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sábado, 11 de outubro de 2025

A Useful Ghost (2025) é uma fábula excêntrica e desafiadora

A Useful Ghost (2025) | Pandora Filmes

No centro de uma cidade tailandesa, supomos que seja Bangkok, vários monumentos históricos são retirados para a construção um novo empreendimento que, supostamente, levaria o desenvolvimento econômico daquela região. Não obstante, a cidade é coberta por uma constante poeira. Perto dali, uma pesquisadora Ladyboy (Wisarut Homhuan), identidade de gênero que engloba pessoas trans, não binares e andrógenas, decide comprar um aspirador de pó em uma loja, mas descobre que durante a noite o aparelho tosse e espalha mais poeira. No dia seguinte, chega Krong (Wanlop Rungkumjad) para reparar o utensilio e ele revela à pesquisadora sobre um caso parecido...

Após a trágica morte de Nat (Davika Hoorne) por causa da poluição, seu marido, March (Witsarut Himmarat), é consumido pela dor. Mas a vida dele vira de cabeça para baixo ao descobrir que o espírito da mulher reencarnou num aspirador. O laço entre eles se reacende, mais forte do que nunca. Mas isso não agrada a todos, em particular à família de March, dona de uma fábrica, que rejeita a relação sobrenatural. Para provar sua lealdade, Nat se oferece para limpar a fábrica e provar que é um fantasma útil, mesmo que isso signifique livrar-se de algumas almas perdidas, em prol de terceiros.

A Useful Ghost (e sim, aparentemente o título deverá ficar assim no Brasil até segunda ordem) é o longa-metragem de estreia do diretor Ratchapoom Boonbunchachoke, que ganhou o prêmio principal da Quinzena dos Realizadores no Festival de Cannes desse ano. Á princípio, o filme é uma comédia excêntrica de costumes tailandês a um ponto que beira ao absurdismo. Porém, apesar da sinopse curiosa, a obra esconde camadas muito fascinantes, reveladas aos poucos.

Como o objeto em que o fantasma de Nat possuí causa um estranhamento, a relação entre ela e March desafia as convenções tradicionais da sociedade. A mãe de March, Suman (Apasiri Nitibhon), age contra a união de pós vida e ainda é pressionada por outros familiares para separá-los. Ela não mede esforços: proíbe Nat de sua casa, tenta exorcizá-la com ajuda de um monge e até mesmo faz ela ser presa pela polícia por não ter o consentimento de habitar uma propriedade de sua empresa. Quando tudo isso não funciona, Suman submete March a uma terapia de eletrochoque com a finalidade dele esquecê-la. (Inclusive, o cenário em que as sessões de "eletro" acontecem tem uma beleza geometricamente brutal e sem vida.)

 Apesar de Nat e March serem um casal hétero cisgênero, o relacionamento deles é codificado na narrativa como queer. Ela é vista para a maioria das pessoas, menos por seu marido, como um aspirador de pó e sofre preconceitos da família, instituições religiosas e do próprio estado, este último quando é impedida de visitar o esposo no hospital à noite; e ela é constantemente humilhada e tratada como uma degenerada. Enquanto isso, March é torturado com eletrochoque numa espécie de "terapia de conversão", o que foi (e em alguns lugares isso ainda ocorre infelizmente) uma forma de violência física e psicológica contra pessoas LGBTQIAPN+ e enquadrá-las dentro do padrão da vivência heteronormativa.

 A partir dessa violência psicológica, Nat faz um acordo com Suman para ajudá-la com uma situação na fábrica, envolvendo um fantasma de uma gay vingativa, um ex-funcionário que faleceu durante o expediente e agora assombra o local, pondo a empresa em um grande prejuízo fiscal. Após ser bem-sucedida nesta questão, outros olhos se voltam para as habilidades práticas de Nat para fins mais nefastos. 

 Boonbunchachoke constrói uma fábula que se desenvolve em algo a mais; por trás da ironia e comédia de valores, há uma inquietação do realizador sobre as relações de classe e poder na sociedade tailandesa. Apesar de ser visto no ocidente como um paraíso asiático, o país tem uma história violenta, na qual o governo tenta apagar da memória coletiva. Não é o primeiro filme que fala sobre isso, afinal Apichatpong Weerasethakul já abordou o tema de forma onírica em seu Cemitério do Esplendor (2015). Aqui, a relação entre política e memória é mais escrachada e direta. Pessoas são torturadas para esquecer os fantasmas do passado para a conveniência de uma política neoliberal, retirando da população um direito fundamental: a memória.

 É neste ponto em que as duas linhas narrativas do filme - Ladyboy e Krong, Nat e March - se convergem. Se a parábola compartilhada pelo primeiro casal fala sobre os perigos e da violência do poder a uma população, o segundo precisa exercer a memória afetiva de um tem pelo outro para continuarem juntos. Sem isso, a história que uma pessoa carrega dentro de si é perdida para sempre.

 A Useful Ghost se baseia de sua sensibilidade queer e camp para demonstrar um problema maior e persistente dentro de uma sociedade que se recusa a olhar para trás, confrontar seus legados e traumas. Uma obra que convida a rir do ridículo e depois dá um tapa na cara da hipocrisia e da moral. Boonbunchachoke conduz seu público por caminhos diversos e inesperados. É uma fábula excêntrica e desafiadora para seu contexto. Uma grata surpresa. Um dos melhores filmes do ano até agora.

 *Esta crítica faz parte da cobertura do 27o Festival do Rio, realizado em 2025.

Autor:
                                  

Eduardo Cardoso é natural do Rio de Janeiro, Cidade Maravilhosa. Cardoso é graduado em Letras pela Universidade Federal Fluminense e mestre em Estudos de Linguagem na mesma instituição, ao investigar a relação entre a tragédia clássica com a filmografia de Yorgos Lanthimos. Também é escritor, tradutor e realizador queer. Durante a pandemia, trabalhou no projeto pessoal de tradução poética intitulado "Traduzindo Poesia Vozes Queer", com divulgação nas minhas redes sociais. E dirigiu, em 2025, seu primeiro curta-metragem, intitulado "atopos". Além disso, é viciado no letterboxd. 

terça-feira, 7 de outubro de 2025

Queens Of The Dead (2025) - Uma homenagem imperfeita

Queens Of The Dead (2025) | Imovision

Uma caminhoneira, uma drag queen, uma gay padrão, uma mulher trans entram em um bar… Parece até mesmo uma piada pronta. Meio manjada, talvez? A RuPaul riria se alguma queen fizesse essa piada no Drag Race, bem provável. Porém, além disso, o que aconteceria nesse cenário com essas personagens durante uma infestação zumbi? Essa é a premissa de Queens Of The Dead (2025), filme de Tina Romero que contará com distribuição da Imovision no Brasil.

A diretora do longa é filha de George A. Romero, cineasta que popularizou a figura do zumbi, ou morto-vivo, no cinema de terror com dois filmes fundamentais: A Noite dos Mortos Vivos (1968) e Despertar dos Mortos (1978). São filmes revolucionários na história do horror, não só um subgênero foi criado e deixou sua marca no imaginário popular, mas também as narrativas eram metáforas para problemas socioeconômicos da sociedade como o racismo e o capitalismo desenfreado. 

Além disso, o cinema de terror, em geral, tem a capacidade de atrair um público LGBTQIAPN+ fiel, já que as metáforas sobre a monstruosidade e o medo do diferente ressoam com as experiências individuais da comunidade. Portanto, é bastante oportuno realizar um filme que dialoga com o universo de Romero para um público queer

No longa, Dre (Katy O’Brien) é uma promoter em crise de uma boate no cenário club kid do Brooklyn, cuja nova empreitada para seus negócios é uma festa encabeçada pela influencer Yasmine (Dominique Jackson) e o retorno da drag Samoncé (Jaquel Spivey), também chamada “out of drag” de Sam, que havia abandonado aos palcos por uma crise de pânico. Porém, tudo muda com a erupção de um apocalipse zumbi e o grupo eclético de personagens, de diferentes bolhas da comunidade, deve “superar suas diferenças” em meio a adversidade que o cerca. 

Tina Romero acerta em configurar um filme como uma comédia de terror, mirando no em uma leitura queer camp. Romero consegue construir o set up de cenários e situações de forma satisfatória: o som dos sintetizadores, o uso de cores neon vivas na iluminação, o clima atmosférico da entrada de um morto-vivo em cena; sua direção consegue estabelecer bem a situação central e não tem medo do ridículo, seja drag queens fazendo cruising em uma igreja, ou seja um casal de influencers oportunistas, ou seja um personagem atirando um machado em um zumbi e errando o alvo em outra pessoa, ou seja por ratazanas ou bebês zumbis. São situações exageradas que conseguem ser honestamente divertidas.

Romero amplia a metáfora do consumismo herdada de seu pai para a era das redes sociais em que a população está cada vez mais viciada nas vidas das blogueiras e influenciadoras e em sua relação parassocial, que tanto é vista como alienadora quanto parasitária. As aparências viram o entretenimento das massas, portanto essas figuras possuem um valor monetário, corpos que lucram pela própria existência e imagem. No caso em específico de pessoas LGBTQIAPN+, elas representam um status de progressão social e são usadas como tokens ambulantes por pessoas de fora da comunidade. O roteiro também toca na concepção do “fracasso queer” que atravessa as personagens e este é o principal ponto que as une em um momento crítico em especial. 

Se em sua temática, Queens Of The Dead consegue atualizar o conceito do universo através de uma sátira descarada, a narrativa não consegue dar um arco dramático a suas personagens.  

O filme tem bons performers em seu elenco como O’Brien (de Love Lies Bleeding), Spivey (da versão musical de Mean Girls), Nina West (de Drag Race), Jack Heaven (de I Saw The TV Glow), a comediante Margaret Cho e Dominique e Cheyanne Jackson (não são parentes!), entre outros; mas seus personagens são escritos de forma tão unidimensional, que a maioria não sustenta uma virada dramática. Talvez o arco que funcione mais e a relação entre as personagens de Spivey e West e o dilema entre Sam, a pessoa pública, e Samoncé, a drag queen. Apesar disso, a atriz e ícone Dominique Jackson rouba a cena do filme ao interpretar uma versão caricata de si mesma (e ainda estarei aplaudindo de pé e com um leque na mão).

Apesar de suas falhas ou ideias que não dão tão certo, Queens Of The Dead é um filme que mistura o trash e o camp, o sangue com o glitter, o drama com o absurdo em que, por uma ironia, um death drop pode ser fatal. Em suma, assim como as queers fracassadas de sua trama, é uma homenagem imperfeita e não há nenhum problema nisso.

*Esta crítica faz parte da cobertura do 27o Festival do Rio, realizado em 2025.

Autor:
                                  

Eduardo Cardoso é natural do Rio de Janeiro, Cidade Maravilhosa. Cardoso é graduado em Letras pela Universidade Federal Fluminense e mestre em Estudos de Linguagem na mesma instituição, ao investigar a relação entre a tragédia clássica com a filmografia de Yorgos Lanthimos. Também é escritor, tradutor e realizador queer. Durante a pandemia, trabalhou no projeto pessoal de tradução poética intitulado "Traduzindo Poesia Vozes Queer", com divulgação nas minhas redes sociais. E dirigiu, em 2025, seu primeiro curta-metragem, intitulado "atopos". Além disso, é viciado no letterboxd.

O Estrangeiro (2025) toma um sol de matar

O Estrangeiro (2025) | Gaumont

O Estrangeiro é um romance de Albert Camus, publicado em 1942 pela Gallimard, cuja trama se passa durante a colonização da Argélia pela França, ainda no século XX. O livro contém um teor psicológico, contado em primeira pessoa. O narrador, Meursault, um colono francês comete um crime contra um nativo e cabe a justiça se deve sentenciá-lo ou não. 

A obra se tornou um clássico da literatura ocidental. A estória foi adaptada para o cinema duas vezes: uma em 1967, Il Straniero, dirigida por Luchino Visconti e estrelada por Marcelo Mastroianni; e a outra é uma adaptação turca, Yazgı, lançada em 2001. A influência de Camus atingiu o imaginário popular e também abrangeu diversas artes e mídias ao longo dos séculos, como na música Killing an Arab da banda The Cure (que toca durante os créditos do filme de 2025). 

François Ozon, um dos mais prolíferos diretores franceses da atualidade, lançando novos projetos quase anualmente a esse ponto, é o diretor dessa nova versão que estreou no Festival de Veneza deste ano. Tendo em mente da responsabilidade de adaptar um texto icônico, o realizador opta em um releitura que explicita a tensão entre os colonos europeus e o nativos árabes, antes da guerra da Argélia, sem abrir mão do seu queer gaze.

Benjamin Voisin é Meursault, um jovem e taciturno colono francês na Argélia dos anos 30. Ele trabalha em um escritório e tem uma vida muita pacata, muito protocolar e essa rotina muda quando recebe um telegrama que sua mãe faleceu no asilo. Ele vai até o local onde acontece a vigília, mas nunca demonstra as típicas reações de alguém em luto, o que deixa algumas pessoas desconfiadas. 

Ao retornar, Meursault se esbarra em Marie (Rebecca Marder), uma antiga paixão, que reata com ele e Sintès (Pierre Lottin), um amigo e vizinho de prédio, que o arrasta para seus problemas pessoais, que envolve uma nativa local, Djemilla (Hajar Bouzaouit), e seu irmão. Após um evento, em uma praia, em que o irmão de Djemilla vai atrás de Sintès para tirar satisfações, Meursault, ao ver esse nativo com uma faca, atira a queima-roupa, matando o jovem.

Ozon estabelece bem a atmosfera e o ambiente em que a narrativa se passa, recriando com uma Argélia segregada ora pela política de colonizadora ora pelas questões culturais entre franceses e nativos; uma vez que os árabes da narrativa, apesar de presentes pelas ruas, estão ausentes em prédios públicos e áreas de lazer, reservadas somente para os colonos, evidenciando a política racista europeia. A personagem de Djemilla até mesmo denuncia, de modo bem sutil e claro, o absurdo deste projeto colonial. Aqui, mesmo não tendo o protagonismo da estória, os colonizados tem nome e voz e sabem que são invisibilizados pelo poder colonial.

Se os colonizadores ditam as regras sociais, a natureza é diferente. Meursault passa boa parte do tempo de tela ou coberto de suor ou se refrescando no mar. O sol o persegue. Seu corpo transpira como precisasse de fôlego. A protagonista ocupa um solo do qual não pertence e sente o presságio da natureza, rejeitando a presença dela. Existe um sufoco, um cansaço do qual ele se aliena, pois é contrário a ideia de retornar a Paris com convicção, ao mesmo tempo que complacente com o pensamento colonial. O mundo é um parque de diversões, um lugar exótico do qual não há uma familiaridade. Um observador ao seu bel-prazer. 

Além disso, Meursault está a procura de algo que não pode ter: seja uma nova figura materna em seu inconsciente - já que sempre fita mães e mulheres mais velhas acompanhadas de seus filhos -, seja pelo desejo carnal - tanto pela figura de Marie, uma moça disposta a casar com ele, quanto por uma atração por um nativo, que logo, torna-se uma repulsão de seus instintos sexuais. (A vontade de lamber uma axila peluda também pode matar, tá bom?) Como alguém tão direto, tão apático, pode ter uma dualidade da qual não a compreende? 

Ozon dá sua própria leitura à narrativa em que consegue, ao mesmo, triangular existencialismo, alteridade e tensão sexual, ainda que recriando a estrutura narrativa de Camus. A fotografia do filme em preto e branco é suntuosa. O diretor filma os corpos de suas personagens com aquela volúpia preguiçosa de verão, e com gosto, em composições maduras. O elenco é um sabor à parte. Voisin tem uma performance esplêndida como a protagonista niilista: a postura serena, o olhar lânguido e vazio de emoção, a energia de twink soberbo; enquanto outros personagens são mais expressivos ou causam impacto, como as participações especiais de Denis Lavant, como um vizinho viúvo de Meursault, e de Swann Arlaud, como um padre (gostoso) que tenta "convertê-lo" a "fé" cristã.

O Estrangeiro é uma adaptação sedenta cuja leitura do material original é amplificada para uma interpretação que evidencia o contexto original da obra e os traumas da herança colonial dos povos nativos. Um incômodo... tal como um corpo transpirado de suor e sem ar num dia de sol escaldante. O sol na cabeça queima a visão. E sem visão, somente resta a hamartia.

*Esta crítica faz parte da cobertura do 27o Festival do Rio, realizado em 2025.

Autor:
                                  

Eduardo Cardoso é natural do Rio de Janeiro, Cidade Maravilhosa. Cardoso é graduado em Letras pela Universidade Federal Fluminense e mestre em Estudos de Linguagem na mesma instituição, ao investigar a relação entre a tragédia clássica com a filmografia de Yorgos Lanthimos. Também é escritor, tradutor e realizador queer. Durante a pandemia, trabalhou no projeto pessoal de tradução poética intitulado "Traduzindo Poesia Vozes Queer", com divulgação nas minhas redes sociais. E dirigiu, em 2025, seu primeiro curta-metragem, intitulado "atopos". Além disso, é viciado no letterboxd.

segunda-feira, 15 de setembro de 2025

Rosário - Um terror, 200 contas de terço e uma hora e vinte oito minutos que parecem não ter fim

Rosario | Imagem Filmes


Rosário (Emeraude Toubia), uma jovem latina e bem-sucedida funcionária de uma empresa de investimentos em Nova Iorque, recebe uma ligação informando sobre a morte de sua avó. Ao atender, o porteiro do prédio informa que, por ser uma imigrante ilegal, o corpo dela será levado para um hospital qualquer e pode desaparecer no sistema. Determinada a evitar isso, Rosário decide ir ao apartamento da avó para ficar com o corpo até a chegada da ambulância. É quando coisas sinistras começam a acontecer.

Rosário, dirigido por Felipe Vargas, começa com uma premissa interessante: a urgência de uma jovem presa em um local isolado com o corpo de sua avó enquanto eventos terríveis se desenrolam. Essa situação inicial cria uma tensão palpável, capturando a atenção nos primeiros minutos. No entanto, a inspiração do filme parece esgotar-se rapidamente, e a obra se rende a jumpscares e flashbacks excessivamente expositivos.

Apesar do potencial do prédio abandonado e do apartamento bizarro, a direção falha ao tornar a experiência previsível. O cenário excessivamente claro e o filtro verde constante tornam as cenas visualmente exaustivas, prejudicando a atmosfera de terror que o filme tenta construir. A montagem acelerada é um dos principais pontos fracos, pois não permite que os eventos causem o impacto necessário no espectador. A falta de um verdadeiro senso de risco para a protagonista, Rosário, faz com que o público não tema por ela, tornando a narrativa desinteressante.

O filme busca, também, abordar a experiência traumática da imigração ilegal, ligando os eventos sobrenaturais à travessia da fronteira. Contudo, essa proposta acaba sendo superficial, pois a obra não aprofunda questões culturais e religiosas que permeiam a vida de imigrantes. O roteiro tenta criar elos entre o sobrenatural e o passado familiar, expandindo a história para além da relação entre avó e neta. No entanto, essa escolha se perde ao não aprofundar de fato em nenhuma das relações, diluindo a força emocional do enredo.

Em suma, Rosário é um filme ambicioso que falha na execução. Ele tenta ser muitas coisas, mas a falta de consistência na direção, a montagem problemática e o roteiro superficial o impedem de sustentar sua premissa. O filme acaba se tornando um exemplo de como uma ideia promissora pode ser sacrificada em favor de artifícios como o bom e velho jumpscare, deixando de lado a oportunidade de construir um terror psicológico mais significativo.



Autor:


Mateus José é graduando de Licenciatura em Cinema e Audiovisual pela UFF, escritor, poeta, montador e aspirante a diretor de fotografia. Apaixonado pelas artes, literatura, música e principalmente o cinema, dedica-se a consumir, estudar e dissecar as camadas mais profundas do cinema e da arte.

segunda-feira, 25 de agosto de 2025

Anônimo 2 (2025) - Recalcula a rota

Anônimo 2 | Universal Pictures


Nem todos os filmes são considerados de primeira classe e está tudo bem. Nós, como espectadores, precisamos ver filmes B para distrair a cabeça ou ajudar na nossa dissociação diária. E tal como os filmes prestigiados, filmes B, seja de qualquer gênero narrativo, tem o seu valor. Porém o maior pecado que pode acometer uma produção desse porte é uma crise de identidade. Esse foi o caso do primeiro filme da franquia Anônimo, estrelado por Bob Odenkirk.

O longa-metragem foi lançado em 2021, durante o período de reabertura dos cinemas por causa da Covid-19. A produção tem o dedo da 87North, a mesma produtora da franquia John Wick: Derek Kolstad assina o roteiro e David Leitch, junto com Odenkirk, assume o cargo de produtor.

A premissa é clara. Um zé ninguém vive sua vidinha pacata junto de sua rotina entediante. Ele está preso em um ciclo sem fim. Quando um roubo acontece em sua casa e todos o veem como um pateta, esse mesmo homem acaba se envolvendo, em episódio de raiva, numa briga com um bando de jovens russos arruaceiros dentro de um ônibus. A partir desse ponto, nós, enquanto audiência, descobrimos que ele é um ex-agente e assassino da CIA com “habilidades especiais” e um dos jovens, que fica gravemente ferido, é o filho de um chefão da máfia. E esse mafioso vai querer retribuir o favor…

Se fizermos um exercício de memória coletiva e lembrarmos da sinopse do primeiro filme de John Wick, a premissa é quase idêntica.  Porém, ao invés do viúvo atlético de Reeves, temos a personagem de Bob Odenkirk, que é tratado pelo filme como um homem emasculado; principalmente pela sua esposa, que assume um papel mais ativo na família: há um plano muito específico no início do filme que marca essa posição de superioridade e inferioridade entre o casal. No entanto, apesar de ser bastante direto ao ponto, o roteiro de Kolstad se demonstra muito empobrecido de nuance com suas personagens. Quer tocar em uma psicanálise que nunca chega ao ponto que deseja. E a direção não ajuda muito com tom frio e seco, diminuindo o humor e a ironia presente no trabalho do roteirista. 

O primeiro filme tinha alguns planos e sequências interessantes, mas flertava com a cultura incel e deixou um gosto reacionário, bem amargo na boca. Era um lado B de John Wick, mas sisudo, sem o olhar que eleva a franquia rival. Mas, para a felicidade de todes envolvides, a produção foi bem de crítica e de público e Bob Odenkirk tinha agora uma franquia de ação para chamar de sua. E quatro anos após, veio a sequência do longa de 2021.

Dirigido por Timo Tjahjanto, Anônimo 2 (2025) acompanha Hutch Mansell (Bob Odenkirk), após voltar a trabalhar como assassino profissional, em sua nova rotina. Seu retorno à essa linha de trabalho se dá pela dívida que contraiu do submundo no episódio anterior. Ele e sua esposa, Becca (Connie Nielsen), estão sobrecarregados e a distância que havia entre eles voltou e está os separando novamente. 

Ao sentir que o seio familiar está cada vez mais desunido, Hutch decide levar a família toda a uma cidadezinha, em que há um parque temático, para uma pequena viagem de férias. É um local em que ele teve ótimas lembranças com o pai (Christopher Lloyd) e o irmão (RZA). No entanto, quando um encontro trivial com valentões locais, Hutch coloca a família na mira do dono do parque (John Ortiz), um xerife corrupto (Colin Hanks), e uma chefe do crime (Sharon Stone).

Se o primeiro filme é uma criação de uma nova franquia de ação, este segundo serve mais para fazer a manutenção das ideias do que expandir a narrativa à diante. O roteiro de Kolstad, que retorna para o projeto, usa da fórmula da obra anterior de novo: rotina incansável, relação entre Hutch e Becca instável, um evento que quebra a rotina da família, Hutch se envolve em um conflito violento, os antagonistas vão atrás do assassino em um vai-e-volta que culminará em um combate final à la “Esqueceram de Mim”...

Porém, com o tempo vem a sabedoria. Kolstad consegue, mesmo dentro de sua idiossincrasia já estabelecida, recalcular a rota. Aqui, temos uma narrativa que emula as tramas clássicas de filmes de ação dos anos 80 e 90, como a de um forasteiro que acaba criando uma rusga com os valentões de uma cidade do interior; e abraça um viés absurdista de sua situação, dando tanto ênfase no humor quanto nos momentos de ação. Se essa qualidade estava nas entrelinhas do anterior, aqui está mais explícito.  O mundo masculino desse universo tem sua expressão carrancuda transformada em uma paródia de si. Tal mudança de tom é bem-vinda, já que se trata de uma fantasia cheia testosterona com requintes de violência e crueldade e seu herói, uma figura altamente capaz, porém, ao mesmo tempo, patética.

Tjahjanto, ao contrário de Ilya Naishuller, diretor do primeiro filme, abraça o lado galhofa da narrativa e não tem medo do filme ser considerado straight camp por parte dos espectadores. Além disso, a decupagem das cenas de ação é fluída, como sangue, e de forma mais consistente. O diretor consegue imitar o jogo de planos e os movimentos de câmera que são parte essencial de filmes de ação como a já mencionada franquia John Wick, pois põe em evidência o trabalho de performance dos dublês da produção. Lembrem-se que, antes de se tornar diretor, David Leitch era coordenador de dublês em várias produções de Hollywood, e claro que, em uma produção dele, não poderia faltar um competente trabalho neste quesito.

Os filmes da franquia Anônimo, em seu âmago, servem para catapultar Bob Odenkirk, ator cômico e dramático, como um astro do cinema de ação. Aos 62 anos, o ator demonstra, em ambos os longas, uma agilidade e condicionamento físico bastante disciplinado. Neste novo capítulo, o Hutch de Odenkirk está, de fato, completamente humanizado, admite que tem problemas de raiva, apesar do filme tratá-lo como uma máquina de matar; muito diferente da personagem mecanizada que havíamos conhecido anteriormente, mas tão vigoroso quanto outrora.

Christopher Lloyd e RZA, que fizeram pontas no longa de 2021, respectivamente, como pai e irmão de Hutch, voltam para esta nova parte e roubam a cena nos momentos em que aparecem. Já a personagem de Connie Nielsen é mais explorada aqui e possui uma agência maior do que no longa anterior. O relacionamento dela com Hutch se torna parte central da narrativa, pois  o desgaste de seu relacionamento é mútuo, e não mais unilateral. Eles estão na mesma posição, em lados espectros. Nielsen já havia expressado anteriormente que gostaria de revisitar e desenvolver a sua Becca e, aqui, ela consegue fazer isso.

Do novo elenco, destaco dois personagens: o xerife de Colin Hanks, uma pessoa mesquinha e de má índole, que antagoniza com Hutch logo à primeira vista. Tal antagonismo possuí (na minha leitura) um queer coding do modo em que os planos são decupados, os olhares perdidos, a agressividade hiper-masculina e irracional, a posição de figuras fálicas entre as personagens: o tipo de performance de gênero que dá volta e ganha outras conotações. 

E a mafiosa Lendina de Sharon Stone, que parece estar se divertindo em tela. Uma personagem deliciosamente camp: expansiva, debochada, desnecessariamente cruel e de vez em quando fica dançando e dissociando do absoluto nada. Ela manipula o dono do parque (que por algum motivo narrativo também o prefeito da cidade) a fazer parte de seu esquema de contrabando. A razão para isso? Porque ela gosta. Faz sentido? Não; mas quem se importa a esse ponto? Mesmo com o pouco tempo de tela, Stone tem o carisma para vender a ideia de sua personagem em segundos.

Apesar da produção deste longa-metragem ter feito a escolha segura e sem sair muito de sua zona de conforto, sem nenhum desenvolvimento de universo, o ângulo de sua mira é um pouco diferente, e talvez para melhor. Ao assumir a identidade de um filme B de ação, Anônimo 2 torna-se um filme divertido de se assistir, sem pretensões que o traía a longo prazo. Agora, pelo menos, é um filme com personalidade. Não se preocupe, o Hutch não vai atrás de você e queimar seu dinheiro, se discordar dessa opinião.


  Autor:
                                  

Eduardo Cardoso é natural do Rio de Janeiro, Cidade Maravilhosa. Cardoso é graduado em Letras pela Universidade Federal Fluminense e mestre em Estudos de Linguagem na mesma instituição, ao investigar a relação entre a tragédia clássica com a filmografia de Yorgos Lanthimos. Também é escritor, tradutor e realizador queer. Durante a pandemia, trabalhou no projeto pessoal de tradução poética intitulado "Traduzindo Poesia Vozes Queer", com divulgação nas minhas redes sociais. E dirigiu, em 2025, seu primeiro curta-metragem, intitulado "atopos". Além disso, é viciado no letterboxd.

sexta-feira, 21 de março de 2025

Branca De Neve (2025) - Espelho, Espelho Meu, Quem É a Vilã Menos Intensa de Todas?

Branca de Neve | Disney


Inspirado no conto clássico dos Irmãos Grimm, Branca de Neve ganha uma nova adaptação live-action da Disney. A história acompanha a jovem princesa Branca de Neve (Rachel Zegler), cuja beleza desperta a inveja de sua madrasta, a Rainha Má (Gal Gadot). Determinada a eliminar a enteada, a vilã ordena sua morte, mas Branca de Neve consegue escapar e se refugia na floresta. Lá, encontra uma cabana onde vivem sete anões amigáveis, que a acolhem e se tornam seus aliados. No entanto, o perigo ainda ronda a princesa, pois a Rainha Má tem um plano cruel para eliminá-la de vez: uma maçã envenenada.

Nos últimos anos, a Disney tem investido fortemente em remakes live-action de seus clássicos animados, lançando adaptações bem-sucedidas, como Cinderela, Mogli e Aladdin. No entanto, nem todas as produções entregaram o que se esperava, como foi o caso de Mulan e O Rei Leão. É importante destacar que, embora O Rei Leão não seja tecnicamente um live-action, mas uma animação hiper-realista, ele se insere nesse movimento de revisitar obras anteriores da Disney. Agora, a companhia nos apresenta a versão live-action de um filme que muitos consideram o primeiro longa-metragem animado da história do cinema. Contudo, essa afirmação não é totalmente precisa: o filme em questão não foi o primeiro, nem o segundo, ou o terceiro. Embora tenha um papel fundamental tanto na história do cinema quanto no universo das animações, ele é, de fato, o primeiro longa-metragem animado da Disney.

A história, ao contrário da animação original, apresenta a infância da protagonista, explorando a origem de seu nome, que dá título ao filme, e revelando os eventos que marcaram o destino de seus pais. Dando a minha opinião um pouco controversa, a princesa da animação clássica nunca foi a minha princesa favorita, pois eu a achava muito sem sal, ela sempre me pareceu um tanto insípida, sem grandes características marcantes que a diferenciam de outras personagens femininas que a Disney criou mais tarde. Sua personalidade parecia ser bem passiva e, em muitos momentos, ela parecia depender mais da sorte ou da intervenção de outros personagens, como os animais ou os anões, do que agir de maneira autônoma para conquistar seus objetivos.

Ao contrário de outras princesas que mostravam coragem, inteligência ou habilidades únicas, ela parecia ser mais uma figura idealizada de "bondade pura", o que, embora positivo, a tornava um pouco monótona. princesa ganha muito mais carisma porque a personagem é construída de forma mais tridimensional, com mais espaço para expressar suas emoções e motivações. A atuação da atriz, muitas vezes mais madura e com nuances de personalidade, permite que a personagem se torne mais complexa e convincente.

Além disso, o filme live-action frequentemente explora mais a sua história, seus conflitos internos e suas escolhas, o que a torna mais ativa na narrativa, ao invés de ser apenas uma figura passiva à mercê dos acontecimentos. Essa versão também tende a humanizá-la mais, mostrando vulnerabilidades, dúvidas e momentos de autodescoberta que não eram tão evidentes na animação original. A protagonista no live-action se envolve mais diretamente nas situações, mostrando uma força emocional que conquista o público. Ao contrário da animação, onde sua personalidade podia parecer unidimensional, o live-action dá mais camadas à personagem, fazendo com que ela tenha suas próprias motivações e ações, o que naturalmente adiciona mais carisma.

Os sete anões, que chegaram a causar uma verdadeira polêmica na internet antes do lançamento do filme, são completamente criados em CGI, o que gerou bastante receio por parte dos fãs. Embora a escolha de utilizar tecnologia de animação digital para criar essas personagens não seja, de fato, um erro técnico ou criativo, é inegável que há algo um pouco estranho na forma como eles interagem com os atores de carne e osso. A diferença entre o realismo das performances humanas e a aparência digital dos anões cria um contraste que, inicialmente, pode soar desconfortável para o espectador.

Os anões, que na animação original eram personagens muito expressivos, com suas personalidades e movimentos amplificados de forma caricatural, aqui se tornam mais realistas, mas ao mesmo tempo, em certos momentos, parecem destoar da dinâmica do mundo real. Essa discrepância não chega a comprometer a experiência do filme, mas é um elemento que pode causar estranhamento nas primeiras cenas, principalmente para aqueles que têm uma forte conexão com o clássico animado. No entanto, com o desenrolar da trama, a interação entre os personagens vai se tornando mais natural, e é possível se acostumar com essa nova abordagem. À medida que a história avança, a tecnologia vai ganhando mais fluidez, e a presença dos anões, embora ainda digital, passa a ser mais integrada ao universo físico do filme.

Na animação, a Rainha Má possuía muito mais carisma do que a própria protagonista. Como mencionei no início da crítica, Branca de Neve na versão animada tinha uma personalidade bastante apagada, sem características marcantes que a destacassem, o que a tornava "sem sal". No entanto, na versão live-action, ela se torna muito mais carismática, apresentando uma presença e uma complexidade que cativam o público. Em contraste, a Rainha Má, que na animação era uma figura imponente e cheia de intensidade, acaba se revelando bem mais fraca aqui. Sua vilania perde grande parte da força que tinha na versão original, fazendo com que a dinâmica da história se inverta: enquanto a protagonista, antes ofuscada, brilha mais do que nunca, a vilã perde grande parte de seu impacto.

A interpretação de Gal Gadot como a Rainha Má não atinge o efeito esperado, e um dos principais motivos para isso é a performance da atriz. Embora tenha se destacado em papéis como a Mulher-Maravilha em Mulher-Maravilha e Liga da Justiça, Gadot não consegue transmitir a intensidade e a profundidade exigidas para um papel de vilã tão icônica. A Rainha Má, que deveria ser uma personagem ameaçadora, capaz de gerar medo e controle, acaba se tornando excessivamente suave e superficial. Isso enfraquece a credibilidade de sua ameaça, tornando a vilã menos impactante.

Além disso, a caracterização da Rainha Má no live-action não é tão bem desenvolvida quanto poderia ser. A personagem se apresenta de maneira previsível e rasa, sem explorar as camadas psicológicas que poderiam torná-la mais interessante e complexa. Uma vilã desse porte deveria ser multifacetada, com motivações mais profundas — quem sabe até com vestígios de humanidade —, mas a atriz não consegue explorar esses aspectos de forma convincente. O resultado é que a vilã se torna quase caricatural, sem a carga emocional necessária para realmente engajar o público. Em muitos momentos, a interpretação de Gadot parece faltar energia e força, o que compromete o impacto da personagem, que deveria ser avassalador. Isso enfraquece o confronto entre a protagonista e a vilã, tornando a narrativa menos envolvente e a tensão dramática mais fraca do que deveria ser.

Branca de Neve não é tão decepcionante quanto muitos previam, mas também não atinge um nível excepcional; fica apenas no campo do "bom". A protagonista ganhou mais profundidade e carisma, o que a torna mais cativante.  A performance de Gal Gadot como a Rainha Má não consegue capturar a intensidade da vilã original, o que enfraquece a dinâmica da história e diminui a tensão dramática. Assim, embora a adaptação traga uma Branca de Neve mais interessante, ela perde força no confronto com a vilã.


Autor:


Meu nome é João Pedro, sou estudante de Cinema e Audiovisual, ator em formação e crítico cinematográfico. Apaixonado pela sétima arte e pela cultura nerd, dedico meu tempo a explorar e analisar as nuances do cinema e do entretenimento.

domingo, 9 de março de 2025

Máquina do Tempo – Dias De Um Futuro Não Tão Esquecido

 

Máquina do Tempo | Pandora Filmes

Estrelado por Emma Appleton e Stefanie Martini, Máquina do Tempo, segue a história de duas irmãs orfãs, Thomasina (Appleton) e Martha (Martini), que moram de forma isolada no interior da Inglaterra. Filmado em estilo found footage, a trama se passa no início da Segunda Guerra Mundial e mostra os primeiros ataques armados dos países envolvidos, incluindo a Grã-Bretanha. Tudo muda quando Thom e Mars criam um instrumento de rádio-televisão capaz de transmitir matérias de notícias do futuro.

Assim, não demora muito para que as irmãs usem seu aparelho para beneficiar o governo britânico em meio aos confrontos geopolíticos. Além de poderem assistir às notícias vindas do futuro, as mesmas também conseguem ouvir músicos e cantores famosos do futuro. Entretanto, mesmo com Thomasina informando a polícia local de forma anônima sobre os ataques iminentes no seu país, não demora muito para que as autoridades policiais descubram seu paradeiro. Logo, os oficiais se juntam a elas para interceptarem ataques vindos da Alemanha.

Sempre gostei de assistir produções de gênero found footage por trazer um tom documenteal para a trama e aqui, a direção de Andrew Legge é competente ao ambientar as filmagens para a época dos anos 1930. As cenas filmadas entre as irmãs foram feitas em câmeras Bolex e Arriflex de 16 mm, com lentes do período. As atrizes foram treinadas para usar o aparelho e realizam um trabalho excepcional. Somos transportados para aquele tempo de forma imersiva, ainda mais com uma fotografia em preto e branco.

Como consequências clássicas de filmes que retratam viagem no tempo, não demora para que percebamos o primeiro efeito das mudanças que elas acabam fazendo na história. Em um momento, Martha, que aprecia bastante as músicas dos anos 1970, sintoniza o dispositivo e percebe que seu cantor favorito, David Bowie, não está mais cantando no futuro (eu também ficaria muito triste com essa notícia). Logo, ela se assusta e se pergunta o que aconteceu, já que quem canta no lugar dele é outro músico com canções explicitamente fascistas. Thomasina, então, explica que isso foi um desdobramento das suas ações em prol da defesa da Inglaterra nos ataques militares.

Então, nos deparamos com o famoso dilema da temática de viagens no tempo: até onde podemos interferir nos acontecimentos da história? Mesmo que seja para proteger pessoas, o que isso pode acarretar no próprio futuro? Bom, pelo menos no longa, não temos mais respostas, já que as irmãs acabam caindo em uma armadilha feita pelos alemães e são acusadas de espiãs conspiratórias pelo governo britânico.

A qualidade técnica do filme é muito responsável por ambientar esse período pré-guerra. A película, filmada durante a pandemia e com um baixo orçamento, mostra como você pode gravar um filme com ótima qualidade, mesmo com recursos escassos. Bastante material do filme foi processado em casa em um tanque de revelação de 16 mm do período soviético.

Por ser dirigido em estilo found footage, isso acaba nos aproximando mais das personagens e, consequentemente, criando empatia pelas mesmas, ainda mais com as excelentes atuações e carisma de Emma e Stefanie. Conseguimos acompanhar, aqui, mais que a história de duas mulheres, mas também uma representação do amor fraternal e até onde estamos dispostos a defender nossos familiares. Afinal, a própria invenção das irmãs foi intitulada como Lola, em homenagem à mãe das protagonistas.

Embora o longa seja um recorte sobre a Segunda Guerra Mundial, viagem no tempo e regimes autoritários. O filme expõe, em sua essência, a importância das relações familiares, como também o poder do amor fraternal entre duas mulheres.

Autor:


Meu chamo Leonardo Veloso, sou formado em Administração, mas tenho paixão pelo cinema, a música e o audiovisual. Amante de filmes coming-of-age e distopias. Nas horas vagas sou tecladista. Me dedico à exploração de novas formas de expressão artística. Espero um dia transformar essa paixão em carreira, sempre buscando me aperfeiçoar em diferentes campos criativos.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

A Verdadeira Dor – E Nossos Mecanismos de Defesa

 

A Verdadeira Dor | Searchlight Pictures

A segunda direção de Jesse Eisenberg foi uma agradabilíssima surpresa. Tenho uma admiração pessoal pelos filmes que conseguem demonstrar o quadro geral da obra logo em seu primeiro plano, o que é exatamente o caso. Começamos com um fade in decorado com a clássica Nocturne de Frédéric Chopin e um travelling lateral lento em um aeroporto, com incontáveis figurantes, alguns em movimento outros em sua tediosa espera pelo próprio voo, até que damos uma volta para seguirmos então com o travelling, agora frontal, que nos revelará então, aparecendo entre as pessoas, um dos nossos dois protagonistas, Benji, interpretado por Kieran Culkin, e terminamos o shot em um close-up frontal no ator com uma expressão neutra. É daqui que vemos que o trabalho de escolha de elenco foi perfeito. 

Cada ator transmite uma emoção específica quando se põe com o rosto neutro ou em descanso. Na maioria das vezes a leitura que se faz é de raiva, ou com atores mais jovens, como seria o caso de Culkin, inocência, às vezes medo. Mas o que vemos, também influenciado pelo próprio título do filme que aparece quase em cima do protagonista, é tristeza. Recentemente me chegou a informação de que Culkin quase teve de sair do elenco do filme, por complicações em sua agenda, mas Emma Stone (Pobres Criaturas, La La Land), sendo uma das produtoras do filme, o convenceu a ficar, mesmo com as dificuldades, e ainda bem, pois em ele teríamos talvez um filme ligeiramente diferente, e ligeiramente fora do ponto.

Logo após esses maravilhosos 50 segundos, que já haviam me ganhado completamente, somos introduzidos ao nosso segundo protagonista, primo de Benji, interpretado por Jesse Eisenberg, que mesmo participando do filme como escritor e diretor, não perde a mão de sua atuação, e o mais interessante de tudo, sabe exatamente que tipo de personagem aproveita melhor de seus específicos talentos, voz e forma. Seu personagem David sai de casa com o telefone na orelha, ligando incessantemente para Benji, que nunca retorna à ligação. David é ansioso, nervoso, nunca calmo. Parece estar constantemente incomodado, como se passasse a vida se segurando para não correr para dentro de um buraco para se esconder para sempre. Então quando David finalmente chega ao aeroporto recebemos um susto – Benji aparece e recebe David com um sorriso gigante no rosto. Mas com o decorrer da história, vamos perceber o motivo desse suposto engano.

David e Benji embarcam em uma viagem para a Polônia (justificando a escolha de Chopin, compositor polaco, durante o filme) para honrar a memória de sua recém-falecida avó, que ambos amavam, e aproveitam para conhecer melhor sua história através de um tour dedicado a descendentes de judeus vítimas do holocausto. O filme é um clássico exemplo de road movie, em que a viagem em si transforma e aproxima dois personagens centrais, com participações importantes de alguns adjacentes. Não demora muito até que a obra nos arranque as primeiras risadas, com um tipo de comédia muito específico e interessante que se torna cada vez mais presente em filmes estadunidenses, que trabalha uma naturalidade de micro tiradas, pequenas gags dedicadas a causar aquela risada nasal quase imperceptível, ajudando a ter uma imersão um pouco mais pessoal no filme. Benji é tão irritante e ao mesmo tempo carismático, e David quase se contorce ao não saber lidar com a extroversão do primo, num ambiente onde nossos atores criam uma improvável química, que não só funciona como também contagia.

Kieran Culkin nos dá uma de suas melhores performances, com esse personagem extremamente humano, real e relacionável a nós mesmos, escondida nessa comédia. Ao descobrirmos que seu personagem fez uma tentativa de suicídio numa cena também de impecável atuação de Eisenberg, percebemos que talvez o tema central a ser conversado no filme sejam as nossas máscaras do dia-a-dia, que usamos para lidar com nossas dores. 

Benji age sem remorso de suas ações e falas, ele diz o que pensa, faz o que quer, trata as coisas com leveza, tudo tentando abstrair do próprio sofrimento pessoal, expondo suas emoções a todo o momento, enquanto David faz quase o oposto, ele acredita que seus problemas são apenas seus, e não existe razão nem desculpa para buscar ajuda. Os dois são opostos mas os mesmos, e um não quer viver a vida sem o outro, e mesmo entendendo que nunca serão capazes de curar um ao outro de seus problemas pessoais, passam a pelo menos compreender o outro lado, fechando o filme com o mesmo Close-up em Benji, no mesmo lugar no aeroporto, mas dessa vez com o título no lado oposto da tela, mostrando que cada lado de uma história tem a sua própria verdadeira dor.  

Autor:


Henrique Linhales, licenciado em Cinema pela Universidade da Beira Interior - Covilhã, Portugal. Diretor e Roteirista de 6 curta-metragens com seleções e premiações internacionais. Eterno pesquisador e amante do cinema.

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