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segunda-feira, 20 de outubro de 2025

O Riso e a Faca (2025) viaja pelos diversos universos da Guiné-Bissau

 

O Riso e a Faca (2025) | Vitrine Filmes

A Guiné-Bissau conquistou sua independência do colonialismo europeu em 1973. O país se divide no continente e as ilhas ao redor. Antes da chegada dos portugueses, a região integrava o Reino de Gabu (1537-1867) e o Império Mali (1235-1670), habitada pelas etnias balantas, fulas e malinquês. Mesmo com uma ávida resistência, se tornou um entreposto, junto com Cabo-Verde, das rotas dos navios negreiros e se tornou uma região negligenciada pelos europeus. E, ao contrário de Angola e Moçambique, por exemplo, é uma nação rural (caboverdianos, por exemplo, a enxergam historicamente como uma "roça") e focada na agricultura. Além disso, a região é englobada por colônias francesas com grupos islamizados. 

A partir do século XIX, a situação pirou: a mão da metrópole pesou nas colônias africanas, após a independência do Brasil, o que causou em uma série de violências físicas e institucionais (o estatuto de indigenato, o regime de contrato) que se perpetuaram no século XX com o regime salazarista. A libertação só foi possível através de uma luta armada  que durou entre 1963 a 73 e Portugal somente reconheceu a independência, em 1974, após a morte de Salazar. No entanto, o país tem um histórico recorrente de instabilidade política, no que resultou em uma Guerra Civil no final dos anos 90. Não é à toa que a produção tem a participação da poeta Odete Semedo (1959-) em uma ponta em que sua personagem reconta na língua criola as dificuldades de seus ancestrais durante esse período.

Portanto, temos aqui um nação com um passado rico, um trauma colonial, uma história de resistência política e problemas políticos e econômicos. E é neste cenário diverso que Sérgio (Sérgio Coragem), um engenheiro ambiental bissexual português, vai acabar se deparando em O Riso e a Faca (2025), o novo épico do diretor Pedro Pinho. O filme é uma coprodução entre Portugal, Brasil e França, participou da mostra Un Certain Regard do Festival de Cannes, em que ganhou prêmio de atuação feminina. E o mais importante para o público que for conferir, ele tem três horas e meia de duração; o que pode ser um empecilho para alguns espectadores, mas ainda é uma obra engajante.

Bem... Sérgio viaja de carro desde Lisboa para Bissau, atravessando o deserto do Saara, para trabalhar a serviço de uma ONG para conduzir um estudo ambiental sobre a viabilidade de uma construção de uma nova estrada que conecta o litoral do país até o deserto, de modo que passe pelas várias aldeias do interior. Muitos cidadãos são favor e outros são contra a construção. O problema é que a construção não pode causar o desmatamento de uma área e nem afetar a prática do cultivo do arroz, feita de maneira milenar e artesanalmente por meio de barragens, e ela tem que começar antes do período das chuvas. O que bota uma baita pressão nas costas de Sérgio, uma vez que o benfeitor da obra quer que ela comece o mais rápido possível.

Além disso, o caminho dele irá se cruzar com mais duas personagens importantes para a narrativa: Diara (Cleo Diára), uma jovem que vive fazendo corres de compra e revenda pelos centros urbanos da Guiné-Bissau e Guilherme (Jonathan Guilherme), um imigrante brasileiro que tenta se reconectar com suas raízes e mantem, junto com Diara, uma espécie de salão-bar no subúrbio da cidade. E obviamente, Sérgio irá gravitar entre os dois de modo que não sabem quais são suas verdadeiras intenções desse europeu recém chegado. Enquanto conduz a sua pesquisa, Sérgio vai começar a criar uma paranoia, um certo medo de que algo ruim está prestes a acontecer com ele.

Pedro Pinho tem um material rico em mãos e tem a ambição de explorar diversas facetas e histórias que a terra de Guiné-Bissau tem a oferecer. A direção tem um olhar quase semidocumental, com olhar antropológico, e o roteiro colaborativo escrito por 10(!) roteiristas transmite tal ambição, embora, ao mesmo tempo, ponha o trabalho em uma posição vulnerável, uma vez que muitos chefs na mesma cozinha possa dar errado. Mas o tempo de tela consegue dar o foco necessário do ponto A a Z, sem que haja uma parte subdesenvolvida. 

O que acontece é o contrário. Muitas as cenas do longa são bastante longas com direitos a monólogos e com direito a grandes momentos de atuação, que são ótimos, mas seguidos de um após outro se torna um tanto cansativo numa primeira vista. Porém, a atuação naturalista dos atores segura muito bem a bola que a direção joga a eles, principalmente a cativante Cleo Diára que é magnética em cena.

Sérgio, apesar de ser bem presente no cotidiano das pessoas que estão ao seu redor, seja na capital, seja nas aldeias, seja com as equipes de construção, seja com pessoas em posições vulneráveis do que ele, tem duas grandes questões: é muito ingênuo - a ponto de cometar as mais diversas gafes - e, a pior coisa que um branco possa fazer em um país africano, tem uma síndrome de salvador. Ele é a caricatura de uma geração que pensa ser descontruída, mas de desconstrução não tem nada (como aponta uma trabalhadora do sexo, provavelmente traficada, em dado momento da trama).

É essa característica do engenheiro que remonta a um passado do pensamento civilizatório colonial que Gui e Diára identificam de cara e nunca estão 100% à vontade com ele, por mais que haja uma atração das duas partes pela mesma pessoa. (O momento em que Diára fala: "Sabes que eu acho nojento, Sérgio? Nojento é poder recusar 150 mil euros e depois sentir-se melhor consigo." está gravado na minha mente até agora)

Além disso, filme também discute sobre a questão a "mãe África" e o do pensamento do pan-africanismo através da personagem de Gui, que se instala em Guiné-Bissau em busca de uma ancestralidade perdida e tem um choque de realidade ao interagir com a população nativa que não o vê com um deles. O que para um público brasileiro, promoveria debates interessantes sobre percepções etnoculturais dentro dos espaços da negritude.

O Riso e a Faca é um conto sobre a cacofonia de uma terra pilhada de suas tradições e culturas e a falta de conexão do ser e o espaço. É sobre dicotomia entre o que deve ser preservado e o progresso promovido pela restrita burguesia. É sobre laços que são atados e desatados, uma correnteza que puxa as pessoas uma com as outras. O retrato de uma terra que ainda está sendo pilhada em nome do progresso neoliberal. A dicotomia e contradição de um povo. Conflitos de interesses. O passado e o futuro na balança. O que resiste é são as relações que são feitas naquele espaço e tempo. Assim que Sérgio compreender isso, ele pode se livrar as amarras do passado colonial, enxergar o que realmente importa e ter uma chance de ficar em pé de igualdade com os nativos. Uma nova perspectiva. É um filme que viaja pelos diversos universos da Guiné-Bissau e a jornada, por mais que instável, é recompensadora.

*Esta crítica faz parte da cobertura do 27o Festival do Rio, realizado em 2025, visto em cabine de imprensa.

Autor:
                                  

Eduardo Cardoso é natural do Rio de Janeiro, Cidade Maravilhosa. Cardoso é graduado em Letras pela Universidade Federal Fluminense e mestre em Estudos de Linguagem na mesma instituição, ao investigar a relação entre a tragédia clássica com a filmografia de Yorgos Lanthimos. Também é escritor, tradutor e realizador queer. Durante a pandemia, trabalhou no projeto pessoal de tradução poética intitulado "Traduzindo Poesia Vozes Queer", com divulgação nas minhas redes sociais. E dirigiu, em 2025, seu primeiro curta-metragem, intitulado "atopos". Além disso, é viciado no letterboxd. 

sábado, 11 de outubro de 2025

A Useful Ghost (2025) é uma fábula excêntrica e desafiadora

A Useful Ghost (2025) | Pandora Filmes

No centro de uma cidade tailandesa, supomos que seja Bangkok, vários monumentos históricos são retirados para a construção um novo empreendimento que, supostamente, levaria o desenvolvimento econômico daquela região. Não obstante, a cidade é coberta por uma constante poeira. Perto dali, uma pesquisadora Ladyboy (Wisarut Homhuan), identidade de gênero que engloba pessoas trans, não binares e andrógenas, decide comprar um aspirador de pó em uma loja, mas descobre que durante a noite o aparelho tosse e espalha mais poeira. No dia seguinte, chega Krong (Wanlop Rungkumjad) para reparar o utensilio e ele revela à pesquisadora sobre um caso parecido...

Após a trágica morte de Nat (Davika Hoorne) por causa da poluição, seu marido, March (Witsarut Himmarat), é consumido pela dor. Mas a vida dele vira de cabeça para baixo ao descobrir que o espírito da mulher reencarnou num aspirador. O laço entre eles se reacende, mais forte do que nunca. Mas isso não agrada a todos, em particular à família de March, dona de uma fábrica, que rejeita a relação sobrenatural. Para provar sua lealdade, Nat se oferece para limpar a fábrica e provar que é um fantasma útil, mesmo que isso signifique livrar-se de algumas almas perdidas, em prol de terceiros.

A Useful Ghost (e sim, aparentemente o título deverá ficar assim no Brasil até segunda ordem) é o longa-metragem de estreia do diretor Ratchapoom Boonbunchachoke, que ganhou o prêmio principal da Quinzena dos Realizadores no Festival de Cannes desse ano. Á princípio, o filme é uma comédia excêntrica de costumes tailandês a um ponto que beira ao absurdismo. Porém, apesar da sinopse curiosa, a obra esconde camadas muito fascinantes, reveladas aos poucos.

Como o objeto em que o fantasma de Nat possuí causa um estranhamento, a relação entre ela e March desafia as convenções tradicionais da sociedade. A mãe de March, Suman (Apasiri Nitibhon), age contra a união de pós vida e ainda é pressionada por outros familiares para separá-los. Ela não mede esforços: proíbe Nat de sua casa, tenta exorcizá-la com ajuda de um monge e até mesmo faz ela ser presa pela polícia por não ter o consentimento de habitar uma propriedade de sua empresa. Quando tudo isso não funciona, Suman submete March a uma terapia de eletrochoque com a finalidade dele esquecê-la. (Inclusive, o cenário em que as sessões de "eletro" acontecem tem uma beleza geometricamente brutal e sem vida.)

 Apesar de Nat e March serem um casal hétero cisgênero, o relacionamento deles é codificado na narrativa como queer. Ela é vista para a maioria das pessoas, menos por seu marido, como um aspirador de pó e sofre preconceitos da família, instituições religiosas e do próprio estado, este último quando é impedida de visitar o esposo no hospital à noite; e ela é constantemente humilhada e tratada como uma degenerada. Enquanto isso, March é torturado com eletrochoque numa espécie de "terapia de conversão", o que foi (e em alguns lugares isso ainda ocorre infelizmente) uma forma de violência física e psicológica contra pessoas LGBTQIAPN+ e enquadrá-las dentro do padrão da vivência heteronormativa.

 A partir dessa violência psicológica, Nat faz um acordo com Suman para ajudá-la com uma situação na fábrica, envolvendo um fantasma de uma gay vingativa, um ex-funcionário que faleceu durante o expediente e agora assombra o local, pondo a empresa em um grande prejuízo fiscal. Após ser bem-sucedida nesta questão, outros olhos se voltam para as habilidades práticas de Nat para fins mais nefastos. 

 Boonbunchachoke constrói uma fábula que se desenvolve em algo a mais; por trás da ironia e comédia de valores, há uma inquietação do realizador sobre as relações de classe e poder na sociedade tailandesa. Apesar de ser visto no ocidente como um paraíso asiático, o país tem uma história violenta, na qual o governo tenta apagar da memória coletiva. Não é o primeiro filme que fala sobre isso, afinal Apichatpong Weerasethakul já abordou o tema de forma onírica em seu Cemitério do Esplendor (2015). Aqui, a relação entre política e memória é mais escrachada e direta. Pessoas são torturadas para esquecer os fantasmas do passado para a conveniência de uma política neoliberal, retirando da população um direito fundamental: a memória.

 É neste ponto em que as duas linhas narrativas do filme - Ladyboy e Krong, Nat e March - se convergem. Se a parábola compartilhada pelo primeiro casal fala sobre os perigos e da violência do poder a uma população, o segundo precisa exercer a memória afetiva de um tem pelo outro para continuarem juntos. Sem isso, a história que uma pessoa carrega dentro de si é perdida para sempre.

 A Useful Ghost se baseia de sua sensibilidade queer e camp para demonstrar um problema maior e persistente dentro de uma sociedade que se recusa a olhar para trás, confrontar seus legados e traumas. Uma obra que convida a rir do ridículo e depois dá um tapa na cara da hipocrisia e da moral. Boonbunchachoke conduz seu público por caminhos diversos e inesperados. É uma fábula excêntrica e desafiadora para seu contexto. Uma grata surpresa. Um dos melhores filmes do ano até agora.

 *Esta crítica faz parte da cobertura do 27o Festival do Rio, realizado em 2025.

Autor:
                                  

Eduardo Cardoso é natural do Rio de Janeiro, Cidade Maravilhosa. Cardoso é graduado em Letras pela Universidade Federal Fluminense e mestre em Estudos de Linguagem na mesma instituição, ao investigar a relação entre a tragédia clássica com a filmografia de Yorgos Lanthimos. Também é escritor, tradutor e realizador queer. Durante a pandemia, trabalhou no projeto pessoal de tradução poética intitulado "Traduzindo Poesia Vozes Queer", com divulgação nas minhas redes sociais. E dirigiu, em 2025, seu primeiro curta-metragem, intitulado "atopos". Além disso, é viciado no letterboxd. 

Ruas da Glória (2025) é um ponto de cruising decadente

 

Ruas da Glória (2025) | Retrato Filmes

Gabriel (Caio Macedo) é uma gay branca básica riquinha que, como qualquer outra pessoa que se enquadra nesta descrição, se muda para o Rio de Janeiro. Ele perdeu o único vínculo que tinha com sua família, após a morte de sua avó. E, obviamente, tem recursos financeiros para morar no bairro da Glória, ponte zona central e sul da cidade do Rio, bem coladinho da Lapa e da região da Cinelândia (onde a ação mais se concentra aqui). Afinal, o objetivo de uma migrante não é morar no subúrbio da zona norte ou na caótica zona oeste, por exemplo; mas sim o mais próximo do poder econômico e cultural da cidade, ou de pontos turísticos.

Perambulando pela vizinhança, descobre o Glória Bar, comandado por Mônica (Diva Menner) que toma afeição pelo jovem. Porém, Gabriel só quer saber mesmo é beijar um homem musculoso e misterioso na pista, o uruguaio Adriano (Alejandro Claveaux). Todes dizem que é uma furada. Afinal, ele é um michê não muito confiável, já com rastro de danos em outros. No entanto, sendo básica e burra, ele ignora o que os outros pensam e segue seu coração (e pau) para conquistar o afeto de Adriano, se jogando de cabeça em um romance tórrido e destrutivo.

Ruas da Glória (2025) é o novo filme de Felipe Sholl, realizador por trás do longa-metragem Fale Comigo lançado em 2016. O diretor disse durante o debate após a exibição da obra que se inspirou na sua experiência como "estrangeiro" à cidade do Rio de Janeiro, assim como sua protagonista. De fato, a direção brilha quando o filme quer parecer interessado na história da subcultura de cruising ou, até mesmo, na relação entre cidade e pessoa como é registrado em formatos de vídeos de celular que aparecem ao longo da narrativa.  O problema é que o foco da trama não é esse; e quando toca nesse ponto, é tão superficial que nem deixa uma marca.

O relacionamento, ou a falta deste, entre Gabriel e Adriano é o que interessa para a direção. As personagens principais, de um modo geral, são vazias de personalidade e dimensionalidades. Gabriel é ingênuo e, ao tomar ciência do mundo dos trabalhadores do sexo que lhe é lentamente empurrado por Adriano, ele enxerga muito mais como uma diversão do que uma questão de sobrevivência. Além disso, ele se afunda nas drogas junto do amante, aumentando sua dependência emocional. A dinâmica entre as duas personagens funciona mais como uma alegoria de lovebombing e ghosting na vida real, do que, de fato, uma relação amorosa entre dois homens. Em paralelo, o filme tenta trazer o conceito de família escolhida, que é bem trabalhada e tem seus momentos até certo ponto.

Porém, Sholl falha em dar uma dimensão significativa a sua protagonista que é monótona e insuportável por boa parte da obra. Ou seja, em palavras mais viadas, ele basicamente fez mais um filme de gay básica chata com energia de passiva patética que sofre e se faz de coitado. O que em pleno 2025, isso deveria ser crime contra o cinema queer. Sua decupagem é pífia e equivocada muitas das vezes. As cenas de sexo, e tem muitas, são filmadas de um jeito pretencioso e preguiçoso que, ao invés de demonstrar a euforia corpórea das personagens, chegam a ser entediantes de assistir. Chega ser asséptico e até mesmo comedido na sua abordagem, em boa parte. Os atores não estão ruins, mas ficam reféns de uma direção fraquíssima e sem nenhuma força emanente.  

Ruas da Glória é um filme vazio de significados e interpretações sobre o universo no qual deseja retratar, subdesenvolvido com ideias seguras que parece muito mais como um conto moral do que um retrato de uma comunidade. É um longa cuja decadência é o seu maior triunfo e tiro no pé. Se quiserem ver um filme que fala sobre a relação entre pessoa e cidade, a rotina de michês e o senso de comunidade, por favor, assistam Baby (2024); isso sim é um filme queer de qualidade.

*Esta crítica faz parte da cobertura do 27o Festival do Rio, realizado em 2025.

Autor:
                                  

Eduardo Cardoso é natural do Rio de Janeiro, Cidade Maravilhosa. Cardoso é graduado em Letras pela Universidade Federal Fluminense e mestre em Estudos de Linguagem na mesma instituição, ao investigar a relação entre a tragédia clássica com a filmografia de Yorgos Lanthimos. Também é escritor, tradutor e realizador queer. Durante a pandemia, trabalhou no projeto pessoal de tradução poética intitulado "Traduzindo Poesia Vozes Queer", com divulgação nas minhas redes sociais. E dirigiu, em 2025, seu primeiro curta-metragem, intitulado "atopos". Além disso, é viciado no letterboxd. 

terça-feira, 7 de outubro de 2025

Queens Of The Dead (2025) - Uma homenagem imperfeita

Queens Of The Dead (2025) | Imovision

Uma caminhoneira, uma drag queen, uma gay padrão, uma mulher trans entram em um bar… Parece até mesmo uma piada pronta. Meio manjada, talvez? A RuPaul riria se alguma queen fizesse essa piada no Drag Race, bem provável. Porém, além disso, o que aconteceria nesse cenário com essas personagens durante uma infestação zumbi? Essa é a premissa de Queens Of The Dead (2025), filme de Tina Romero que contará com distribuição da Imovision no Brasil.

A diretora do longa é filha de George A. Romero, cineasta que popularizou a figura do zumbi, ou morto-vivo, no cinema de terror com dois filmes fundamentais: A Noite dos Mortos Vivos (1968) e Despertar dos Mortos (1978). São filmes revolucionários na história do horror, não só um subgênero foi criado e deixou sua marca no imaginário popular, mas também as narrativas eram metáforas para problemas socioeconômicos da sociedade como o racismo e o capitalismo desenfreado. 

Além disso, o cinema de terror, em geral, tem a capacidade de atrair um público LGBTQIAPN+ fiel, já que as metáforas sobre a monstruosidade e o medo do diferente ressoam com as experiências individuais da comunidade. Portanto, é bastante oportuno realizar um filme que dialoga com o universo de Romero para um público queer

No longa, Dre (Katy O’Brien) é uma promoter em crise de uma boate no cenário club kid do Brooklyn, cuja nova empreitada para seus negócios é uma festa encabeçada pela influencer Yasmine (Dominique Jackson) e o retorno da drag Samoncé (Jaquel Spivey), também chamada “out of drag” de Sam, que havia abandonado aos palcos por uma crise de pânico. Porém, tudo muda com a erupção de um apocalipse zumbi e o grupo eclético de personagens, de diferentes bolhas da comunidade, deve “superar suas diferenças” em meio a adversidade que o cerca. 

Tina Romero acerta em configurar um filme como uma comédia de terror, mirando no em uma leitura queer camp. Romero consegue construir o set up de cenários e situações de forma satisfatória: o som dos sintetizadores, o uso de cores neon vivas na iluminação, o clima atmosférico da entrada de um morto-vivo em cena; sua direção consegue estabelecer bem a situação central e não tem medo do ridículo, seja drag queens fazendo cruising em uma igreja, ou seja um casal de influencers oportunistas, ou seja um personagem atirando um machado em um zumbi e errando o alvo em outra pessoa, ou seja por ratazanas ou bebês zumbis. São situações exageradas que conseguem ser honestamente divertidas.

Romero amplia a metáfora do consumismo herdada de seu pai para a era das redes sociais em que a população está cada vez mais viciada nas vidas das blogueiras e influenciadoras e em sua relação parassocial, que tanto é vista como alienadora quanto parasitária. As aparências viram o entretenimento das massas, portanto essas figuras possuem um valor monetário, corpos que lucram pela própria existência e imagem. No caso em específico de pessoas LGBTQIAPN+, elas representam um status de progressão social e são usadas como tokens ambulantes por pessoas de fora da comunidade. O roteiro também toca na concepção do “fracasso queer” que atravessa as personagens e este é o principal ponto que as une em um momento crítico em especial. 

Se em sua temática, Queens Of The Dead consegue atualizar o conceito do universo através de uma sátira descarada, a narrativa não consegue dar um arco dramático a suas personagens.  

O filme tem bons performers em seu elenco como O’Brien (de Love Lies Bleeding), Spivey (da versão musical de Mean Girls), Nina West (de Drag Race), Jack Heaven (de I Saw The TV Glow), a comediante Margaret Cho e Dominique e Cheyanne Jackson (não são parentes!), entre outros; mas seus personagens são escritos de forma tão unidimensional, que a maioria não sustenta uma virada dramática. Talvez o arco que funcione mais e a relação entre as personagens de Spivey e West e o dilema entre Sam, a pessoa pública, e Samoncé, a drag queen. Apesar disso, a atriz e ícone Dominique Jackson rouba a cena do filme ao interpretar uma versão caricata de si mesma (e ainda estarei aplaudindo de pé e com um leque na mão).

Apesar de suas falhas ou ideias que não dão tão certo, Queens Of The Dead é um filme que mistura o trash e o camp, o sangue com o glitter, o drama com o absurdo em que, por uma ironia, um death drop pode ser fatal. Em suma, assim como as queers fracassadas de sua trama, é uma homenagem imperfeita e não há nenhum problema nisso.

*Esta crítica faz parte da cobertura do 27o Festival do Rio, realizado em 2025.

Autor:
                                  

Eduardo Cardoso é natural do Rio de Janeiro, Cidade Maravilhosa. Cardoso é graduado em Letras pela Universidade Federal Fluminense e mestre em Estudos de Linguagem na mesma instituição, ao investigar a relação entre a tragédia clássica com a filmografia de Yorgos Lanthimos. Também é escritor, tradutor e realizador queer. Durante a pandemia, trabalhou no projeto pessoal de tradução poética intitulado "Traduzindo Poesia Vozes Queer", com divulgação nas minhas redes sociais. E dirigiu, em 2025, seu primeiro curta-metragem, intitulado "atopos". Além disso, é viciado no letterboxd.

O Estrangeiro (2025) toma um sol de matar

O Estrangeiro (2025) | Gaumont

O Estrangeiro é um romance de Albert Camus, publicado em 1942 pela Gallimard, cuja trama se passa durante a colonização da Argélia pela França, ainda no século XX. O livro contém um teor psicológico, contado em primeira pessoa. O narrador, Meursault, um colono francês comete um crime contra um nativo e cabe a justiça se deve sentenciá-lo ou não. 

A obra se tornou um clássico da literatura ocidental. A estória foi adaptada para o cinema duas vezes: uma em 1967, Il Straniero, dirigida por Luchino Visconti e estrelada por Marcelo Mastroianni; e a outra é uma adaptação turca, Yazgı, lançada em 2001. A influência de Camus atingiu o imaginário popular e também abrangeu diversas artes e mídias ao longo dos séculos, como na música Killing an Arab da banda The Cure (que toca durante os créditos do filme de 2025). 

François Ozon, um dos mais prolíferos diretores franceses da atualidade, lançando novos projetos quase anualmente a esse ponto, é o diretor dessa nova versão que estreou no Festival de Veneza deste ano. Tendo em mente da responsabilidade de adaptar um texto icônico, o realizador opta em um releitura que explicita a tensão entre os colonos europeus e o nativos árabes, antes da guerra da Argélia, sem abrir mão do seu queer gaze.

Benjamin Voisin é Meursault, um jovem e taciturno colono francês na Argélia dos anos 30. Ele trabalha em um escritório e tem uma vida muita pacata, muito protocolar e essa rotina muda quando recebe um telegrama que sua mãe faleceu no asilo. Ele vai até o local onde acontece a vigília, mas nunca demonstra as típicas reações de alguém em luto, o que deixa algumas pessoas desconfiadas. 

Ao retornar, Meursault se esbarra em Marie (Rebecca Marder), uma antiga paixão, que reata com ele e Sintès (Pierre Lottin), um amigo e vizinho de prédio, que o arrasta para seus problemas pessoais, que envolve uma nativa local, Djemilla (Hajar Bouzaouit), e seu irmão. Após um evento, em uma praia, em que o irmão de Djemilla vai atrás de Sintès para tirar satisfações, Meursault, ao ver esse nativo com uma faca, atira a queima-roupa, matando o jovem.

Ozon estabelece bem a atmosfera e o ambiente em que a narrativa se passa, recriando com uma Argélia segregada ora pela política de colonizadora ora pelas questões culturais entre franceses e nativos; uma vez que os árabes da narrativa, apesar de presentes pelas ruas, estão ausentes em prédios públicos e áreas de lazer, reservadas somente para os colonos, evidenciando a política racista europeia. A personagem de Djemilla até mesmo denuncia, de modo bem sutil e claro, o absurdo deste projeto colonial. Aqui, mesmo não tendo o protagonismo da estória, os colonizados tem nome e voz e sabem que são invisibilizados pelo poder colonial.

Se os colonizadores ditam as regras sociais, a natureza é diferente. Meursault passa boa parte do tempo de tela ou coberto de suor ou se refrescando no mar. O sol o persegue. Seu corpo transpira como precisasse de fôlego. A protagonista ocupa um solo do qual não pertence e sente o presságio da natureza, rejeitando a presença dela. Existe um sufoco, um cansaço do qual ele se aliena, pois é contrário a ideia de retornar a Paris com convicção, ao mesmo tempo que complacente com o pensamento colonial. O mundo é um parque de diversões, um lugar exótico do qual não há uma familiaridade. Um observador ao seu bel-prazer. 

Além disso, Meursault está a procura de algo que não pode ter: seja uma nova figura materna em seu inconsciente - já que sempre fita mães e mulheres mais velhas acompanhadas de seus filhos -, seja pelo desejo carnal - tanto pela figura de Marie, uma moça disposta a casar com ele, quanto por uma atração por um nativo, que logo, torna-se uma repulsão de seus instintos sexuais. (A vontade de lamber uma axila peluda também pode matar, tá bom?) Como alguém tão direto, tão apático, pode ter uma dualidade da qual não a compreende? 

Ozon dá sua própria leitura à narrativa em que consegue, ao mesmo, triangular existencialismo, alteridade e tensão sexual, ainda que recriando a estrutura narrativa de Camus. A fotografia do filme em preto e branco é suntuosa. O diretor filma os corpos de suas personagens com aquela volúpia preguiçosa de verão, e com gosto, em composições maduras. O elenco é um sabor à parte. Voisin tem uma performance esplêndida como a protagonista niilista: a postura serena, o olhar lânguido e vazio de emoção, a energia de twink soberbo; enquanto outros personagens são mais expressivos ou causam impacto, como as participações especiais de Denis Lavant, como um vizinho viúvo de Meursault, e de Swann Arlaud, como um padre (gostoso) que tenta "convertê-lo" a "fé" cristã.

O Estrangeiro é uma adaptação sedenta cuja leitura do material original é amplificada para uma interpretação que evidencia o contexto original da obra e os traumas da herança colonial dos povos nativos. Um incômodo... tal como um corpo transpirado de suor e sem ar num dia de sol escaldante. O sol na cabeça queima a visão. E sem visão, somente resta a hamartia.

*Esta crítica faz parte da cobertura do 27o Festival do Rio, realizado em 2025.

Autor:
                                  

Eduardo Cardoso é natural do Rio de Janeiro, Cidade Maravilhosa. Cardoso é graduado em Letras pela Universidade Federal Fluminense e mestre em Estudos de Linguagem na mesma instituição, ao investigar a relação entre a tragédia clássica com a filmografia de Yorgos Lanthimos. Também é escritor, tradutor e realizador queer. Durante a pandemia, trabalhou no projeto pessoal de tradução poética intitulado "Traduzindo Poesia Vozes Queer", com divulgação nas minhas redes sociais. E dirigiu, em 2025, seu primeiro curta-metragem, intitulado "atopos". Além disso, é viciado no letterboxd.

O Olhar Misterioso Do Flamingo (2025) - Faroeste trans sob uma lente cis

O Olhar Misterioso do Flamingo | Imovision

Fazer um faroeste é difícil. Agora fazer um faroeste queer durante a crise da AIDS é ambicioso. Na verdade, podemos dizer que O Olhar Misterioso do Flamingo (La misteriosa mirada del flamenco, no original), não é um faroeste à moda antiga,  mas sim um neo-western. Ou seja, é uma narrativa que tem a estrutura e códigos do gênero desconstruídos e/ou atualizados para mais próximo do contemporâneo. 

O filme é dirigido por Diego Céspedes e foi lançado na mostra Un Certain Regard do Festival de Cannes desse ano, obtendo o prêmio principal, e é o representante do Chile para tentar uma vaga de Melhor Filme Internacional no Oscar do ano que vem.

A ação se passa nos anos 80, em uma vila de mineradores, no deserto do norte do Chile. Um local árido e maciçamente ocupado pelos homens que trabalham nas minas. Nossa protagonista é Lídia (Tamara Cortés), uma garota de 11 anos, bem moleca, e vive com sua amorosa família, composta de mulheres travestis. São elas que ocupam o espaço da feminilidade da trama, ao longo da trama. Essa família é um clã que cuida do bar local (ou seja, o salloon daquela vila) e elas são lideradas pela matriarca Boa (Paula Dinamarca), que também é conhecida como Mama Jiboia. Lídia é filha adotiva de Flamingo (Matías Catalán), uma performer nesse bar e, no momento, está passando por uma doença então desconhecida. 

Apesar dessas mulheres terem a sua função social, elas não são bem quistas por uma grande parte da população local, que evitam olhá-las diretamente nos olhos, em específico. A situação muda quando, uma noite, um homem alega que foi infectado pelo olhar de Flamingo e, mais tarde na mesma noite, um crime acontece na comunidade. Estes acontecimentos vão causar um novo atrito entre o clã de travestis e os homens da vila em que eles decidem então controlar os corpos das mulheres, como um meio de não se infectarem.

A obra se destaca pela representação trans, com personagens vívidas e com suas complexidades. Quando o filme enfoca em sua dinâmica e no cotidiano dessas personagens, ganha uma dimensão bastante rica. E dentre esse grupo de personagens, tenho que destacar aqui a atuação da Paula Dinamarca como Jiboia, principalmente na segunda metade da narrativa. Também vale ressaltar o vínculo criado pelas atuações de Cortés e Catalán, Lídia e Flamingo respectivamente, pois há uma sinergia entre elas denotada de carinho e respeito mútuo. A garota não é só a filha da vedete, mas, de certa forma, também é retratada pelo longa como a protetora de sua mãe.

Também há questão da AIDS que está intrinsecamente ligado com os mitos e crendices locais. O olhar neste caso é a metáfora para o sexo desprotegido. O ato de fitar longamente seus olhos em alguém é tão íntimo quanto despir-se para alguém. Essa informação deixa Lídia curiosa e ela tenta descobrir os motivos por trás dessa "lenda". Enquanto isso, vemos a evolução do embate entre os homens locais e as mulheres trans se desenvolver com contornos interessantes em um jogo de poder e amor entre as partes envolvidas; já que Jiboia consegue o fascínio e o respeito com um homem influente da comunidade.

No entanto, ao tentar balancear as dores e as delícias da vida, o filme comete erros crassos de tom, principalmente em uma parte específica que envolve um assassinato de uma travesti do clã. Além disso, há um subtrama de vingança por tal barbárie, o que seria uma batida clássica de narrativas de faroeste, que é deixado de lado em prol de uma "mensagem maior". Ao sair da sessão do filme, completamente enebriado e alienado, me deparei uma questão que transpassa o filme e boa parte da representação transgênero no cinema atual: este filme é para qual público, trans ou cisgênero?  

Por mais que o filme tenha personagens trans bem desenvolvidas, a sensibilidade do filme recaí sobre uma lógica ligada a sensibilidade cis, que precisa se comover com a situação daquelas mulheres e em um recorte específico de tempo em que muitas delas começam a perecer por causa da epidemia da AIDS. O público trans, inerentemente, sabe que esse período dizimou muitas de suas ancestrais e tem o direito de recontar essas experiências de vida com sensibilidade. 

A direção de Céspedes peca justamente neste quesito. O choque da violência fica pelo choque, no trauma em que uma situação dessas possa acarretar na vida de uma garota cis que está saindo da infância e entrando na adolescência. Parece que roteiro pesa tanto de um lado que precisa compensar de outro, ao contrapor a violência da narrativa com momentos mais leves, porém o clima continua pesado. É um filme feito milimetricamente para fazer o seu público-alvo chorar às custas de um sofrimento real. 

Apesar de sua beleza e qualidades, a obra, em suma, apresenta um tom inconsistente em prol que uma catarse manipulativa. A sensação que fica é que o espectador saia da sessão com um gosto agridoce, um pouco mais azedo do que doce, mas confuso com seus próprios sentimentos em relação com o rumo da narrativa. Uma dismorfia emocional.

*Esta crítica faz parte da cobertura do 27o Festival do Rio, realizado em 2025.

Autor:
                                  

Eduardo Cardoso é natural do Rio de Janeiro, Cidade Maravilhosa. Cardoso é graduado em Letras pela Universidade Federal Fluminense e mestre em Estudos de Linguagem na mesma instituição, ao investigar a relação entre a tragédia clássica com a filmografia de Yorgos Lanthimos. Também é escritor, tradutor e realizador queer. Durante a pandemia, trabalhou no projeto pessoal de tradução poética intitulado "Traduzindo Poesia Vozes Queer", com divulgação nas minhas redes sociais. E dirigiu, em 2025, seu primeiro curta-metragem, intitulado "atopos". Além disso, é viciado no letterboxd.

segunda-feira, 28 de julho de 2025

Fuga Para Odessa - A Tragédia Sagrada de James Gray

Fuga Para Odessa | Paramount Pictures

Fuga Para Odessa (1994) retrata, por meio de tradições da tragédia russa, a vida do jovem Reuben (Edward Furlong) no bairro de Brighton Beach, no Brooklyn, que vê o regresso de seu irmão Joshua (Tim Roth) após anos sem contato. A ocasião é desconfortável, pois a mãe de ambos (Vanessa Redgrave) está no leito de morte, e o pai dos dois (Maximilian Schell) não se mostra nem um pouco complacente com a presença de Joshua, que se tornou um criminoso nos anos de ausência.

James Gray – o diretor do filme - retrata o Brooklyn de uma maneira muito menos encantada que diretores como Martin Scorsese ou até mesmo Brian De Palma o retrataram. A fumaça dos bueiros é tóxica, o ambiente é desconfortavelmente frio, e os espaços mais vazios daquele movimentado lugar são inóspitos. As pessoas daquele bairro são traiçoeiras, e o protagonista Reuben soa tão passivo a essa situação quanto os espectadores.

Os ambientes claustrofóbicos da casa da família Shapira, ajudam a reforçar o aspecto de desconforto que o filme causa. Reuben é frequentemente agredido pelo seu pai, porém essas agressões se mostram escondidas entre as paredes e portas. Recurso este que poderia soar como covarde, porém servem de agregador ao sentimento de passividade do espectador diante aos acontecimentos, essencial nessa tragédia.

O filme, além de um drama familiar, possui elementos de filme de máfia, porém ele rejeita por muito a tradição clássica do gênero, e a subverte com influencias da tradição moderna. As mortes não são glamorosas como em Os Bons Companheiros (1990), mas frias e realistas como em Roma, Cidade Aberta (1945) ou os maiores clássicos do neorrealismo italiano.

E não é só nas ocasiões mais típicas do gênero de máfia que Gray mostra suas inspirações modernas. Nas relações religiosas que Gray estabelece no filme – provenientes da cultura judaica dos protagonistas – é visto uma clara referencia do autor a cineastas como Bresson e Visconti, que reconheciam a importância do rito religioso como uma força cinematográfica.

A tragédia é filmada nos últimos minutos do filme da mesma forma que Gray filmou o Brooklyn, seco e frio. Nada é moralista, como nos filmes de Scorsese, nem tenta mostrar uma evolução do protagonista, como nos filmes do Coppola. É só o cumulo de tudo aquilo que Gray nos mostra em aprox. 90 minutos de rodagem, com várias perguntas, e uma única resposta: “É isso aí”. 

Fuga Para Odessa é a obra-prima do cineasta James Gray, que recentemente buscou fazer filmes de estúdio, como Ad Astra – Rumo às Estrelas (2019) e Armageddon Time (2022), mas que nas suas origens possui trabalhos de cunho realmente singular, e que por muitas vezes são ignorados pela critica americana. Porém que não devem ser ignorados pela cinefilia, que sempre deve buscar o resgate da memória da linguagem cinematográfica.

Autor:


Meu nome é Rodolfo Luiz Vieira, tenho 17 anos e curso o terceiro ano do Ensino Médio. Produzo alguns curtas-metragens e escrevo textos sobre cinema. Meus filmes favoritos são: Em Ritmo de Fuga; La Haine; Eu Vos Saúdo, Maria e Pai e Filha.

Quarteto Fantástico: Primeiros Passos — Quatro Heróis, Um Galactus Faminto e Zero Ligações com o MCU (E Tá Tudo Bem!)

Quarteto Fantástico: Primeiros Passos | Disney


Forçados a equilibrar seus papéis como heróis com a força dos laços familiares que os unem, eles devem defender a Terra de um voraz deus espacial chamado Galactus e seu enigmático arauto, a Surfista Prateada. E, se o plano de Galactus de devorar o planeta inteiro já não fosse ruim o suficiente, tudo fica ainda mais pessoal.

O Quarteto mais famoso dos quadrinhos teve uma trajetória conturbada nos cinemas. Nos anos 2000, a já extinta 20th Century Fox lançou dois filmes com um tom leve e voltado para o público jovem — verdadeiros clássicos da "sessão da tarde". Apesar das críticas, essas produções acabaram conquistando um espaço no coração de muitos fãs, especialmente por fazerem parte da infância de uma geração. 

Em 2015, o grupo retornou às telonas com um novo elenco e uma abordagem mais sombria. No entanto, o resultado foi um fracasso: o filme sofreu com um ritmo arrastado e pouca ação envolvendo o quarteto, frustrando as expectativas. Agora, dez anos depois, o Quarteto Fantástico está de volta aos cinemas com um visual mais fiel aos quadrinhos e uma estética retrô-futurista que remete à clássica animação. A promessa é de uma nova fase mais autêntica e empolgante para os fãs do grupo.

Embora o público já esteja familiarizado com a história de origem do grupo graças às adaptações anteriores, o novo filme opta por recontá-la — mas de forma mais dinâmica e criativa, evocando o estilo das aberturas das animações de 1967 e 1994. Achei essa escolha bastante interessante. É verdade que o filme poderia simplesmente ter começado com os personagens já estabelecidos, sem revisitar a origem, mas a forma como ela é apresentada — como se fosse a abertura de um programa de TV — dá um toque nostálgico e original que funciona muito bem.

A essência de cada membro do Quarteto Fantástico está bem representada nesta nova adaptação. Reed Richards, o homem mais inteligente do mundo, ganha profundidade ao ser retratado em um novo momento de sua vida: a paternidade. É interessante ver como ele não apenas lida com questões científicas, mas também com o desafio emocional de ser pai, demonstrando uma postura mais madura e assumidamente de liderança, algo que faltou em versões anteriores. Sue Storm, agora casada com Reed e grávida, finalmente recebe o destaque que merece. 

Ao contrário das adaptações dos anos 2000, onde a personagem de Jessica Alba foi excessivamente sexualizada e muitas vezes reduzida ao papel de "namorada do herói", aqui Sue é tratada com mais respeito e importância. Ela se mostra inteligente, determinada e emocionalmente centrada, funcionando como o coração do grupo. Johnny Storm continua sendo o mais irreverente e impulsivo do time, mantendo o humor característico do personagem. 

No entanto, a abordagem desta vez é mais equilibrada — seu deboche não ultrapassa o limite da chatice, como acontecia com a versão de Chris Evans nos filmes anteriores. Isso torna o personagem mais carismático e menos caricato, o que ajuda o público a se conectar melhor com ele. Ben Grimm, o Coisa, permanece como o membro mais trágico do quarteto. Sua transformação ainda carrega o peso emocional da perda da aparência humana, mas aqui a abordagem é um pouco mais suave. Embora continue a sofrer com o preconceito e a solidão, há um toque de ternura ao mostrar que, apesar de sua aparência intimidadora, ele é adorado pelas crianças. Isso acrescenta uma camada de humanidade e esperança ao personagem, que muitas vezes foi retratado apenas como o "bruto com coração mole".

Inicialmente, fiquei reticente com a decisão de ambientar o filme em um universo separado do MCU. No entanto, essa escolha acabou fazendo sentido. O filme funciona bem de forma independente, o que é ótimo para quem nunca assistiu a nenhuma outra produção do Universo Cinematográfico da Marvel. Além disso, ao se passar em um universo alternativo, a história evita conflitos e furos de roteiro na complexa linha do tempo do MCU.

O segundo ato do filme tropeça em um problema comum em produções de super-heróis: a sensação de estagnação narrativa. Após um início empolgante e visualmente criativo, o ritmo desacelera consideravelmente, dando lugar a uma sequência de cenas que parecem girar em torno dos mesmos dilemas e discussões, especialmente envolvendo tecnobaboseiras e debates científicos pouco acessíveis. Os diálogos, embora tentem transmitir a genialidade de Reed e o embasamento da missão do grupo, acabam sendo excessivamente expositivos e pouco dinâmicos, o que compromete a fluidez da trama.

A impressão é de que os personagens estão presos em um ciclo de conversas teóricas, repetindo variações dos mesmos argumentos, sem que isso leve a grandes descobertas ou mudanças concretas na história. Essa repetição compromete um pouco o engajamento do espectador, que espera mais ação, conflito e desenvolvimento emocional. Ainda assim, mesmo com essa barrigada narrativa, o filme consegue se recuperar a tempo para entregar um terceiro ato mais empolgante e visualmente impressionante.

Quarteto Fantástico: Primeiros Passos representa um recomeço promissor para a equipe nos cinemas. Com uma estética inspirada nos quadrinhos clássicos, caracterizações mais cuidadosas e uma abordagem emocionalmente mais madura, o filme acerta em resgatar a essência dos personagens sem abrir mão da inovação. Apesar dos tropeços no ritmo durante o segundo ato, a produção consegue entregar uma experiência nostálgica, envolvente e visualmente marcante. É um sopro de renovação que não só honra o legado do grupo, mas também aponta um caminho empolgante para seu futuro nas telonas — dentro ou fora do MCU.

Autor:


Meu nome é João Pedro, sou estudante de Cinema e Audiovisual, ator e crítico cinematográfico. Apaixonado pela sétima arte e pela cultura nerd, dedico meu tempo a explorar e analisar as nuances do cinema e do entretenimento.

segunda-feira, 5 de maio de 2025

THUNDERBOLTS* - Quando "Heróis" Também Precisam de Terapia

THUNDERBOLTS | Disney


THUNDERBOLTS* é um grupo de anti-heróis – formado por Yelena Belova, Soldado Invernal, Agente Americano, Guardião Vermelho, Treinadora e a Fantasma. A Marvel Studios e uma equipe de veteranos independentes que se venderam apresentam uma equipe irreverente composta pela assassina deprimida Yelena Belova (Florence Pugh) e o grupo de desajustados menos aguardado do Universo Cinematográfico Marvel.

A premissa lembra inevitavelmente O Esquadrão Suicida, especialmente a versão de 2021 dirigida por James Gunn. Ambas as obras trazem personagens considerados vilões ou anti-heróis, reunidos pelo governo para executar missões secretas, perigosas e eticamente duvidosas — tarefas que os heróis convencionais jamais aceitariam. Assim como no filme da DC, Thunderbolts investe na ideia de redenção e no questionamento sobre o que realmente define alguém como herói ou vilão. E, novamente, vemos o conceito de usar “peças quebradas” para realizar o trabalho sujo.

Entre os personagens, John Walker (Agente Americano) continua com a mesma arrogância e impulsividade já mostradas na série Falcão e o Soldado Invernal. Ainda tentando se provar digno do legado do Capitão América, ele se impõe de maneira agressiva e autoritária, o que gera constantes atritos dentro da equipe — e certa antipatia por parte do público. Em contraste, Bob, inicialmente visto como um mero alívio cômico nos trailers e pôsteres, surpreende com uma construção mais emocional e humana. Desajeitado e deslocado entre figuras mais duronas, ele acaba se revelando um dos personagens mais cativantes da narrativa.

A relação entre Bob e Yelena é, talvez, um dos pontos mais sensíveis do filme. Enquanto os demais membros vivem em tensão constante, os dois desenvolvem um laço baseado na escuta, no respeito e na empatia. Essa amizade inesperada adiciona camadas de humanidade à história, oferecendo momentos de leveza e emoção que contrastam com a intensidade e o peso emocional do resto da trama.

Aliás, a doença mental é um elemento central em Thunderbolts*. Cada personagem carrega cicatrizes — físicas, emocionais ou morais — que os unem em silêncio. A ausência dos Vingadores é sentida como uma sombra constante, reforçando o clima de incerteza, esgotamento e desesperança. O filme surpreende ao colocar temas como depressão, trauma e vazio existencial no centro da narrativa, tratando a saúde mental não como um detalhe periférico, mas como parte essencial da jornada dos personagens.

No entanto, nem todos os membros da equipe recebem o mesmo cuidado narrativo. O Guardião Vermelho, apesar de entregar alguns momentos cômicos, acaba reduzido a esse papel, com pouca profundidade emocional ou relevância na trama. Já a Fantasma, com um passado marcado por sofrimento e habilidades únicas, surge com potencial, mas permanece subutilizada, deixando a sensação de que poderia ter contribuído muito mais.

Thunderbolts* Mesmo com esses desequilíbrios, se destaca por sua abordagem mais sombria e emocional dentro do universo Marvel. Ao invés de focar em grandes batalhas ou ameaças intergalácticas, o filme aposta em conflitos internos, relações humanas e a complexidade dos que vivem à margem do heroísmo. É uma história sobre falhas, sobre tentar fazer o certo mesmo sem ter certeza do que isso significa — e, sobretudo, sobre encontrar humanidade em meio ao caos.

Autor:


Meu nome é João Pedro, sou estudante de Cinema e Audiovisual, ator em formação e crítico cinematográfico. Apaixonado pela sétima arte e pela cultura nerd, dedico meu tempo a explorar e analisar as nuances do cinema e do entretenimento.

segunda-feira, 10 de março de 2025

O Macaco - Quando o Terror se Perde no Humor

O Macaco | Paris Filmes


Quando irmãos gêmeos encontram um misterioso macaco de corda, uma série de mortes ultrajantes destroem sua família. Vinte e cinco anos depois, o macaco começa uma nova matança, forçando os irmãos afastados a confrontar o brinquedo amaldiçoado.

O filme apresenta os irmãos gêmeos Hal e Bill, cujas personalidades distintas geram uma dinâmica intrigante e enriquecedora para a narrativa. Hal, o mais introvertido, traz uma postura calma e introspectiva, com uma leve ironia que adiciona camadas ao seu personagem, tornando-o uma figura complexa e interessante. Sua distância emocional não é apenas uma característica, mas uma forma de se proteger e observar o mundo ao seu redor com uma perspectiva única. Já Bill, o mais expansivo e impulsivo, é o oposto em muitos aspectos, mas essa diferença não diminui a profundidade de sua personalidade. Sua confiança e comportamento desinibido criam momentos de leveza e espontaneidade, equilibrando a história de forma refrescante.

A interação entre os dois irmãos é fundamental para o desenvolvimento da trama, pois, apesar de suas diferenças, a ligação emocional que compartilham é forte e palpável. A relação deles não só alimenta a narrativa, mas também explora de maneira sutil como dois indivíduos tão diferentes podem influenciar um ao outro, moldando suas escolhas e ações de forma significativa. Essa dinâmica traz uma camada emocional que ressoa com o público, mostrando que as complexidades dos relacionamentos fraternais podem ser tanto um ponto de tensão quanto de crescimento. Bill, em sua essência, lembra o personagem Richie de It - A Coisa, um outro exemplo de personagem desbocado e irreverente.

No entanto, longe de ser uma simples repetição, ele agrega um frescor ao filme, pois suas provocações e atitudes impulsivas, embora possam ser irritantes para alguns, também são um reflexo da vulnerabilidade e da busca por aceitação, temas universais e relevantes. O fato de o público poder, em algum momento, sentir um desgosto por esses comportamentos, acaba sendo um ponto positivo, pois mostra como o filme consegue gerar uma reação emocional verdadeira, algo que muitas obras buscam sem conseguir. A narrativa, ao explorar as diferenças e semelhanças entre Hal e Bill, cria uma trama rica e multifacetada, onde as relações humanas, com todas as suas complexidades, são o verdadeiro centro da história. O filme, assim, consegue fazer com que o público se envolva, refletindo sobre as escolhas dos personagens e como essas escolhas os moldam ao longo do tempo.

O monstro do filme, que é representado pelo próprio macaco, desempenha um papel sutil, mas eficaz, na construção do clima de tensão e mistério. Embora sua presença no início pareça limitada a gestos simples, como bater no tambor e exibir um sorriso macabro, há uma profundidade que vai além de suas ações superficiais. O sorriso do macaco, em particular, é uma escolha interessante, pois ele transmite uma sensação de desconforto que vai crescendo à medida que a história avança. Esse sorriso, que poderia ser facilmente descartado como algo superficial, acaba se tornando uma das imagens mais perturbadoras e simbólicas do filme, representando uma força estranha e ameaçadora que está sempre à espreita, pronta para emergir.

O filme utiliza essas pequenas ações para construir um ambiente de crescente tensão psicológica. A forma como o macaco parece agir com um propósito misterioso, sem explicações claras, faz com que o público se envolva mais profundamente com o mistério, mantendo o interesse pela figura enigmática e desafiando a percepção de que "monstros" precisam ser sempre fisicamente ameaçadores ou violentos. Essa construção do monstro através da sugestão e do comportamento enigmático também ressoa com o tema central do filme, onde o que é "normal" ou esperado está constantemente sendo desafiado. Ao não mostrar o monstro de maneira explícita e ao reduzir suas ações a gestos simples e, ainda assim, perturbadores, o filme faz um excelente uso do suspense psicológico, mantendo o público cativado e, ao mesmo tempo, questionando o que realmente está em jogo.

Eu cheguei a ler o material original O Macaco, que, quando lançado, era um livreto, mas foi posteriormente incluído na coleção de contos Tripulação de Esqueleto, de Stephen King. A obra original é uma narrativa completamente tensa e sombria, marcada pela atmosfera opressiva e pela construção de uma sensação crescente de terror psicológico. Ao contrário da adaptação cinematográfica, que tenta inserir elementos de comédia e humor ácido, o conto de King é imersivo e assustador, onde a tensão se mantém constante e a presença do macaco como figura ameaçadora não é suavizada por piadas ou ironias.

O terror é profundo, enraizado na perda, no medo do desconhecido e na vulnerabilidade humana, temas que King explora com maestria. No livro, o macaco representa algo muito mais do que um simples ser maligno; ele simboliza a inevitabilidade do mal e as consequências de ações passadas, criando uma experiência de horror psicológico que faz o leitor questionar a própria natureza da realidade. O conto original é uma reflexão perturbadora sobre o impacto do trauma e da obsessão, criando uma sensação de desespero quase palpável.

Ao transpor essa obra para o cinema, o tom sombrio e a profundidade emocional que King criou no conto acabaram sendo diluídos em favor de uma abordagem mais leve e irreverente. Enquanto o humor ácido na adaptação pode agradar a alguns, ele enfraquece o impacto do terror psicológico presente na obra original. O Macaco, como foi escrito, é uma história que nos confronta com o medo de forma imersiva, sem apelar para o alívio cômico. Assim, a adaptação perde, em grande parte, a intensidade daquilo que torna o conto original tão perturbador e eficaz em sua narrativa de terror.

O Macaco mistura terror psicológico e comédia irreverente, oferecendo uma dinâmica interessante entre os irmãos gêmeos. No entanto, ao suavizar o tom sombrio do conto original com humor ácido, perde a intensidade emocional e o impacto aterrador da obra de Stephen King.

Autor:


Meu nome é João Pedro, sou estudante de Cinema e Audiovisual, ator em formação e crítico cinematográfico. Apaixonado pela sétima arte e pela cultura nerd, dedico meu tempo a explorar e analisar as nuances do cinema e do entretenimento.

Telefone Preto 2 - Do Suspense Psicológico para a Hora do Pesadelo

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