quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Lispectorante – A salvação é pelo risco

Lispectorante | Aroma Filmes

 

Participante da Premiére Brasil do 26º Festival do Rio, Lispectorante conta a história de Glória, uma artista plástica desempregada que passa por um momento de crise existencial em sua vida, e se apoia nas obras de Clarice Lispector, assim como uma nova amizade e romance com o andarilho Guitar, como um mecanismo de fuga da sua nova realidade opressora e desinteressante.

A obra traz à tona um sentimento de retorno da ideia de cinema de atrações, onde o espetáculo e as conquistas criativas visuais são mais importantes e mais evidentes do que qualquer sentido de contexto e da história em si, percepção que se sustenta também pela escolha de grading que destaca o vermelho, azul e verde, primeiras cores do cinema e muito usadas como deslumbre visual na época.  A direção de Renata Pinheiro é ousada e criativa, onde ao retratar a imaginação da personagem Glória, não tem medo de criar ambientes fantásticos e usar recursos visuais de iluminação que não são vistos normalmente no cinema brasileiro, se destacando nesse sentido. 

Os pontos altos do filme são a interpretação de Marcélia Cartaxo, que entrega a personagem Glória com paixão e profundidade, se mostrando extremamente carismática e única, e as sequências de sonho protagonizadas por Grace Passô, alter-ego fictício interno de Glória, que ilustram ludicamente os eventos vividos por ela no decorrer de sua história, em um cenário de uma banca de jornal remanescente em um Brasil apocalíptico, que de acordo com relatos da própria diretora se inspira nos eventos e sentimentos trazidos pela pandemia global de Covid-19.

Porém os pontos altos não são capazes de se manterem de pé sozinhos, com um roteiro que mal explora as próprias possibilidades, e tenta contar diversas histórias ao mesmo tempo, sem nunca se preocupar em concluir nenhuma, quase como se existissem muitas ideias e objetivos que os autores queria trazer para o filme, mas não foram capazes de abrir mão de algumas delas em prol de uma boa e instigante narrativa.

Em determinado momento, Guitar, também muito bem interpretado por Pedro Wagner, diz que ele e seus amigos tinham uma banda chamada “Lispectorante”, na qual as letras de suas músicas eram apenas os textos de Clarice Lispector traduzidas para uma língua estrangeira, depois para outra, para então ser retraduzida para o português e ver que tipo de resultado tal brincadeira traria, resultando em um monte de palavras desconexas, mas que, de alguma forma, funcionava. Tal momento consegue metalinguisticamente descrever o resultado do filme em si, que funciona, contendo seu começo meio e fim, mas que ao tentar ser muitas coisas simultaneamente, acaba por não se definir de fato.

Sendo assim, Lispectorante acaba por ser uma experiência estética corajosa e uma jornada de autoconhecimento para a protagonista, mas, ao mesmo tempo, provoca no espectador uma ambiguidade narrativa incômoda. O filme é uma obra que se propõe a ser um mosaico de sensações e interpretações, arriscando-se ao abordar a complexidade da experiência humana. Embora sua trama dispersa e inconclusiva possa causar certa frustração, também pode ser vista como uma característica que aproxima o filme das reflexões que fazemos das obras que consumimos, e nesse caso encarar que vez ou outra não são necessárias respostas claras, pois o valor da obra está na experiência sensorial e no convite à introspecção, e é através desse risco que o filme em si tenta se salvar.

Autor:


Henrique Linhales, licenciado em Cinema pela Universidade da Beira Interior - Covilhã, Portugal. Diretor e Roteirista de 6 curta-metragens com seleções e premiações internacionais. Eterno pesquisador e amante do cinema.

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