pelos direitos
humanos na Câmara dos Deputados. Não há como reconhecer todos apenas por suas
vozes. Creio que faltou um didatismo nesse tópico, pois temos interesse em
saber quem está falando para podermos associar com a causa.
Em questão da narrativa, em alguns momentos, achei cansativa. Poderia ter um ritmo mais fluído na edição dos atos. A fotografia é muito bem trabalhada. Sobre as representações dos corpos nus, achei muito potente essa liberdade que o documentário buscou e mostra de forma crua e artística a diversidade de todas nossas matérias físicas.
Autor:
Meu chamo Leonardo Veloso, sou formado em Administração, mas tenho paixão pelo cinema, a música e o audiovisual. Amante de filmes coming-of-age e distopias. Nas horas vagas sou tecladista. Me dedico à exploração de novas formas de expressão artística. Espero um dia transformar essa paixão em carreira, sempre buscando me aperfeiçoar em diferentes campos criativos.
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