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segunda-feira, 20 de outubro de 2025

Telefone Preto 2 - Do Suspense Psicológico para a Hora do Pesadelo

Telefone Preto 2 | Universal Pictures

Pesadelos assombram Gwen, de 15 anos, enquanto ela recebe chamadas do telefone preto e tem visões perturbadoras de três rapazes sendo perseguidos em um acampamento de inverno. Com a ajuda de seu irmão, ela deve agora confrontar um assassino que se tornou ainda mais poderoso na morte.

O Primeiro Telefone Preto seguiu a linha do suspensa psicológico, centrado em um garoto sequestrado por um assassino em série. Com elementos sobrenaturais, o protagonista encontra um telefone antigo em seu cativeiro, o que lhe permite se comunicar com as vítimas anteriores do criminoso e, assim, tentar escapar. No segundo filme da franquia, a história se expande, mas mantém algumas semelhanças com o primeiro. O telefone não está mais no cativeiro, mas sim em uma cabine telefônica, localizada em um acampamento onde o protagonista, Finney, vai com sua irmã, Gwen. Ao contrário do primeiro filme, Finney não está preso, mas a tensão permanece. A principal novidade é que Gwen, irmã de Finney, começa a ter pesadelos premonitórios sobre o assassino, o que faz lembrar o clássico A Hora do Pesadelo. Ela também corre o risco de morrer na vida real caso morra em seus sonhos, criando um paralelismo com os eventos que envolvem o assasino e seu irmão.

Embora o filme traga algumas boas ideias e a continuidade dos elementos sobrenaturais que funcionaram no primeiro, a sequência não consegue replicar a tensão psicológica que fez o original tão eficaz. Apesar da premissa do telefone ter mudado, o desenvolvimento do mistério se arrastar um pouco mais do que no seu antecessor. A comparação com A Hora do Pesadelo é interessante, especialmente pela dinâmica dos pesadelos premonitórios, mas, no geral, o filme falha em aproveitar plenamente o potencial da trama. Isso faz com que a sequência se sustente mais por nostalgia e elementos familiares do que por inovação.

No primeiro filme, o foco estava no protagonista, Finney, que era a principal vítima do sequestrador. Gwen, embora tivesse um papel relevante, era mais uma figura de apoio — a irmã caçula que buscava pistas sobre o desaparecimento do irmão. No entanto, em Telefone Preto 2, gostei de ver uma expansão signficativa de seu papel. Agora, ela não é apenas uma personagem secundária, mas uma parte fundamental da trama. Além de continuar sendo uma presença importante na busca por Finney, Gwen também se vê em perigo, pois seus pesadelos premonitórios a colocam em risco, ampliando ainda mais a tensão e o suspense da história. Esse aprofundamento no papel de Gwen traz uma dinâmica mais interessante, especialmente porque ela deixa de ser uma mera coadjuvante para se tornar uma protagonista no enfrentamento do assassino. A sequência acerta ao dar a ela mais espaço, equilibrando a narrativa e oferecendo uma perspectiva adicional sobre a ameaça que paira sobre os personagens. Essa ampliação da trama, ao mesmo tempo em que mantém o suspense, torna o filme mais envolvente e menos centrado apenas no sofrimento de Finney, o que traz um ar de frescor e evolução ao enredo.

Nos sonhos de Gwen, a alteração da estética da câmera, dando-lhe a aparência de um filme antigo, quase como se estivesse sendo visto através de uma lente embaçada ou desgastada. Esse recurso visual não só cria uma distinção clara entre os mundos oníricos e reais, mas também intensifica a atmosfera de mistério e tensão dos pesadelos de Gwen. A escolha de simular esse estilo "retrô" remete a filmes clássicos de terror, estabelecendo uma conexão com o gênero de forma sutil e eficaz. Quando os sonhos terminam e Gwen retorna ao mundo real, a câmera volta ao seu formato habitual, o que reforça ainda mais a ideia de que, nos momentos em que ela está dormindo, está em uma realidade completamente diferente — mais distorcida e perigosa. Essa técnica é habilidosa porque não só serve a uma função narrativa, mas também contribui para a construção da tensão emocional e visual da história. Ao longo do filme, essa mudança estilística ajuda a mergulhar o espectador na experiência de Gwen, tornando seus pesadelos ainda mais palpáveis e imersivos.

Telefone Preto 2 expande a história do primeiro filme, mas, embora traga algumas novidades interessantes, não consegue capturar a mesma tensão psicológica que fez o original tão impactante. A principal adição, que é o aprofundamento no papel de Gwen, funciona bem em termos de dar à personagem mais relevância e complexidade, mas o desenvolvimento do mistério acaba sendo mais arrastado do que no primeiro filme. A inclusão dos pesadelos de Gwen, é um bom toque, mas não consegue gerar a mesma sensação de desespero que o cativeiro de Finney proporcionava.

Autor:


Meu nome é João Pedro, sou estudante de Cinema e Audiovisual, ator e crítico cinematográfico. Apaixonado pela sétima arte e pela cultura nerd, dedico meu tempo a explorar e analisar as nuances do cinema e do entretenimento.

The Mastermind (2025) é a balada de um himbo alienado

 

The Mastermind (2025) | MUBI, Imagem Filmes

Imagina o seguinte cenário: estamos no meio-oeste americano, nos anos 1970. O presidente é Richard Nixon e os Estados Unidos estão no meio da contracultura e da guerra do Vietnã. O clima é tensão e de crise no ar. Mas JB Mooney (Josh O'Connor) não poderia se importar menos com isso, afinal ele tem outras coisas em mente. 

JB era um promissor um aluno de artes visuais que desistiu da cadeira e agora ele trabalha mal ou bem como marceneiro. Ele mora em uma cidade de Massachusetts, é casado com Terri (Alana Haim), com quem tem dois adoráveis filhos, um deles, Tommy (Jasper Thompson), é muito ligado nele. Além disso, não tem uma boa relação com o pai (Bill Camp) que é um juiz e, eventualmente, recorre à mãe (Hope Davis) por um dinheiro extra. Apesar da esposa trabalhar como secretária, ele fica à deriva, largado entre trabalhos.

Em uma visita do museu de arte local, JB fica fascinado por uma série de pinturas abstratas de um artista ligado ao seu passado. E, ao perceber que a segurança da sala em que obras estão expostas é bem ineficaz, ele começa a maquinar um plano, um tanto ingênuo, de roubar estas pinturas do museu para revendê-las no mercado clandestino. Ele pega mais uma quantia com a mãe, monta um esquema e uma equipe bem precária, porém de mestre do crime, ele não tem nada. E o tiro pode sair pela culatra.

The Mastermind (2025), que acabou de passar no Festival do Rio e chega nos cinemas dia 16/10, é o novo filme da diretora Kelly Reichardt. Os filmes de Reichardt são contemplativos e que tomam um tempo antes da narrativa engrenar de fato (caso o espectador não estiver familiarizado com seu estilo), mas a sua construção de personagens é tão cativante que torna-se o principal fio condutor de suas narrativas. Ou seja, o estudo de personagem é o que sustenta suas obras. 

Existe uma certa ironia no título do longa, pois JB acha que tem o controle meticuloso de todo o esquema que arquiteta, mas fundo é ele quem está menos preparado. A performance magnífica de Josh O'Connor brilha com essa personagem passiva e ambiciosa, de expressão paciente e perdida. Reichardt desenvolve os desejos e as motivações da protagonista para cometer tal crime, mesmo não perdendo o tom cômico que impregna na obra. Se ele apresenta de forma "apolítica" no exterior, JB faz parte de uma geração perdida, alienada, que está na corda bamba; seus desejos são frustrados e encontra, no sentimento de rebelião moral, uma reinvenção própria. 

Comete o crime para se reconectar com quem ele havia sido antes, porém as pessoas mudam; e essa busca pela esta imagem passada é vã. Por mais que a personagem de O'Connor seja patética aos olhos do público, a direção consegue dar uma dimensão emocional que nos faz sentir empatia por ele, ao focar nos seus dilemas morais, como um retrato de uma "americana" decadente durante um período histórico turbulento. O american way of life é deprimente, e todo departamento de design de produção e de fotografia deixam isso aparente com muitos tons frios e terrosos. A vida quase sendo uma natureza morta. E trilha sonora de jazz é potente, os sons de Rob Mazurek dão uma vida ao filme que contrasta com seu visual pálido.

Além de O'Connor, o elenco está muito bem de forma geral. Alana Haim tem um performance bem contida, mas que consegue transparecer todas as inseguranças e sentimentos de sua personagem, principalmente relacionadas ao seu casamento. As crianças que fazem os filhos de JB, Sterling e Jasper Thompson, são carismáticos e uns amores em tela. Mas também gostaria de ressaltar a ponta de John Magaro e Gabby Hoffmann que fazem um casal de amigos de JB, com quem ele encontra durante sua fuga da polícia.

Reichardt cria aqui uma comédia de erros, que não deseja transformar sua protagonista em uma caricatura, mas como uma representação de uma geração alienada em meio a uma crise. Uma personagem que se reinventa, mas sem consertar os erros. A busca pela moral de um homem precipitado. A busca pelos fantasmas do passado em meio a um futuro incerto. Uma tentativa de homenagem a Louis Malle e Robert Bresson. Tem ironia, mas, debaixo de todo o frio, também há um coração.

*Esta crítica faz parte da cobertura do 27o Festival do Rio, realizado em 2025, visto em cabine de imprensa.

Autor:
                                  

Eduardo Cardoso é natural do Rio de Janeiro, Cidade Maravilhosa. Cardoso é graduado em Letras pela Universidade Federal Fluminense e mestre em Estudos de Linguagem na mesma instituição, ao investigar a relação entre a tragédia clássica com a filmografia de Yorgos Lanthimos. Também é escritor, tradutor e realizador queer. Durante a pandemia, trabalhou no projeto pessoal de tradução poética intitulado "Traduzindo Poesia Vozes Queer", com divulgação nas minhas redes sociais. E dirigiu, em 2025, seu primeiro curta-metragem, intitulado "atopos". Além disso, é viciado no letterboxd. 

Valor Sentimental (2025) mostra que a ferida é profunda

 

Valor Sentimental (2025) | MUBI

A casa é uma personagem, um ponto de referência. Dentro do seu espaço delimitado, mas nunca parado, podem conter diversas histórias, pessoas e traumas que faz parte de sua genealogia. Suas fundações é o palco em que outras narrativas se desenvolvem ao longos dos anos, décadas e séculos. E elas deixam marcas, rachaduras que, se cuidar bem dela, podem ser remediadas. A casa da família Borg, que sobreviveu por gerações, é uma delas.  
 
O diretor de cinema, Gustav (Stellan Skarsgård), morava lá com a esposa e as duas filhas, Nora (Renate Reinsve) e Agnes (Inga Ibsdotter Lilleaas). Os pais não se davam bem e a relação afundava tão violentamente que este desentendimento afeta principalmente Nora que irá desenvolver um problema gravíssimo de ansiedade e de depressão. E após o divórcio, Gustav se torna o famoso "pai ausente" da família; muito mais focado no trabalho do que no cotidiano das filhas.

 Anos se passam, as filhas se tornam já adultas e independentes, Nora se torna uma atriz, enquanto Agnes, que atuou em algumas obras de seu pai quando criança, é uma pesquisadora acadêmica. E a mãe delas, que ainda morava na casa, falece. E com isso, Gustav volta ao cotidiano da família. Para o pavor de Nora, que tem assuntos bem não resolvidos com seu pai, ele oferece a ela o papel principal de um novo projeto que, em teoria, teria a ver com a história da família. Achando que Gustav está tentando se aproveitar do momento atual, ela recusa  com uma certeza absoluta o papel. 

No entanto, em uma viagem de trabalho Gustav acaba conhecendo a atriz americana Rachel Kemp (Elle Fanning) que é fã justamente do filme que ele faz com Agnes vários anos atrás. E, depois disso, ele volta a Noruega com o financiamento do filme e com Rachel no papel principal, o que abala as estruturas emocionais de Nora e de toda dinâmica familiar.

Valor Sentimental (2025) é novo longa de Joachim Trier, no qual ele repete a parceria com a Renate Reinsve no papel principal e com o roteiro de Eskil Vogt de seu projeto anterior, A Pior Pessoa do Mundo (2021). Se Trier e Vogt exploram a vida e o crescimento pessoal e emocional de uma personagem na obra passada, agora eles exploram todo um micro ecossistema com mais agentes para brincar. Todas as personagens -  Nora, Gustav, Agnes e Rachel - possuem um arco narrativo que se entrelaçam entre si. Elas investigam, de uma forma ou outra, as feridas que atormentam a sua psique. 

Existe uma certa homenagem ao trabalho da obra de Bergman em certos momentos e planos: o uso de um ambiente central, das imagens do duplo, dos perfis destacados, os pontos de vista; em especial, ao filme Gritos e Sussurros (1972), que a dupla criativa constrói, sem deixar uma visão autoral de lado. De fato, as alusões existem, mas são sutis e não dominam a trama vigente. Gustav poderia ser qualquer diretor aclamado com relacionamento familiar disfuncional, e não necessariamente uma caricatura direta do diretor sueco. Afinal,  há exemplos deste "tipo" de personagem para fora da Escandinávia, um certo "apelo universal" se podemos dizer assim. 

Mas isso é uma cereja de um saboroso de um bolo que é preparado com um tempo, de sabores complexos, e bem estruturado. A direção de Trier continua sendo bastante forte e o roteiro de Vogt tem uma maturidade impressionante. Se A Pior Pessoa tem uma energia ligada a juventude, Valor possui uma contemplação geracional que fisga o espectador pela construção de personagem e a dinâmica articulada aqui.

Nora e Gustav, atriz e diretor, são comunicadores culturais, porém não conseguem falar aquilo que um pensa sobre o outro. Há uma tentativa, mas as feridas abertas, ainda cobertas de sangue e sal, não os deixam falar. Suas almas gritam pelo anseio pela comunicação, mas os corpos travam, criam barreiras em que as duas partes não se encontram no meio. Se Renate Reinsve encantou o público com a sua Julie no longa anterior do realizador, aqui, como a introspectiva Nora, ela dá o outro lado da moeda. Existe algo muito palpável em sua performance que toca lugares profundos, sem cair em maneirismos e exageros na atuação. Ela consegue capturar a sensação da personagem estar sem chão que é arrasadora. 

E não muito longe do departamento da atuação está o veterano Stellan Skarsgård, que rouba a cena com o carismático Gustav aos olhos públicos, mas que esconde dentro de si aquele olhar de uma tristeza profunda. Sua personagem se depara com o legado de sua carreira que, apesar da importância, não há novo durante décadas e com a própria brevidade da vida. Tem pose de bon vivant, mas, no fundo, existe uma solidão que paira sobre sua cabeça. Skarsgård está no seu melhor papel de sua carreira até agora e rouba a cena quando aparece.

Também é preciso destacar as performances de Lilleaas e Fanning que estão ótimas em seus respectivos papéis. Agnes é a mediadora de Nora e Gustav e, ao saber que o pai quer escalar seu filho no projeto, ela vai atrás da história de família para tentar descobrir as intenções do texto de Gustav. Agnes é linha que liga a narrativa principal com a subtrama da qual somos introduzidos no início, através dela descobrimos marcas e traumas do passado que fizeram parte da história da genealogia familiar. Ela é mensageira de algo maior. 

Enquanto isso, Rachel, uma outsider, enfrenta problemas com a construção de sua personagem. Apesar de dar seu melhor, ela sente que algo está errado com projeto. Seria que ela entende o texto decifrado de Gustav ou seria ela o problema? A pessoa errada no momento errado? Qual seria o verdadeiro significado a esta personagem?

 Em suma, Valor Sentimental triangula gerações de família e de artistas para tocar temas que transpassam aspectos públicos e privados. É um conto sobre traumas e questões existenciais. A possibilidade plural da arte em tocar em assuntos sensíveis ou pessoais. De certa forma, um filme performático, cujas páginas do roteiro são a vida de suas personagens. Um trabalho maduro e sólido.

*Esta crítica faz parte da cobertura do 27o Festival do Rio, realizado em 2025.

Autor:
                                  

Eduardo Cardoso é natural do Rio de Janeiro, Cidade Maravilhosa. Cardoso é graduado em Letras pela Universidade Federal Fluminense e mestre em Estudos de Linguagem na mesma instituição, ao investigar a relação entre a tragédia clássica com a filmografia de Yorgos Lanthimos. Também é escritor, tradutor e realizador queer. Durante a pandemia, trabalhou no projeto pessoal de tradução poética intitulado "Traduzindo Poesia Vozes Queer", com divulgação nas minhas redes sociais. E dirigiu, em 2025, seu primeiro curta-metragem, intitulado "atopos". Além disso, é viciado no letterboxd. 

O Riso e a Faca (2025) viaja pelos diversos universos da Guiné-Bissau

 

O Riso e a Faca (2025) | Vitrine Filmes

A Guiné-Bissau conquistou sua independência do colonialismo europeu em 1973. O país se divide no continente e as ilhas ao redor. Antes da chegada dos portugueses, a região integrava o Reino de Gabu (1537-1867) e o Império Mali (1235-1670), habitada pelas etnias balantas, fulas e malinquês. Mesmo com uma ávida resistência, se tornou um entreposto, junto com Cabo-Verde, das rotas dos navios negreiros e se tornou uma região negligenciada pelos europeus. E, ao contrário de Angola e Moçambique, por exemplo, é uma nação rural (caboverdianos, por exemplo, a enxergam historicamente como uma "roça") e focada na agricultura. Além disso, a região é englobada por colônias francesas com grupos islamizados. 

A partir do século XIX, a situação pirou: a mão da metrópole pesou nas colônias africanas, após a independência do Brasil, o que causou em uma série de violências físicas e institucionais (o estatuto de indigenato, o regime de contrato) que se perpetuaram no século XX com o regime salazarista. A libertação só foi possível através de uma luta armada  que durou entre 1963 a 73 e Portugal somente reconheceu a independência, em 1974, após a morte de Salazar. No entanto, o país tem um histórico recorrente de instabilidade política, no que resultou em uma Guerra Civil no final dos anos 90. Não é à toa que a produção tem a participação da poeta Odete Semedo (1959-) em uma ponta em que sua personagem reconta na língua criola as dificuldades de seus ancestrais durante esse período.

Portanto, temos aqui um nação com um passado rico, um trauma colonial, uma história de resistência política e problemas políticos e econômicos. E é neste cenário diverso que Sérgio (Sérgio Coragem), um engenheiro ambiental bissexual português, vai acabar se deparando em O Riso e a Faca (2025), o novo épico do diretor Pedro Pinho. O filme é uma coprodução entre Portugal, Brasil e França, participou da mostra Un Certain Regard do Festival de Cannes, em que ganhou prêmio de atuação feminina. E o mais importante para o público que for conferir, ele tem três horas e meia de duração; o que pode ser um empecilho para alguns espectadores, mas ainda é uma obra engajante.

Bem... Sérgio viaja de carro desde Lisboa para Bissau, atravessando o deserto do Saara, para trabalhar a serviço de uma ONG para conduzir um estudo ambiental sobre a viabilidade de uma construção de uma nova estrada que conecta o litoral do país até o deserto, de modo que passe pelas várias aldeias do interior. Muitos cidadãos são favor e outros são contra a construção. O problema é que a construção não pode causar o desmatamento de uma área e nem afetar a prática do cultivo do arroz, feita de maneira milenar e artesanalmente por meio de barragens, e ela tem que começar antes do período das chuvas. O que bota uma baita pressão nas costas de Sérgio, uma vez que o benfeitor da obra quer que ela comece o mais rápido possível.

Além disso, o caminho dele irá se cruzar com mais duas personagens importantes para a narrativa: Diara (Cleo Diára), uma jovem que vive fazendo corres de compra e revenda pelos centros urbanos da Guiné-Bissau e Guilherme (Jonathan Guilherme), um imigrante brasileiro que tenta se reconectar com suas raízes e mantem, junto com Diara, uma espécie de salão-bar no subúrbio da cidade. E obviamente, Sérgio irá gravitar entre os dois de modo que não sabem quais são suas verdadeiras intenções desse europeu recém chegado. Enquanto conduz a sua pesquisa, Sérgio vai começar a criar uma paranoia, um certo medo de que algo ruim está prestes a acontecer com ele.

Pedro Pinho tem um material rico em mãos e tem a ambição de explorar diversas facetas e histórias que a terra de Guiné-Bissau tem a oferecer. A direção tem um olhar quase semidocumental, com olhar antropológico, e o roteiro colaborativo escrito por 10(!) roteiristas transmite tal ambição, embora, ao mesmo tempo, ponha o trabalho em uma posição vulnerável, uma vez que muitos chefs na mesma cozinha possa dar errado. Mas o tempo de tela consegue dar o foco necessário do ponto A a Z, sem que haja uma parte subdesenvolvida. 

O que acontece é o contrário. Muitas as cenas do longa são bastante longas com direitos a monólogos e com direito a grandes momentos de atuação, que são ótimos, mas seguidos de um após outro se torna um tanto cansativo numa primeira vista. Porém, a atuação naturalista dos atores segura muito bem a bola que a direção joga a eles, principalmente a cativante Cleo Diára que é magnética em cena.

Sérgio, apesar de ser bem presente no cotidiano das pessoas que estão ao seu redor, seja na capital, seja nas aldeias, seja com as equipes de construção, seja com pessoas em posições vulneráveis do que ele, tem duas grandes questões: é muito ingênuo - a ponto de cometar as mais diversas gafes - e, a pior coisa que um branco possa fazer em um país africano, tem uma síndrome de salvador. Ele é a caricatura de uma geração que pensa ser descontruída, mas de desconstrução não tem nada (como aponta uma trabalhadora do sexo, provavelmente traficada, em dado momento da trama).

É essa característica do engenheiro que remonta a um passado do pensamento civilizatório colonial que Gui e Diára identificam de cara e nunca estão 100% à vontade com ele, por mais que haja uma atração das duas partes pela mesma pessoa. (O momento em que Diára fala: "Sabes que eu acho nojento, Sérgio? Nojento é poder recusar 150 mil euros e depois sentir-se melhor consigo." está gravado na minha mente até agora)

Além disso, filme também discute sobre a questão a "mãe África" e o do pensamento do pan-africanismo através da personagem de Gui, que se instala em Guiné-Bissau em busca de uma ancestralidade perdida e tem um choque de realidade ao interagir com a população nativa que não o vê com um deles. O que para um público brasileiro, promoveria debates interessantes sobre percepções etnoculturais dentro dos espaços da negritude.

O Riso e a Faca é um conto sobre a cacofonia de uma terra pilhada de suas tradições e culturas e a falta de conexão do ser e o espaço. É sobre dicotomia entre o que deve ser preservado e o progresso promovido pela restrita burguesia. É sobre laços que são atados e desatados, uma correnteza que puxa as pessoas uma com as outras. O retrato de uma terra que ainda está sendo pilhada em nome do progresso neoliberal. A dicotomia e contradição de um povo. Conflitos de interesses. O passado e o futuro na balança. O que resiste é são as relações que são feitas naquele espaço e tempo. Assim que Sérgio compreender isso, ele pode se livrar as amarras do passado colonial, enxergar o que realmente importa e ter uma chance de ficar em pé de igualdade com os nativos. Uma nova perspectiva. É um filme que viaja pelos diversos universos da Guiné-Bissau e a jornada, por mais que instável, é recompensadora.

*Esta crítica faz parte da cobertura do 27o Festival do Rio, realizado em 2025, visto em cabine de imprensa.

Autor:
                                  

Eduardo Cardoso é natural do Rio de Janeiro, Cidade Maravilhosa. Cardoso é graduado em Letras pela Universidade Federal Fluminense e mestre em Estudos de Linguagem na mesma instituição, ao investigar a relação entre a tragédia clássica com a filmografia de Yorgos Lanthimos. Também é escritor, tradutor e realizador queer. Durante a pandemia, trabalhou no projeto pessoal de tradução poética intitulado "Traduzindo Poesia Vozes Queer", com divulgação nas minhas redes sociais. E dirigiu, em 2025, seu primeiro curta-metragem, intitulado "atopos". Além disso, é viciado no letterboxd. 

Fernão de Magalhães (2025) disserta sobre o processo colonizatório

 

Fernão de Magalhães (2025) | Filmes do Estação

A virada do século XV para o século XVI não só marcou o fim da Idade Média na Europa, mas também foi marcada pelas Grandes Navegações que os reinos europeus promoviam para justamente encontrar novas rotas comerciais de especiarias. Todos queriam achar o mais rápido e ter o controle total dessa "mina de ouro". 

E como todo brasileiro sabe, porque isso acarreta um pouco na nossa formação histórica, a maior potência naquela época era o reino de Portugal. Enquanto o território brasileiro não sofria das intervenções das garras coloniais, a vítima da vez eram as nações asiáticas. E durante a brutal ocupação de Malaca, que hoje pertence à Malásia, pelo Vice-Rei das Índias Portuguesas que conhecemos Fernão de Magalhães, o objeto de estudo do novo épico do diretor filipino Lav Diaz.

Fernão de Magalhães (1480-1522) foi um soldado do exército imperial que chegou ao posto de capitão e, a mando do rei de Portugal, foi enviado para auxiliar na conquista de territórios das Índias, que, após se ferir em batalha, volta para a metrópole para se recuperar, junto com alguns espólios, e começa a maquinar uma nova rota de navegação que, à princípio, iria assegurar a posição de Portugal, contra os avanços das expedições castelhanas: uma rota que desse uma volta ao globo. 

No entanto, para a sua surpresa o rei rejeita a proposta e o expulsa da corte portuguesa. Sentindo-se traído, Magalhães vai, então, para o reino de Castela (Espanha) que financia a expedição da nova rota. E talvez o rei português tenha razão, pois a viagem é tumultuada com Fernão passando cada dia mais esquizofrênico, tentativa de motim e boa parte de sua tripulação perecendo pelos diversos tipos de doenças e insolações durante o percurso. Para sua sorte o trajeto de Magalhães o leva para o reino de Mactan, na ilha de Cebu, região que hoje forma parte das Filipinas. 

O roteiro nós conhecemos bem... Magalhães conhece o líder da comunidade, traz presentes para firmar uma relação mais estreita, introduz os nativos ao cristianismo e, depois disso, quem não estiver de acordo com a visão de mundo dos colonizadores, será alvo de uma represália em nome da corte e da igreja. E essa tentativa de dominar  esse povo que será a ruína ou, melhor dizendo o último prego no caixão de Magalhães.

Nesta obra, Lav Diaz, apesar de fazer um filme que dialoga muito ao estilo do cinema português, não tem nenhuma intenção de glorificar o passado de uma nação europeia, ao invés disso, ele usa dessa personagem histórica para construir uma ponte cultural e temporal que tem a ver com o início de uma transformação muito importante e traumática da história das Filipinas. 

Porém, Diaz tem uma intenção de dimensionar algo que foi tão particular, para uma universalização ampla do contexto colonizatório. Algo com que possamos nos relacionar. Um exemplo disso já aparece na primeira cena do filme, ainda em Malaca, em que vemos uma mulher no rio coletando água numa jarra e quando ela vê os portugueses se aproximando, a expressão dela muda para um terror absoluto, como se o chão estivesse sendo tirado dela, ficando á mercê da morte.

Fernão não sabe, mas ele tem dentro de si, uma autodestruição  que causa tanto mal aqueles que se opõem à coroa quanto aos seus entes queridos. Quem interpreta o Magalhães do título é o ator mexicano Gael García Bernal, que está bem no papel, apesar de esbarrar na fronteira entre o português e o espanhol em alguns momentos. 

Apesar da personagem ter sido considerada como um "herói" (e com muitas aspas!) por bons séculos na história portuguesa, aqui vemos um Magalhães pequeno que tenta desafiar as forças que o mundo externo põe sobre seus ombros, um homem com suas complexidades e dores, mas que também, à mando de quem serve, um homem crudelíssimo e paranoico. 

Fernão, aqui, não é só uma personagem, mas uma representação da ambição do projeto colonial. Um garimpeiro em busca de seu ouro, mesmo que às custas de uma população, com sua truculência política e espiritual. Um instrumento do estado e do papa. Um agente do genocídio. Por todo lado que passa, ele causa o pânico e a destruição.

Por outro lado, Diaz desvia a atenção de Magalhães para outras personagens que servem para contar esse capítulo da história, pessoas marginalizadas e povos que tiveram contato com a expedição, como Enrique (Amado Arjay Babon), um filipino escravizado que serve como o tradutor oficial de Magalhães durante a viagem, e Rajah Humabon (Ronnie Lazaro), o líder dos Mactan que, após os espanhóis forçarem seu poder e forçarem os nativos ao cristianismo, irá declarar guerra contra a armada de Fernão. 

Diaz compõe tableaux vivants assustadoramente lindos, demonstrando a beleza e a violência do mundo, tudo em cena é meticulosamente posto, em planos longos que dão o tempo do espectador paciente de absorver e devorar cada detalhe. O uso da fotografia e iluminação é um espetáculo à parte. E todo o trabalho de som do longa é interessantíssimo, ao produzir uma textura muito única e de focar nos sons da natureza que envolvem o espectador para dentro de seu mundo. É um orgasmo visual e auditivo: em um momento, você se sente relaxado com o som do mato ou da chuva; e no outro, você leva um susto com o som dos tiros dos canhões em alto mar. 

O realizador faz parte do movimento do slow cinema, em que realizadores fazem filmes mais lentos e/ou contemplativos. Se, dentro do cinema asiático, o diretor tailandês Apichatpong Weerathakul é o exemplo mais popular, Lav Diaz é o mais extremo: seus projetos tem fama de serem considerados alguns dos filmes mais longos da história com oito ou até dez horas de duração. Fernão de Magalhães (2025) tem somente duas horas e meia de duração, o que torna um de seus longas mais acessíveis ao público. 

No entanto, a impressão que passa é de um corte mais comercial, dado em vista que o filme foi selecionado para o Festival de Cannes deste ano e é o representante das Filipinas a uma vaga ao Oscar de Melhor Filme Internacional em 2026. A sensação que fica é, apesar de ter passado uma jornada inteira, ainda falta alguma coisa a mais. Talvez menos tempo na caravela e um pouco mais de tempo desenvolvendo o núcleo filipino no terceiro ato do filme? Talvez é provável Diaz trabalhe mesmo no corte de nove horas, citado durante sua passagem em Cannes, para algum momento no futuro, e, possivelmente, teremos as respostas. 

Mas o que temos agora é um épico sobre um homem que tenta impor sua glória que um dia, certamente, caíra por aqueles que tentaram oprimir. Uma obra de arte que precisa ser apreciada no seu próprio tempo e ritmo. Uma dissertação sobre o processo colonizatório: as veias abertas das Filipinas. Perfeito para ver num fim de tarde, acompanhado de um bom café.

*Esta crítica faz parte da cobertura do 27o Festival do Rio, realizado em 2025.

Autor:
                                  

Eduardo Cardoso é natural do Rio de Janeiro, Cidade Maravilhosa. Cardoso é graduado em Letras pela Universidade Federal Fluminense e mestre em Estudos de Linguagem na mesma instituição, ao investigar a relação entre a tragédia clássica com a filmografia de Yorgos Lanthimos. Também é escritor, tradutor e realizador queer. Durante a pandemia, trabalhou no projeto pessoal de tradução poética intitulado "Traduzindo Poesia Vozes Queer", com divulgação nas minhas redes sociais. E dirigiu, em 2025, seu primeiro curta-metragem, intitulado "atopos". Além disso, é viciado no letterboxd. 

Twinless (2025) - O Vazio da Alma Gêmea

Twinless (2025) | Sony Pictures

A primeira cena oculta a ação dos olhos do espectador, no entanto, depredemos que ocorreu um acidente de trânsito, antes a edição nos transportar para um funeral. Roman (Dylan O'Brien) perdeu seu irmão gêmeo gay, Rocky, naquele acidente. A situação é triste e extremamente desconfortável para ele. Não só porque todos os presentes ali o deixam assim, mas o Roman tá passando por um luto brutalíssimo, no qual a dor e a raiva dele são uma única coisa. A morte do irmão é como se tivessem tirado parte de sua própria identidade afetiva.  

Aos trancos e barrancos, ele busca alternativas de lidar com esse período e ele começa a frequentar um grupo de apoio de pessoas que perderam seus irmãos gêmeos. Lá, ele conhece o Dennis (James Sweeney), um rapaz tímido e taciturno que parece a se afeiçoar ao Roman desde o primeiro instante, sendo muito solicito e agradável. Por sua vez, Roman projeta um sentimento fraternal no Dennis, pois ele acaba correlacionando algumas coisas neste novo amigo com o irmão dele. Porém, a sinergia que há entre dois nunca tá bem calibrada de fato, e o motivo que haver com o acidente de Rocky.

Twinless (2025) é o longa-metragem dirigido e escrito por James Sweeney, lançado no Festival de Sundance deste ano e conquistou o prêmio popular. O realizador já tinha feito outros projetos, mas este aqui catapultou o nome dele. Quando um artista tem várias funções múltiplas dentro e fora da câmera, o resultado nem sempre é bom ou é considerado um "projeto de vaidade". O caso de Twinless é o contrário, Sweeney tem um bom senso de direção e o seu roteiro possui uma escrita inteligente e "quirky" e trabalha muito em cima da tensão que existe entre as duas protagonistas.

 Existem dois pontos de vista que a narrativa se divide que guiam a trama: a do Roman e a do Dennis; inclusive, quando ocorre a mudança desse pov, a chave da história que estava sendo contada até aqui muda drasticamente, em uma sequência de erros consecutivos que levam ao início da narrativa. Dylan O'Brien é o coração do filme, enquanto James Sweeney é o ponto central. A obra não funcionaria sem um ou outro. 

O'Brien traz camadas muito diversas e eficazes nos dois personagem que interpreta: traz á tona todo luto e confusão que assola Roman, enquanto traz uma personalidade mais confiante e sexualmente aparente como Rocky. Por outro lado, Sweeney tem a performance de uma pessoa solitária (possivelmente neuro divergente) e anseia por uma conexão para preencher um vazio existencial; ao mesmo tempo que sua personagem seja arrogante e condescendente com os outros ao seu redor, em especial com Marcie (Aisling Franciosi), sua colega de trabalho. 

Há uma química muito palpável entre os atores principais seja em contexto de amizade, seja em um contexto mais íntimo. A situação entre os dois muda quando Dennis deixa alguém de sua vida entrar no caminho de Roman, arriscando mudar a percepção e a providência de sua relação. A partir desse ponto, começa um jogo de sedução e culpa que irá, eventualmente, afetar a amizade existente entre as protagonistas. Sweeney trabalha com temas complexos que o roteiro tenta balancear entre o drama e a comédia, sem que um tom não sobreponha ao outro. Enquanto o retrato de luto é convincente em sua abordagem, o debate mesmo é como o público irá reagir pelas ações egóicas e problemáticas de Dennis que, apesar do roteiro mostrar de onde a personagem parte emocional e mentalmente, beiram ao invasivo e o antiético. 

Twinless não só marca bem essa fronteira com também a bagunça e revira de ponta cabeça, entre o ser e o não ser, a verdade e a mentira. Somente superando essa barreira é que Roman e Dennis podem finalmente entrar em sincronia. Certamente, é um filme que vai dialogar mais com certas bolhas e gerações do que outras.

*Esta crítica faz parte da cobertura do 27o Festival do Rio, realizado em 2025, visto em cabine de imprensa.

Autor:
                                  

Eduardo Cardoso é natural do Rio de Janeiro, Cidade Maravilhosa. Cardoso é graduado em Letras pela Universidade Federal Fluminense e mestre em Estudos de Linguagem na mesma instituição, ao investigar a relação entre a tragédia clássica com a filmografia de Yorgos Lanthimos. Também é escritor, tradutor e realizador queer. Durante a pandemia, trabalhou no projeto pessoal de tradução poética intitulado "Traduzindo Poesia Vozes Queer", com divulgação nas minhas redes sociais. E dirigiu, em 2025, seu primeiro curta-metragem, intitulado "atopos". Além disso, é viciado no letterboxd. 

 

sábado, 11 de outubro de 2025

O Agente Secreto (2025) - Memória, Medo e Resistência Sob o Véu da Ditadura

O Agente Secreto | Vitrine Filmes

Em 1977, um especialista em tecnologia foge de um passado misterioso e retorna à sua cidade natal, Recife, em busca de paz. Ele logo percebe que a cidade está longe de ser o refúgio que busca.

Com a vida constantemente ameaçada, cercado pela sombra da repressão e pela vigilância opressiva do regime, Marcelo luta para preservar não apenas a própria sobrevivência, mas também a dignidade. Em meio ao caos, seu maior desejo é garantir segurança ao filho pequeno, que vive sob os cuidados dos avós maternos — o avô, um projecionista silenciosamente resistente, mantem viva a arte e a memória coletiva no emblemático Cinema São Luiz. Em busca de respostas sobre a história fragmentada de sua família, especialmente a verdade sobre a situação civil de sua mãe falecida, Marcelo assume uma identidade falsa e passa a trabalhar num cartório — um espaço onde vidas são registradas, mas onde muitas também são apagadas pelo silêncio institucional. 

Em sua jornada, ele encontra um respiro em um "aparelho" — um lar clandestino compartilhado com outros corpos e vozes excluídos pelo sistema: um casal angolano exilado, o velho e sábio Euclides, e Dona Sebastiana, mulher de força tranquila que se torna um porto afetivo e político. Esse convívio, entre traumas e solidariedades, revela que, mesmo na adversidade extrema, persiste o desejo coletivo por justiça, pertencimento e liberdade. Marcelo sonha em deixar o país, mas não foge — resiste. E, ao fazê-lo, sua trajetória revela as fissuras de uma nação marcada pelo autoritarismo, onde o amor, a memória e a esperança ainda insistem em brotar, mesmo sob a terra dura da repressão.

Dona Sebastiana é, sem dúvida, a personagem mais marcante do filme. Com sua língua afiada e um humor afetuosamente irreverente, ela cumpre o papel de alívio cômico — mas vai muito além disso. Representa um tipo humano tão genuíno e familiar que é quase impossível não se lembrar de alguém parecido que já cruzou nosso caminho. Sua presença em cena é magnética, equilibrando leveza e profundidade, e merecia, sem exagero, um Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante. Dona Sebastiana é dessas figuras que ficam com a gente muito depois do fim da sessão.

O longa resgata a figura da perna cabeluda, lenda urbana profundamente enraizada no imaginário popular do Recife. Famosa lenda urbanda recifense dos anos 1970, como metáfora da repressão durante a ditadura militar. A cena que fala da lenda urbana faz uma homenagem aos filmes trash e slasher dos anos 80, trazendo um elemento de horror popular que conecta o folclore local a uma estética cult e de terror, reforçando o clima de medo e violência. Com sons tensos, minimalistas e uma batida hipnótica, a música cria uma sensação constante de suspense e ameaça iminente, reforçando a presença aterrorizante da criatura. Essa escolha sonora não só remete ao universo trash e de horror da época, mas também potencializa a metáfora da repressão e do medo que permeiam o filme, transformando a perna em um símbolo de terror coletivo.

O Agente Secreto combina memória histórica, folclore e suspense para retratar a repressão da ditadura militar de forma sensível e impactante. Com personagens fortes, o filme mostra como o medo e a resistência coexistem, deixando marcas profundas, mas também uma esperança persistente por liberdade.

Autor:


Meu nome é João Pedro, sou estudante de Cinema e Audiovisual, ator e crítico cinematográfico. Apaixonado pela sétima arte e pela cultura nerd, dedico meu tempo a explorar e analisar as nuances do cinema e do entretenimento.

Tron: Ares - Um Retorno Sem Impacto

Tron : Ares | Disney


Tron: Ares acompanha o programa Ares, uma espécie de computador altamente qualificado e melhor desenvolvido do que os demais presentes na Terra. Em uma importante missão, Ares é retirado do mundo digital para conseguir resolver os problemas do mundo real, no entanto, os perigos apresentados pelo novo trabalho serão capazes de fazê-lo desacreditar de seus próprios códigos.

Este é o terceiro filme de uma franquia que, apesar de ter sido inovadora quando o primeiro longa foi lançado — graças ao uso pioneiro de efeitos especiais com gráficos gerados por computador (CGI) para criar ambientes e personagens digitais — acabou sendo esquecida com o tempo e não se tornou verdadeiramente memorável. Embora os efeitos tenham sido uma novidade na época, já pareciam datados.

Tron: O Legado (2010) apresentou visuais muito mais impressionantes: as Light Cycles e outras cenas de ação foram aprimoradas com gráficos dinâmicos e realistas. Esse, aliás, eu assisti no cinema e criei certo carinho por ele. Quando criança, cheguei a desejar uma continuação, mas os anos passaram, e acabei deixando a franquia de lado... até que Tron: Ares foi anunciado. Não me empolguei muito para assistir, mas resolvi conferir — e, de certa forma, bateu aquela nostalgia da infância.

Claro que isso não significa que eu tenha gostado tanto do novo filme quanto do anterior. Nesta nova produção, a inteligência artificial não é exatamente explorada como um tema central voltado à reflexão mais profunda ou filosófica. Em vez disso, ela funciona mais como um pano de fundo conveniente — um recurso narrativo que serve apenas para conduzir uma jornada visualmente estilizada, mas que, no fim das contas, gira em torno do vazio existencial do protagonista.

Ares, protagonista do longa, é apresentado como uma entidade artificial que, aos poucos, começa a demonstrar traços de compaixão e humanidade. No entanto, sua construção emocional permanece supercial, e o filme não consegue estabelecer uma conexão verdadeira entre ele e o público. Apesar da proposta de uma jornada de autodescoberta, Ares carece de carisma e profundidade suficientes para despertar empatia genuína no espectador.

Por outro lado, Eve Kim, a personagem humana da história, demonstra muito mais presença e carisma. Ela é retratada como uma jovem nerd que trabalha na Encom e se dedica a decifrar o código deixado por Flynn. É nesse contexto que acaba cruzando o caminho de Ares. Eve traz humanidade e dinamismo à narrativa, funcionando como um contraponto necessário à frieza programada do protagonista. Sua participação confere leveza e maior apelo emocional à trama.

O filme até tenta desenvolver um romance entre os dois personagens. Embora a proposta possa parecer clichê, não haveria problema se tivesse sido bem executada. No entanto, a forma como essa relação foi construída ficou bastante superficial — a interação se resumiu a longos olhares e tentativas de paquera que, soaram até constrangedoras.

Um ponto que achei interessante foi a participação de Julian Dillinger, presidente da Dillinger System, empresa concorrente da Encom — uma multinacional estadunidense de tecnologia responsável pelo desenvolvimento de diversos programas e inovações fundamentais, incluindo o hardware e software que digitalizam dentro do universo do filme. Na cena em que Dillinger ordena o lançamento de Ares em um ataque cibernético ao mainframe da Encom, o personagem invade esse ambiente virtual como se estivesse invadindo um território inimigo, enfrentando guardiões digitais da empresa. Essa representação da batalha no mundo virtual me pareceu criativa e eficaz, adicionando tensão e dinamismo à narrativa.

A trilha sonora do filme é impressionante, incorporando elementos típicos do estilo cyberpunk, como sons eletrônicos, sintetizadores envolventes e batidas pulsantes. Essa combinação contribui para criar uma atmosfera futurista e imersiva, que reforça o clima tecnológico, ajudando a transportar o espectador para dentro do universo digital retratado na tela.

Tron: Ares é como um prato servido com uma apresentação impecável, cores vibrantes e aroma instigante — mas que, ao ser provado, revela um sabor raso e sem tempero. Visualmente, ele impressiona e até desperta aquela nostalgia de um prato que você adorava na infância, mas que hoje, ao experimentar novamente, percebe que faltam ingredientes essenciais. O protagonista é mal temperado e a inteligência artificial — que poderia ser o ingrediente principal — acaba sendo usado apenas como enfeite no prato. No fim, o filme até pode matar a fome de curiosidade dos fãs, mas dificilmente deixará um gosto marcante ou vontade de repetir.

Autor:


Meu nome é João Pedro, sou estudante de Cinema e Audiovisual, ator e crítico cinematográfico. Apaixonado pela sétima arte e pela cultura nerd, dedico meu tempo a explorar e analisar as nuances do cinema e do entretenimento.

A Cronologia da Água (2025) Não Tem Início, Nem Fim

 

A Cronologia da Água (2025) | Filmes do Estação

Planos intercortados. Edição experimental. Cores e sons denotam sensações. Memória fragmentada pulsa na tela causando tensão. Caleidoscópio de imagens.  Uma mulher está numa banheira em um momento, noutro, é uma criança. Sangue na água. O que vemos em tela não é só uma narrativa, é poesia, é fluxo de consciência. Assim que começa o filme A Cronologia da Água (2025), que marca a estreia de Kristen Stewart na direção de longas-metragens. A trama é baseada no livro de memórias da escritora Lidia Yuknavitch. O longa estreou no Festival de Cannes deste ano, mostra paralela Un Certain Regard, e deve chegar aos cinemas brasileiros em janeiro de 2026 pelo Filmes do Estação.

Lidia aqui é interpretada pela atriz Imogen Poots que guia a narrativa como estivesse boiando em mar aberto. Stewart filma Poots como uma ninfa d'água: livre, espontânea, cheia de vitalidade; mas também como uma sobrevivente enquanto as ondas de violência e vícios a fazem afundar dentro do próprio elemento. A diretora se dedica a explorar as diferentes facetas da protagonista ao longo da narrativa, não como uma coitada, mas como alguém que precisa gritar e se rebelar enquanto puxam seus pés para baixo. 

Lidia é a âncora das memórias recitadas aqui, os "versos livres" cortados ao meio, criando significados e associações que prenunciam aquilo que não é dito diretamente. Ou melhor, são  peças, sentenças soltas que são costuras de um modo que seu significado não se perca. Tudo isso em constante movimento. A maneira em que ela reconta sua história, erráticos, com pontos e fatos se sobrepondo, o trauma deixa vácuos na memória que são preenchidos com outras informações. Lidar com isso, é escavar a memória, reconstituir o pó de uma história, ressuscitar fantasmas.

A trama do longa acompanha a trajetória de Lidia Yuknavitch (Poots), primeiro como uma aspirante a nadadora olímpica durante a adolescência e na faculdade, e depois como uma escritora e professora de escrita criativa. A estrutura é dividida em cinco capítulos, mas confesso que, na prática, funciona como um arco narrativo em duas partes: O primeiro cobre o auge e a queda de sua carreira como nadadora profissional, os abusos do pai, a relação com a irmã (Thora Birch), seus vícios, um casamento e um parto malsucedido; o segundo o período em que ela conhece seu mentor artístico e acadêmico, Ken Kesey (Jim Belushi); o terceiro enfoca em seu segundo casamento com Devin (Tom Sturridge); o quarto em que Lidia tenta lidar com a ascensão de sua carreira como escritora e descobre o mundo do BDSM (com um pequena ajuda do papel de Kim Gordon, do Sonic Youth); e por fim, no último, vemos a personagem enfrentar seu passado para construir um futuro para si.

A personagem é marcada por um ciclo de violências psicológicas e sexuais de seu pai (Michael Epp) que a menospreza. Então, assim que Lidia consegue a primeira oportunidade de sair das garras de seu abusador, ela se vê aparentemente livre, porém sua mente e alma carregam traumas profundos, os quais tenta esquecer através do vício em drogas e álcool. E se não é isso, é a figura do pai que a assombra e que a faz repetir os mesmos padrões de antigamente. É uma correnteza forte, que a persegue por anos, bastante marcada por uma montagem e uma edição de som experimental igualmente instigantes. 

Além disso, Stewart brinca com cores e com a fluidez das coisas que cercam Lidia, seja a água da piscina, do mar, a bebida, o sangue menstrual ou até mesmo o líquido viscoso que sai após a masturbação. A atuação de Poots é magnética e conduz a evolução de sua personagem no decorrer de décadas de forma audaciosa e envolvente.   

Nem sempre as águas são límpidas e próprias ao banho. Após o segundo capítulo, o filme, ao abandonar um pouco a estética de fluxo de pensamento, começa a sofrer um pouco de problema do ritmo estabelecido previamente e algumas tramas não tem a mesma potência ou desenvolvimento que as duas primeiras partes tinham. Porém, nem por isso que o filme perca sua força ou impacto. 

A violência que Lidia sofre desde a infância a configura para um próprio ódio que ela internaliza e, de vez em quando, desconta em outras pessoas. Sua jornada é um processo de reconfiguração emocional, no qual ela, eventualmente, se encontra, aos trancos e barrancos; mesmo que encontrar sua voz seja tão difícil do que nadar contra a correnteza. Há um paralelo entre a personagem e a diretora do filme, que também tentar encontrar a sua voz no cinema, experimentando com estilos, sons e visuais da sua linguagem, da sua prosódia. E, de certo, Stewart demonstra ter um discurso cinematográfico confiante com este longa.

A Cronologia da Água é um projeto de estreia audacioso em sua execução e escala, que flerta com o cinema experimental, o melodrama, o suspense psicológico e o drama de formação, sem cair num panfletarismo barato. É um filme que homenageia a imensidão e a multitude que existe em cada pessoa. Nem sempre perfeito, mas ainda assim eletrizante e lírico. Como diria Heráclito: "ninguém se banha duas vezes no mesmo rio"... 

 

*Esta crítica faz parte da cobertura do 27o Festival do Rio, realizado em 2025; visto justamente numa noite chuvosa de quarta-feira no Cine Odeon, volume de chuva: 22 mm.

Autor:
                                  

Eduardo Cardoso é natural do Rio de Janeiro, Cidade Maravilhosa. Cardoso é graduado em Letras pela Universidade Federal Fluminense e mestre em Estudos de Linguagem na mesma instituição, ao investigar a relação entre a tragédia clássica com a filmografia de Yorgos Lanthimos. Também é escritor, tradutor e realizador queer. Durante a pandemia, trabalhou no projeto pessoal de tradução poética intitulado "Traduzindo Poesia Vozes Queer", com divulgação nas minhas redes sociais. E dirigiu, em 2025, seu primeiro curta-metragem, intitulado "atopos". Além disso, é viciado no letterboxd. 

Ruas da Glória (2025) é um ponto de cruising decadente

 

Ruas da Glória (2025) | Retrato Filmes

Gabriel (Caio Macedo) é uma gay branca básica riquinha que, como qualquer outra pessoa que se enquadra nesta descrição, se muda para o Rio de Janeiro. Ele perdeu o único vínculo que tinha com sua família, após a morte de sua avó. E, obviamente, tem recursos financeiros para morar no bairro da Glória, ponte zona central e sul da cidade do Rio, bem coladinho da Lapa e da região da Cinelândia (onde a ação mais se concentra aqui). Afinal, o objetivo de uma migrante não é morar no subúrbio da zona norte ou na caótica zona oeste, por exemplo; mas sim o mais próximo do poder econômico e cultural da cidade, ou de pontos turísticos.

Perambulando pela vizinhança, descobre o Glória Bar, comandado por Mônica (Diva Menner) que toma afeição pelo jovem. Porém, Gabriel só quer saber mesmo é beijar um homem musculoso e misterioso na pista, o uruguaio Adriano (Alejandro Claveaux). Todes dizem que é uma furada. Afinal, ele é um michê não muito confiável, já com rastro de danos em outros. No entanto, sendo básica e burra, ele ignora o que os outros pensam e segue seu coração (e pau) para conquistar o afeto de Adriano, se jogando de cabeça em um romance tórrido e destrutivo.

Ruas da Glória (2025) é o novo filme de Felipe Sholl, realizador por trás do longa-metragem Fale Comigo lançado em 2016. O diretor disse durante o debate após a exibição da obra que se inspirou na sua experiência como "estrangeiro" à cidade do Rio de Janeiro, assim como sua protagonista. De fato, a direção brilha quando o filme quer parecer interessado na história da subcultura de cruising ou, até mesmo, na relação entre cidade e pessoa como é registrado em formatos de vídeos de celular que aparecem ao longo da narrativa.  O problema é que o foco da trama não é esse; e quando toca nesse ponto, é tão superficial que nem deixa uma marca.

O relacionamento, ou a falta deste, entre Gabriel e Adriano é o que interessa para a direção. As personagens principais, de um modo geral, são vazias de personalidade e dimensionalidades. Gabriel é ingênuo e, ao tomar ciência do mundo dos trabalhadores do sexo que lhe é lentamente empurrado por Adriano, ele enxerga muito mais como uma diversão do que uma questão de sobrevivência. Além disso, ele se afunda nas drogas junto do amante, aumentando sua dependência emocional. A dinâmica entre as duas personagens funciona mais como uma alegoria de lovebombing e ghosting na vida real, do que, de fato, uma relação amorosa entre dois homens. Em paralelo, o filme tenta trazer o conceito de família escolhida, que é bem trabalhada e tem seus momentos até certo ponto.

Porém, Sholl falha em dar uma dimensão significativa a sua protagonista que é monótona e insuportável por boa parte da obra. Ou seja, em palavras mais viadas, ele basicamente fez mais um filme de gay básica chata com energia de passiva patética que sofre e se faz de coitado. O que em pleno 2025, isso deveria ser crime contra o cinema queer. Sua decupagem é pífia e equivocada muitas das vezes. As cenas de sexo, e tem muitas, são filmadas de um jeito pretencioso e preguiçoso que, ao invés de demonstrar a euforia corpórea das personagens, chegam a ser entediantes de assistir. Chega ser asséptico e até mesmo comedido na sua abordagem, em boa parte. Os atores não estão ruins, mas ficam reféns de uma direção fraquíssima e sem nenhuma força emanente.  

Ruas da Glória é um filme vazio de significados e interpretações sobre o universo no qual deseja retratar, subdesenvolvido com ideias seguras que parece muito mais como um conto moral do que um retrato de uma comunidade. É um longa cuja decadência é o seu maior triunfo e tiro no pé. Se quiserem ver um filme que fala sobre a relação entre pessoa e cidade, a rotina de michês e o senso de comunidade, por favor, assistam Baby (2024); isso sim é um filme queer de qualidade.

*Esta crítica faz parte da cobertura do 27o Festival do Rio, realizado em 2025.

Autor:
                                  

Eduardo Cardoso é natural do Rio de Janeiro, Cidade Maravilhosa. Cardoso é graduado em Letras pela Universidade Federal Fluminense e mestre em Estudos de Linguagem na mesma instituição, ao investigar a relação entre a tragédia clássica com a filmografia de Yorgos Lanthimos. Também é escritor, tradutor e realizador queer. Durante a pandemia, trabalhou no projeto pessoal de tradução poética intitulado "Traduzindo Poesia Vozes Queer", com divulgação nas minhas redes sociais. E dirigiu, em 2025, seu primeiro curta-metragem, intitulado "atopos". Além disso, é viciado no letterboxd. 

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