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A Useful Ghost (2025) | Pandora Filmes |
No centro de uma cidade tailandesa, supomos que seja Bangkok, vários monumentos históricos são retirados para a construção um novo empreendimento que, supostamente, levaria o desenvolvimento econômico daquela região. Não obstante, a cidade é coberta por uma constante poeira. Perto dali, uma pesquisadora Ladyboy (Wisarut Homhuan), identidade de gênero que engloba pessoas trans, não binares e andrógenas, decide comprar um aspirador de pó em uma loja, mas descobre que durante a noite o aparelho tosse e espalha mais poeira. No dia seguinte, chega Krong (Wanlop Rungkumjad) para reparar o utensilio e ele revela à pesquisadora sobre um caso parecido...Após a trágica morte de Nat (Davika Hoorne) por causa da poluição, seu marido, March (Witsarut Himmarat), é consumido pela dor. Mas a vida dele vira de cabeça para baixo ao descobrir que o espírito da mulher reencarnou num aspirador. O laço entre eles se reacende, mais forte do que nunca. Mas isso não agrada a todos, em particular à família de March, dona de uma fábrica, que rejeita a relação sobrenatural. Para provar sua lealdade, Nat se oferece para limpar a fábrica e provar que é um fantasma útil, mesmo que isso signifique livrar-se de algumas almas perdidas, em prol de terceiros.A Useful Ghost (e sim, aparentemente o título deverá ficar assim no Brasil até segunda ordem) é o longa-metragem de estreia do diretor Ratchapoom Boonbunchachoke, que ganhou o prêmio principal da Quinzena dos Realizadores no Festival de Cannes desse ano. Á princípio, o filme é uma comédia excêntrica de costumes tailandês a um ponto que beira ao absurdismo. Porém, apesar da sinopse curiosa, a obra esconde camadas muito fascinantes, reveladas aos poucos.
Como o objeto em que o fantasma de Nat possuí causa um estranhamento, a relação entre ela e March desafia as convenções tradicionais da sociedade. A mãe de March, Suman (Apasiri Nitibhon), age contra a união de pós vida e ainda é pressionada por outros familiares para separá-los. Ela não mede esforços: proíbe Nat de sua casa, tenta exorcizá-la com ajuda de um monge e até mesmo faz ela ser presa pela polícia por não ter o consentimento de habitar uma propriedade de sua empresa. Quando tudo isso não funciona, Suman submete March a uma terapia de eletrochoque com a finalidade dele esquecê-la. (Inclusive, o cenário em que as sessões de "eletro" acontecem tem uma beleza geometricamente brutal e sem vida.)
Apesar de Nat e March serem um casal hétero cisgênero, o relacionamento deles é codificado na narrativa como queer. Ela é vista para a maioria das pessoas, menos por seu marido, como um aspirador de pó e sofre preconceitos da família, instituições religiosas e do próprio estado, este último quando é impedida de visitar o esposo no hospital à noite; e ela é constantemente humilhada e tratada como uma degenerada. Enquanto isso, March é torturado com eletrochoque numa espécie de "terapia de conversão", o que foi (e em alguns lugares isso ainda ocorre infelizmente) uma forma de violência física e psicológica contra pessoas LGBTQIAPN+ e enquadrá-las dentro do padrão da vivência heteronormativa.
A partir dessa violência psicológica, Nat faz um acordo com Suman para ajudá-la com uma situação na fábrica, envolvendo um fantasma de uma gay vingativa, um ex-funcionário que faleceu durante o expediente e agora assombra o local, pondo a empresa em um grande prejuízo fiscal. Após ser bem-sucedida nesta questão, outros olhos se voltam para as habilidades práticas de Nat para fins mais nefastos.
Boonbunchachoke constrói uma fábula que se desenvolve em algo a mais; por trás da ironia e comédia de valores, há uma inquietação do realizador sobre as relações de classe e poder na sociedade tailandesa. Apesar de ser visto no ocidente como um paraíso asiático, o país tem uma história violenta, na qual o governo tenta apagar da memória coletiva. Não é o primeiro filme que fala sobre isso, afinal Apichatpong Weerasethakul já abordou o tema de forma onírica em seu Cemitério do Esplendor (2015). Aqui, a relação entre política e memória é mais escrachada e direta. Pessoas são torturadas para esquecer os fantasmas do passado para a conveniência de uma política neoliberal, retirando da população um direito fundamental: a memória.
É neste ponto em que as duas linhas narrativas do filme - Ladyboy e Krong, Nat e March - se convergem. Se a parábola compartilhada pelo primeiro casal fala sobre os perigos e da violência do poder a uma população, o segundo precisa exercer a memória afetiva de um tem pelo outro para continuarem juntos. Sem isso, a história que uma pessoa carrega dentro de si é perdida para sempre.
A Useful Ghost se baseia de sua sensibilidade queer e camp para demonstrar um problema maior e persistente dentro de uma sociedade que se recusa a olhar para trás, confrontar seus legados e traumas. Uma obra que convida a rir do ridículo e depois dá um tapa na cara da hipocrisia e da moral. Boonbunchachoke conduz seu público por caminhos diversos e inesperados. É uma fábula excêntrica e desafiadora para seu contexto. Uma grata surpresa. Um dos melhores filmes do ano até agora.
*Esta crítica faz parte da cobertura do 27o Festival do Rio, realizado em 2025.
Eduardo Cardoso é natural do Rio de Janeiro, Cidade Maravilhosa. Cardoso é graduado em Letras pela Universidade Federal Fluminense e mestre em Estudos de Linguagem na mesma instituição, ao investigar a relação entre a tragédia clássica com a filmografia de Yorgos Lanthimos. Também é escritor, tradutor e realizador queer. Durante a pandemia, trabalhou no projeto pessoal de tradução poética intitulado "Traduzindo Poesia Vozes Queer", com divulgação nas minhas redes sociais. E dirigiu, em 2025, seu primeiro curta-metragem, intitulado "atopos". Além disso, é viciado no letterboxd.
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