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segunda-feira, 20 de outubro de 2025

O Riso e a Faca (2025) viaja pelos diversos universos da Guiné-Bissau

 

O Riso e a Faca (2025) | Vitrine Filmes

A Guiné-Bissau conquistou sua independência do colonialismo europeu em 1973. O país se divide no continente e as ilhas ao redor. Antes da chegada dos portugueses, a região integrava o Reino de Gabu (1537-1867) e o Império Mali (1235-1670), habitada pelas etnias balantas, fulas e malinquês. Mesmo com uma ávida resistência, se tornou um entreposto, junto com Cabo-Verde, das rotas dos navios negreiros e se tornou uma região negligenciada pelos europeus. E, ao contrário de Angola e Moçambique, por exemplo, é uma nação rural (caboverdianos, por exemplo, a enxergam historicamente como uma "roça") e focada na agricultura. Além disso, a região é englobada por colônias francesas com grupos islamizados. 

A partir do século XIX, a situação pirou: a mão da metrópole pesou nas colônias africanas, após a independência do Brasil, o que causou em uma série de violências físicas e institucionais (o estatuto de indigenato, o regime de contrato) que se perpetuaram no século XX com o regime salazarista. A libertação só foi possível através de uma luta armada  que durou entre 1963 a 73 e Portugal somente reconheceu a independência, em 1974, após a morte de Salazar. No entanto, o país tem um histórico recorrente de instabilidade política, no que resultou em uma Guerra Civil no final dos anos 90. Não é à toa que a produção tem a participação da poeta Odete Semedo (1959-) em uma ponta em que sua personagem reconta na língua criola as dificuldades de seus ancestrais durante esse período.

Portanto, temos aqui um nação com um passado rico, um trauma colonial, uma história de resistência política e problemas políticos e econômicos. E é neste cenário diverso que Sérgio (Sérgio Coragem), um engenheiro ambiental bissexual português, vai acabar se deparando em O Riso e a Faca (2025), o novo épico do diretor Pedro Pinho. O filme é uma coprodução entre Portugal, Brasil e França, participou da mostra Un Certain Regard do Festival de Cannes, em que ganhou prêmio de atuação feminina. E o mais importante para o público que for conferir, ele tem três horas e meia de duração; o que pode ser um empecilho para alguns espectadores, mas ainda é uma obra engajante.

Bem... Sérgio viaja de carro desde Lisboa para Bissau, atravessando o deserto do Saara, para trabalhar a serviço de uma ONG para conduzir um estudo ambiental sobre a viabilidade de uma construção de uma nova estrada que conecta o litoral do país até o deserto, de modo que passe pelas várias aldeias do interior. Muitos cidadãos são favor e outros são contra a construção. O problema é que a construção não pode causar o desmatamento de uma área e nem afetar a prática do cultivo do arroz, feita de maneira milenar e artesanalmente por meio de barragens, e ela tem que começar antes do período das chuvas. O que bota uma baita pressão nas costas de Sérgio, uma vez que o benfeitor da obra quer que ela comece o mais rápido possível.

Além disso, o caminho dele irá se cruzar com mais duas personagens importantes para a narrativa: Diara (Cleo Diára), uma jovem que vive fazendo corres de compra e revenda pelos centros urbanos da Guiné-Bissau e Guilherme (Jonathan Guilherme), um imigrante brasileiro que tenta se reconectar com suas raízes e mantem, junto com Diara, uma espécie de salão-bar no subúrbio da cidade. E obviamente, Sérgio irá gravitar entre os dois de modo que não sabem quais são suas verdadeiras intenções desse europeu recém chegado. Enquanto conduz a sua pesquisa, Sérgio vai começar a criar uma paranoia, um certo medo de que algo ruim está prestes a acontecer com ele.

Pedro Pinho tem um material rico em mãos e tem a ambição de explorar diversas facetas e histórias que a terra de Guiné-Bissau tem a oferecer. A direção tem um olhar quase semidocumental, com olhar antropológico, e o roteiro colaborativo escrito por 10(!) roteiristas transmite tal ambição, embora, ao mesmo tempo, ponha o trabalho em uma posição vulnerável, uma vez que muitos chefs na mesma cozinha possa dar errado. Mas o tempo de tela consegue dar o foco necessário do ponto A a Z, sem que haja uma parte subdesenvolvida. 

O que acontece é o contrário. Muitas as cenas do longa são bastante longas com direitos a monólogos e com direito a grandes momentos de atuação, que são ótimos, mas seguidos de um após outro se torna um tanto cansativo numa primeira vista. Porém, a atuação naturalista dos atores segura muito bem a bola que a direção joga a eles, principalmente a cativante Cleo Diára que é magnética em cena.

Sérgio, apesar de ser bem presente no cotidiano das pessoas que estão ao seu redor, seja na capital, seja nas aldeias, seja com as equipes de construção, seja com pessoas em posições vulneráveis do que ele, tem duas grandes questões: é muito ingênuo - a ponto de cometar as mais diversas gafes - e, a pior coisa que um branco possa fazer em um país africano, tem uma síndrome de salvador. Ele é a caricatura de uma geração que pensa ser descontruída, mas de desconstrução não tem nada (como aponta uma trabalhadora do sexo, provavelmente traficada, em dado momento da trama).

É essa característica do engenheiro que remonta a um passado do pensamento civilizatório colonial que Gui e Diára identificam de cara e nunca estão 100% à vontade com ele, por mais que haja uma atração das duas partes pela mesma pessoa. (O momento em que Diára fala: "Sabes que eu acho nojento, Sérgio? Nojento é poder recusar 150 mil euros e depois sentir-se melhor consigo." está gravado na minha mente até agora)

Além disso, filme também discute sobre a questão a "mãe África" e o do pensamento do pan-africanismo através da personagem de Gui, que se instala em Guiné-Bissau em busca de uma ancestralidade perdida e tem um choque de realidade ao interagir com a população nativa que não o vê com um deles. O que para um público brasileiro, promoveria debates interessantes sobre percepções etnoculturais dentro dos espaços da negritude.

O Riso e a Faca é um conto sobre a cacofonia de uma terra pilhada de suas tradições e culturas e a falta de conexão do ser e o espaço. É sobre dicotomia entre o que deve ser preservado e o progresso promovido pela restrita burguesia. É sobre laços que são atados e desatados, uma correnteza que puxa as pessoas uma com as outras. O retrato de uma terra que ainda está sendo pilhada em nome do progresso neoliberal. A dicotomia e contradição de um povo. Conflitos de interesses. O passado e o futuro na balança. O que resiste é são as relações que são feitas naquele espaço e tempo. Assim que Sérgio compreender isso, ele pode se livrar as amarras do passado colonial, enxergar o que realmente importa e ter uma chance de ficar em pé de igualdade com os nativos. Uma nova perspectiva. É um filme que viaja pelos diversos universos da Guiné-Bissau e a jornada, por mais que instável, é recompensadora.

*Esta crítica faz parte da cobertura do 27o Festival do Rio, realizado em 2025, visto em cabine de imprensa.

Autor:
                                  

Eduardo Cardoso é natural do Rio de Janeiro, Cidade Maravilhosa. Cardoso é graduado em Letras pela Universidade Federal Fluminense e mestre em Estudos de Linguagem na mesma instituição, ao investigar a relação entre a tragédia clássica com a filmografia de Yorgos Lanthimos. Também é escritor, tradutor e realizador queer. Durante a pandemia, trabalhou no projeto pessoal de tradução poética intitulado "Traduzindo Poesia Vozes Queer", com divulgação nas minhas redes sociais. E dirigiu, em 2025, seu primeiro curta-metragem, intitulado "atopos". Além disso, é viciado no letterboxd. 

sábado, 11 de outubro de 2025

Ato Noturno (2025) tem um instinto selvagem em cena

 

Ato Noturno (2025) | Vitrine Filmes

O mundo é um palco, e todos os atores são seres políticos. Matias (Gabriel Faryas) é um jovem ator que acaba de entrar em uma prestigiada trupe de teatro porto alegrense. Ele divide um apartamento com seu parceiro de cena, Fábio (Henrique Barreira). Em um dos ensaios da nova produção, uma produtora de elenco (Kaya Rodrigues) aparece para recrutar atores para uma nova série de grande porte. Ela fica interessada em Fábio para o papel principal, porém Matias, ambicioso e determinado, decide ir atrás da mesma oportunidade. 

Na mesma noite, Matias se encontra com uma gay discreta e fora do meio por meio de aplicativos de pegação. O boy em questão era a Eduardo Leit.. Desculpas, me engasguei aqui. Digo, o boy em questão é um vereador, Rafael (Cirillo Luna), que está em vias de começar sua campanha à prefeitura da cidade. Um homem de imagem pública. Eles chegam a um antigo casarão, que será o escritório de campanha antes de ser demolido, e lá começa um jogo de sedução entre os dois. À princípio, algo casual. Mas a sinergia que existe entre os dois corpos é demasiada que o instinto fala mais alto e Rafael deixa de propósito a janela aberta, com o risco de serem flagrados.

É assim que a ação de Ato Noturno (2025), o novo filme de Marcio Reolon e Filipe Matzembacher, começa. O terceiro longa-metragem da dupla de realizadores estreou no Festival de Berlim neste ano e finalmente desembarca nos festivais brasileiros, após um ótimo percurso internacional. E para fazer um delicioso edging nos espectadores curiosos, o filme chega nos cinemas em 15 de janeiro, como parte da seleção Sessão Vitrine Petrobras. 

Voltando a discussão da obra... Esta é a segunda narrativa que os diretores exploram sua cidade natal, Porto Alegre, o anterior foi Tinta Bruta (2018). A cidade ainda parece fria na superfície, mas, desta vez, existe um calor particular à ela. Os lugares secretos e o cruising aparecem pontualmente, mas fazem parte de um cenário pertencente a uma tradição histórica queer da cidade no qual ambas as personagens navegam em buscam de libertação. Matias, para conseguir o papel na série, além de passar a perna em Fábio, também precisa simbolicamente ser aprisionado no armário da indústria audiovisual, enquanto Rafael tem um tesão insaciável do qual sua posição pública, e um tanto conservadora, não permite saciar sua sede, de fato.

Por mais que os diretores queiram fazer um comentário metatextual entre a performance nos palcos e na vida pública (algo que o texto de Rafael repete alguns momentos da obra) estou inclinado a um debate paralelo, mas complementar, sobre as armadilhas da performance de gênero. Enquanto Rafael se demonstra como um "homem de bem" visualmente, com um corte curto, bem penteado, roupas sociais, recheado de conotações visuais tradicionalmente masculinas, Matias tem uma identidade mais fluída compatível com sua joie de vivre, o que será um empecilho para a produtora de elenco. Ambas as personagens são submetidas a uma silenciamento físico de seus corpos para que suas imagens sejam mais comerciais a interesses alheios, e, em contrapartida, acabam ficando dessexualizadas no processo. E seus desejos aprisionados.

E como a narrativa pertence a seara do thriller erótico, bem no estilo Supercine, toma emprestado códigos e formulações que envolvem crimes, chantagens e invejas psicossexuais que se escalonam gradativamente a um ponto sem retorno. No caminho do casal, há o segurança Camilo (Ivo Müller) que é devoto da figura de Rafael. A rusga que existe entre ele e Matias perpassa por questões de classe e raça. Camilo é bruto e hostil com a protagonista, enquanto faz de tudo para que a imagem do político não seja manchada. Há uma linha tênue na antagonista entre a homofobia e homoerotismo, subtende-se que ele seja uma enrustida no fim das contas, que a aproxima da energia uma loira psicótica, presente nos clássicos do gênero, como Glenn Close em Atração Fatal, por exemplo.

Reolon & Matzembacher tem uma direção clara e bastante direta ao ponto, eles conduzem a narrativa com cuidado, de modo que as narrativas paralelas não se sobreponham uma em cima da outra e, no final, o afunilamento dessas tramas seja o mais orgânico possível. A direção de fotografia Luciana Basseggio é deslumbrante: as cores vibrantes pulsam da tela de forma tão saborosa os olhos, seja na iluminação, seja na textura de suas imagens, que dão um charme aos elementos decupados, com direitos a movimentos de câmera e de foco são pertinentes ao clima neo noir do longa. O elenco está afiado e embarca dos pés à cabeça com a proposta do projeto. Faryas e Müller, em especial, são os performers se destacam mais em suas respectivas presenças de tela.

Porém, seria indispensável falar sobre a trilha sonora composta pelo músico e muso indie Thiago Pethit & cia: a música dita o tom do filme, preenchendo os silêncios incômodos, marcando a sedução, a tensão, o medo com uma sensualidade acústica que eleva o filme, deixando o público vulnerável as próprias sensações assim que os acordes das cordas começam a tocar. Um arrepio na nuca, seguido de um beijo. Pethit provoca o público com preliminares acústicas antes de se entregar a luxúria da carne. Um maestro da intimidade, ele canta esses corpos elétricos que querem gritar com gozo e tesão, entalados na garganta. Um aedo interpretando o papel de voyeur.

Ato Noturno é grito pela liberdade individual ao tesão. Um thriller erótico sedutor que corteja o público a entrar numa jornada arriscada e cheia de energia para gastar. Um filme que fala de performance e identidade, sem forçar a alegoria para o espectador. Um espetáculo visual e sensorial. Talvez um pouco limpo demais ou um pouco contido na execução de suas ideias mais ousadas, mas ainda consegue enlaçar seu público para deflorá-lo aos poucos. O risco pela liberdade. O gozo público. E, enfim, as máscaras caem de cena.

E você, leitore? Já performou um ato noturno hoje?  

*Esta crítica faz parte da cobertura do 27o Festival do Rio, realizado em 2025.

Obs: Queria mandar um beijo para o moderador do debate após a sessão, Pedro Henrique França, por ter tirado o elefante da sala (também conhecido como tópico "Dudu Milk") logo no início da conversa com a produção do filme.  

Autor:
                                  

Eduardo Cardoso é natural do Rio de Janeiro, Cidade Maravilhosa. Cardoso é graduado em Letras pela Universidade Federal Fluminense e mestre em Estudos de Linguagem na mesma instituição, ao investigar a relação entre a tragédia clássica com a filmografia de Yorgos Lanthimos. Também é escritor, tradutor e realizador queer. Durante a pandemia, trabalhou no projeto pessoal de tradução poética intitulado "Traduzindo Poesia Vozes Queer", com divulgação nas minhas redes sociais. E dirigiu, em 2025, seu primeiro curta-metragem, intitulado "atopos". Além disso, é viciado no letterboxd.

quinta-feira, 18 de setembro de 2025

Dormir de Olhos Abertos - e o peso do não pertencimento

Dormir de Olhos Abertos | Vitrine Filmes

O novo filme de Nele Wohlatz, Dormir de Olhos Abertos (com produção de Kleber Mendonça Filho), aposta em um retrato diferente da imigração. Em vez de mostrar personagens que encontram no Brasil um espaço de acolhimento ou de oportunidades, vemos o contrário: Xiao Xin, Fu Ang e Kai caminham por Recife sem rumo, sem pertencimento e sem qualquer encanto com a cidade.

Eles não são turistas em busca de experiências para guardar, mas imigrantes tentando sobreviver a trabalhos informais e ao estranhamento de viver em um lugar que não é deles. A sensação é de que estão sempre de passagem, atentos, mas nunca tranquilos. O título resume bem essa ideia: a agitação involuntária de estar em um lugar diferente, soa como se eles estivessem constantemente dormindo com os seus olhos abertos, nunca podendo relaxar.

A narrativa reflete esse deslocamento sem rumo. Não há uma história linear, e sim fragmentos: deslocamentos, encontros rápidos, diálogos em múltiplos idiomas (chinês, português, espanhol, inglês e alemão). Essa mistura linguística reforça a barreira cultural, já que a comunicação acontece de forma parcial, quase sempre atravessada por ruídos. É interessante como a diretora transforma a dificuldade de entender em um elemento central do filme.

A fotografia segue uma linha simples e próxima, sem se render ao Recife cartão-postal. O olhar é intimista e cotidiano: fachadas gastas, ruas movimentadas, detalhes que poderiam passar despercebidos. É um registro da cidade pelos olhos de quem nunca se sente parte dela.

Um dos momentos mais fortes envolve a xenofobia. Essa cena traz um choque direto, lembrando que o não-pertencimento também passa pelo preconceito. O problema é que, fora esse ponto, a narrativa às vezes parece dispersa demais, abraçando personagens sem se aprofundar tanto neles.

O ritmo um pouco lento pode afastar o público, assim como o final em aberto, que soa mais como indecisão do que como escolha estética. Ainda assim, existe valor nessa proposta de olhar para a experiência do estrangeiro no Brasil sem idealizações.

Dormir de Olhos Abertos não é um filme fácil. É lento, fragmentado e, em certos momentos, frustrante. Mas também é único na forma como aborda o deslocamento, a solidão e o choque cultural. 

Autor:

Bárbara Borges é do Rio de Janeiro e estudante de Jornalismo. Apaixonada por cinema desde criança, sempre foi movida por histórias intensas, especialmente as de terror, seu gênero favorito. Em 2024, dirigiu o documentário Além do Recinto, que levanta questionamentos sobre o bem-estar de animais silvestres em zoológicos e o impacto do confinamento longe de seus habitats naturais. Gosta de pensar no cinema como uma forma de provocar, sentir e transformar. Vive atualizando seu Letterboxd com comentários sinceros e, às vezes, emocionados. Entre seus filmes favoritos estão Laranja Mecânica, Psicopata Americano, Pânico, Pearl e Premonição 3.


segunda-feira, 19 de maio de 2025

Caiam As Rosas Brancas - Quando o erotismo encontra o misticismo, mas ambos se perdem no caminho para São Paulo

Caiam As Rosas Brancas | Boulevard Filmes


No filme Caiam as rosas brancas! acompanhamos Violeta, uma jovem cineasta, durante a produção de um filme pornô lésbico. Com o sucesso de uma versão amadora filmada pelo seu grupo de amigas, ela é convidada a dirigir uma versão capaz de atingir o grande público. O orçamento e ideias já defendidas transformam a narrativa e Violeta precisa fugir com sua equipe de Buenos Aires para São Paulo, no intuito de ampliar suas percepções e realizar uma verdadeira obra de arte.

O filme tem início ancorado no erotismo e na estética do road movie. O erotismo em questão recorre a representações superficiais e estereotipadas do desejo lésbico, transformando-o em uma ferramenta de exploração visual que muitas vezes se distancia de uma representação autêntica e multifacetada da experiência lésbica. As personagens são apresentadas de maneira hipersexualizada, o que resulta na criação de figuras que se reduzem a objetos de desejo, em vez de personagens complexas e tridimensionais. 

As cenas, em sua maioria, parecem mais focadas em provocar uma reação visual imediata do público do que na construção de vínculos afetivos genuínos e profundos. Ao invés de explorar as nuances das relações lésbicas, o filme adota uma abordagem simplista que não vai além do erotismo gratuito, tratando o desejo como algo superficial e descartável. A falta de uma elaboração psicológica sólida nas interações entre as personagens é notável, pois as relações não são construídas com profundidade emocional ou intimidade real, mas sim como uma forma de alimentar uma narrativa visual que se baseia em um apelo sensorial imediato.

Embora a fusão entre erotismo e misticismo seja proposta de maneira intrigante, o filme acaba por cair em uma fórmula previsível, onde a busca por simbolismos e metáforas acaba obscurecendo a clareza da narrativa. Ao tentar integrar essas camadas sensoriais e espirituais, a obra por vezes se perde no excessivo misticismo, transformando eventos e situações cotidianas em algo excessivamente criptografado, o que pode alienar o público e gerar confusão. 

A ideia de um realismo fantástico, onde o real e o imaginário se entrelaçam, poderia ter sido mais explorada de forma coesa, mas muitas vezes se vê um desequilíbrio entre a profundidade dos símbolos e a falta de uma trama sólida, resultando em uma experiência que, ao invés de cativar, acaba por parecer forçada. Além disso, o misticismo, que deveria emergir como uma extensão natural das experiências internas das personagens, acaba por parecer uma tentativa de dar profundidade a uma história que, no fundo, carece de substância e desenvolvimento emocional genuíno. O filme, ao final, mais parece um emaranhado de imagens e sensações, mas com pouca relevância ou impacto real.

As escolhas visuais revelam-se especialmente agradáveis, evocando com sutileza um estilo intimista e sensorial que convida o espectador a uma experiência mais emocional e contemplativa. A trilha sonora, por outro lado, percorre uma dinâmica marcante, alternando passagens de silêncio denso e contemplativo com explosões inesperadas de sons orgânicos e dissonantes. Essa oscilação sonora não apenas acompanha, mas amplifica o turbilhão emocional vivido pelas personagens, funcionando como uma extensão sensível de seus estados internos. Sendo capaz de sugerir nuances psicológicas e criar atmosferas de tensão, introspecção ou desconforto, dependendo da intensidade e da textura musical empregada.

Caiam as rosas brancas! se apresenta como um filme com grandes ambições, mas que se perde em suas tentativas de unir erotismo, misticismo e sensações visuais de maneira coesa. Embora a proposta de explorar o desejo lésbico através de uma lente erotizada e superficial seja um ponto de partida interessante, a obra não consegue ir além dos estereótipos e da exploração visual, negligenciando a profundidade emocional e a complexidade das relações humanas. A tentativa de integrar o misticismo e o realismo fantástico, ao invés de enriquecer a narrativa, acaba por obscurecer a clareza da história, resultando em uma experiência confusa e desconectada.


Autor:


Meu nome é João Pedro, sou estudante de Cinema e Audiovisual, ator e crítico cinematográfico. Apaixonado pela sétima arte e pela cultura nerd, dedico meu tempo a explorar e analisar as nuances do cinema e do entretenimento.

terça-feira, 1 de abril de 2025

Onda Nova - Sexo, drogas, futebol feminino e quebra de tabu

Onda Nova | Vitrine Filmes


Sinopse: ONDA NOVA, 1983, é uma comédia erótica e anárquica que reúne histórias das jogadoras do Gayvotas Futebol Clube, um time de futebol feminino recém-formado em plena ditadura militar, no ano em que o esporte foi regulamentado no Brasil, depois de ter sido banido por 40 anos. Com o apoio de renomados jogadores da época como Casagrande, Pitta e Wladimir, elas enfrentam os preconceitos de uma sociedade conservadora. Paralelamente, lidam com seus problemas pessoais e familiares, e se preparam para um simbólico jogo internacional contra a seleção italiana.

Após sua primeira exibição na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em 1983, Onda Nova foi censurado pela ditadura militar, por ser considerado “subversivo e amoral”. Dessa forma, estreou apenas quarenta e dois anos depois de sua produção, o que diz muito sobre o passado e o presente. Em uma época de ascensão da extrema direita, temas como os retratados no filme correm o risco de serem suprimidos novamente.  


Sob direção de José Antonio Garcia e Ícaro Martins, o elenco conta com nomes como Wladimir Rodrigues dos Santos, Walter Casagrande e Olívio Pitta, ícones da Democracia Corintiana, além do narrador Osmar Santos e de Caetano Veloso, figura fundamental na oposição à ditadura, especialmente no meio musical.  


Nesse contexto, somos apresentados ao Gayvotas Futebol Clube, um time fictício de futebol feminino carioca, treinado por Casagrande. Gradualmente, o filme nos introduz aos personagens, suas vidas e dilemas. Se, por um lado, o simples fato de retratar o futebol feminino já era considerado problemático e transgressor para a época, o longa vai além ao abordar temas como sexualidade, consumo de drogas, aborto e não monogamia, tudo de maneira explícita e sem pudores. O próprio nome do time, “Gayvotas”, já carrega uma sátira por si só.  


Há quem diga que as cenas de sexo em Onda Nova são excessivas e despropositadas, mas é essencial considerar o contexto em que o filme foi realizado e sua ressonância até os dias atuais. Em uma sociedade onde a vida era restringida por limites arbitrários e uma moralidade imposta que não tolerava certas pautas, o longa surge com a proposta de romper totalmente com o que era considerado aceitável e resgatar o imaginário de uma juventude liberal, que desafia os pais e tem sua própria maneira de enxergar o mundo.  


Entre as discussões levantadas pelo roteiro, uma das mais presentes é o espaço que as mulheres ocupam. Um dos melhores exemplos disso é a personagem Lilli (Cristina Mutarelli), goleira do Gayvotas, que corta o cabelo curto, beija meninas e tem diversos atritos com sua mãe (Patrício Bisso), interpretada por um ator de traços grosseiramente masculinos. Essa escolha reforça um contraponto, promovendo uma “inversão de papéis” e desmistificando os rótulos sociais.  


Nos aspectos técnicos, o longa se destaca pela direção de fotografia excepcional, que capta belos planos da vida urbana noturna do Rio de Janeiro, além de criativas passagens oníricas que, ora comunicam uma mensagem objetiva, ora apenas “viajam”. Em linhas gerais, Onda Nova não é um filme que agradará a todos os públicos, mas levanta debates importantes e contemporâneos de maneira engenhosa e ousada, além de oferecer uma experiência desafiadora e provocativa para aqueles dispostos a abrir a mente para sua proposta.  


                                                              Autor:


Mateus José é graduando de Licenciatura em Cinema e Audiovisual pela UFF, escritor, poeta, montador e aspirante a diretor de fotografia. Apaixonado pelas artes, literatura, música e principalmente o cinema, dedica-se a consumir, estudar e dissecar as camadas mais profundas do cinema e da arte.



terça-feira, 17 de setembro de 2024

Sofia Foi - E nunca mais será

 

Sofia Foi | Vitrine Filmes

Antes de mais, vale relembrar que o cinema é uma arte que vive em eterno paradoxo entre a arte expressiva e o meio comercial. E desde sempre parece que são nas obras com menos recursos monetários que se encontram as maiores e mais interessantes cargas de valor artístico e expressão dos autores. A presença do nome do diretor Pedro Geraldo e da protagonista e também roteirista Sofia Tomic em várias outras funções de equipe técnica somada à própria estética visual do filme, que remonta uma aparência do início da era digital, mostra como não são os equipamentos e recursos que fazem um bom filme, e sim as mentes e corações inquietos, e Sofia Foi não falha.

Vencedor do prêmio de Primeiro Filme do Festival Internacional de Cinema de Marseille, vemos a história de Sofia, uma jovem que acaba de ser despejada de seu apartamento e suspende seus estudos para oferecer seus serviços como tatuadora dentro da própria universidade para conseguir sobreviver, enquanto passa pela confusão emocional de um luto decorrente da perda de sua namorada. Ela vaga sem rumo pelo campus da universidade e se permite ser devorada pelas lembranças da sua história de amor que não pôde ter um final, a deixando numa eterna angústia de não saber o que sentir ou o que fazer. O filme apresenta uma relação de reflexo entre as duas meninas, como se com essa morte, Sofia tivesse perdido metade dela mesma, mas não deixando de ser uma personagem verossímil que ri, conversa com seus amigos e sonha quando dorme, pois não resta escolha para os que continuam vivos, a não ser continuar a viver.

Apesar de lento e contemplativo, o filme prende o espectador pela estética e profundidade da personagem, em como ele nos conta essa história de desaparecimento. Desaparecimento de tudo que tem, até o desaparecimento de quem é. Sofia luta para continuar seguindo sua vida, mas a realidade a oprime. O filme relaciona lindamente a relação do espaço com o corpo, que é o que, na forma mais material possível, como a humanidade experiencia a vida e junta a noção de existência e realidade com aquilo que se pode tocar e sentir.

Geraldo se mostra um diretor autor inteligente que domina seu meio para contar a história de Sofia com clareza, sem necessidade de explicação verbal, ou até, em momentos, o uso das falas dos seus personagens para transmitir a ideia contrária do argumento, como num momento pontual onde a protagonista fala com naturalidade sobre o evento da morta da sua namorada para uma cliente durante uma sessão de tatuagem, como se o acontecimento tivesse sido algo mundano e superado, mas a câmera só mostra Sofia da boca para baixo, em close-up, escondendo seus olhos e mascarando seu verdadeiro sentimento.

Outros recursos espetacularmente usados são a falta de movimento de câmera e enquadramento em 3:4 que nos prende junto à Sofia em seu mundo parado e sem perspectiva de avanço, o recurso fotográfico de não produzir a luz, como se faz num cinema mais comercial, mas sim de encontrar a luz, em determinado lugar e em determinado tempo, parra ilustrar a caminhada da personagem de ambientes iluminados, ou seja, alegres e visíveis, para a solidão e tensão do escuro, como também as lentas transições de dissolução, que mesclam momentos de passados e futuro assim como elipses de tempo dentro do próprio decorrer do dia de Sofia, como se ela estivesse não só presa ao seu espaço, mas também presa no tempo, mostrando conhecimento e reflexão sobre a importância da montagem no método de contar a história em forma de filme.

Sofia Foi glorifica a arte do cinema com sua beleza e inteligência narrativa, que nos conecta com nossa vivência de sermos humanos, nessa história que não apenas nos conta, mas claramente nos mostra, a história de um momento em que Sofia foi feliz.

                         
                               Autor:

Henrique Linhales, licenciado em Cinema pela Universidade da Beira Interior - Covilhã, Portugal. Diretor e Roteirista de 6 curta-metragens com seleções e premiações internacionais. Eterno pesquisador e amante do cinema.

 

Telefone Preto 2 - Do Suspense Psicológico para a Hora do Pesadelo

Telefone Preto 2 | Universal Pictures Pesadelos assombram Gwen, de 15 anos, enquanto ela recebe chamadas do telefone preto e tem visões pert...