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Ato Noturno (2025) | Vitrine Filmes |
O mundo é um palco, e todos os atores são seres políticos. Matias (Gabriel Faryas) é um jovem ator que acaba de entrar em uma prestigiada trupe de teatro porto alegrense. Ele divide um apartamento com seu parceiro de cena, Fábio (Henrique Barreira). Em um dos ensaios da nova produção, uma produtora de elenco (Kaya Rodrigues) aparece para recrutar atores para uma nova série de grande porte. Ela fica interessada em Fábio para o papel principal, porém Matias, ambicioso e determinado, decide ir atrás da mesma oportunidade.
Na mesma noite, Matias se encontra com uma gay discreta e fora do meio por meio de aplicativos de pegação. O boy em questão era a Eduardo Leit.. Desculpas, me engasguei aqui. Digo, o boy em questão é um vereador, Rafael (Cirillo Luna), que está em vias de começar sua campanha à prefeitura da cidade. Um homem de imagem pública. Eles chegam a um antigo casarão, que será o escritório de campanha antes de ser demolido, e lá começa um jogo de sedução entre os dois. À princípio, algo casual. Mas a sinergia que existe entre os dois corpos é demasiada que o instinto fala mais alto e Rafael deixa de propósito a janela aberta, com o risco de serem flagrados.
É assim que a ação de Ato Noturno (2025), o novo filme de Marcio Reolon e Filipe Matzembacher, começa. O terceiro longa-metragem da dupla de realizadores estreou no Festival de Berlim neste ano e finalmente desembarca nos festivais brasileiros, após um ótimo percurso internacional. E para fazer um delicioso edging nos espectadores curiosos, o filme chega nos cinemas em 15 de janeiro, como parte da seleção Sessão Vitrine Petrobras.
Voltando a discussão da obra... Esta é a segunda narrativa que os diretores exploram sua cidade natal, Porto Alegre, o anterior foi Tinta Bruta (2018). A cidade ainda parece fria na superfície, mas, desta vez, existe um calor particular à ela. Os lugares secretos e o cruising aparecem pontualmente, mas fazem parte de um cenário pertencente a uma tradição histórica queer da cidade no qual ambas as personagens navegam em buscam de libertação. Matias, para conseguir o papel na série, além de passar a perna em Fábio, também precisa simbolicamente ser aprisionado no armário da indústria audiovisual, enquanto Rafael tem um tesão insaciável do qual sua posição pública, e um tanto conservadora, não permite saciar sua sede, de fato.
Por mais que os diretores queiram fazer um comentário metatextual entre a performance nos palcos e na vida pública (algo que o texto de Rafael repete alguns momentos da obra) estou inclinado a um debate paralelo, mas complementar, sobre as armadilhas da performance de gênero. Enquanto Rafael se demonstra como um "homem de bem" visualmente, com um corte curto, bem penteado, roupas sociais, recheado de conotações visuais tradicionalmente masculinas, Matias tem uma identidade mais fluída compatível com sua joie de vivre, o que será um empecilho para a produtora de elenco. Ambas as personagens são submetidas a uma silenciamento físico de seus corpos para que suas imagens sejam mais comerciais a interesses alheios, e, em contrapartida, acabam ficando dessexualizadas no processo. E seus desejos aprisionados.
E como a narrativa pertence a seara do thriller erótico, bem no estilo Supercine, toma emprestado códigos e formulações que envolvem crimes, chantagens e invejas psicossexuais que se escalonam gradativamente a um ponto sem retorno. No caminho do casal, há o segurança Camilo (Ivo Müller) que é devoto da figura de Rafael. A rusga que existe entre ele e Matias perpassa por questões de classe e raça. Camilo é bruto e hostil com a protagonista, enquanto faz de tudo para que a imagem do político não seja manchada. Há uma linha tênue na antagonista entre a homofobia e homoerotismo, subtende-se que ele seja uma enrustida no fim das contas, que a aproxima da energia uma loira psicótica, presente nos clássicos do gênero, como Glenn Close em Atração Fatal, por exemplo.
Reolon & Matzembacher tem uma direção clara e bastante direta ao ponto, eles conduzem a narrativa com cuidado, de modo que as narrativas paralelas não se sobreponham uma em cima da outra e, no final, o afunilamento dessas tramas seja o mais orgânico possível. A direção de fotografia Luciana Basseggio é deslumbrante: as cores vibrantes pulsam da tela de forma tão saborosa os olhos, seja na iluminação, seja na textura de suas imagens, que dão um charme aos elementos decupados, com direitos a movimentos de câmera e de foco são pertinentes ao clima neo noir do longa. O elenco está afiado e embarca dos pés à cabeça com a proposta do projeto. Faryas e Müller, em especial, são os performers se destacam mais em suas respectivas presenças de tela.
Porém, seria indispensável falar sobre a trilha sonora composta pelo músico e muso indie Thiago Pethit & cia: a música dita o tom do filme, preenchendo os silêncios incômodos, marcando a sedução, a tensão, o medo com uma sensualidade acústica que eleva o filme, deixando o público vulnerável as próprias sensações assim que os acordes das cordas começam a tocar. Um arrepio na nuca, seguido de um beijo. Pethit provoca o público com preliminares acústicas antes de se entregar a luxúria da carne. Um maestro da intimidade, ele canta esses corpos elétricos que querem gritar com gozo e tesão, entalados na garganta. Um aedo interpretando o papel de voyeur.
Ato Noturno é grito pela liberdade individual ao tesão. Um thriller erótico sedutor que corteja o público a entrar numa jornada arriscada e cheia de energia para gastar. Um filme que fala de performance e identidade, sem forçar a alegoria para o espectador. Um espetáculo visual e sensorial. Talvez um pouco limpo demais ou um pouco contido na execução de suas ideias mais ousadas, mas ainda consegue enlaçar seu público para deflorá-lo aos poucos. O risco pela liberdade. O gozo público. E, enfim, as máscaras caem de cena.
E você, leitore? Já performou um ato noturno hoje?
*Esta crítica faz parte da cobertura do 27o Festival do Rio, realizado em 2025.
Obs: Queria mandar um beijo para o moderador do debate após a sessão, Pedro Henrique França, por ter tirado o elefante da sala (também conhecido como tópico "Dudu Milk") logo no início da conversa com a produção do filme.
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