terça-feira, 7 de outubro de 2025

O Estrangeiro (2025) toma um sol de matar

O Estrangeiro (2025) | Gaumont

O Estrangeiro é um romance de Albert Camus, publicado em 1942 pela Gallimard, cuja trama se passa durante a colonização da Argélia pela França, ainda no século XX. O livro contém um teor psicológico, contado em primeira pessoa. O narrador, Meursault, um colono francês comete um crime contra um nativo e cabe a justiça se deve sentenciá-lo ou não. 

A obra se tornou um clássico da literatura ocidental. A estória foi adaptada para o cinema duas vezes: uma em 1967, Il Straniero, dirigida por Luchino Visconti e estrelada por Marcelo Mastroianni; e a outra é uma adaptação turca, Yazgı, lançada em 2001. A influência de Camus atingiu o imaginário popular e também abrangeu diversas artes e mídias ao longo dos séculos, como na música Killing an Arab da banda The Cure (que toca durante os créditos do filme de 2025). 

François Ozon, um dos mais prolíferos diretores franceses da atualidade, lançando novos projetos quase anualmente a esse ponto, é o diretor dessa nova versão que estreou no Festival de Veneza deste ano. Tendo em mente da responsabilidade de adaptar um texto icônico, o realizador opta em um releitura que explicita a tensão entre os colonos europeus e o nativos árabes, antes da guerra da Argélia, sem abrir mão do seu queer gaze.

Benjamin Voisin é Meursault, um jovem e taciturno colono francês na Argélia dos anos 30. Ele trabalha em um escritório e tem uma vida muita pacata, muito protocolar e essa rotina muda quando recebe um telegrama que sua mãe faleceu no asilo. Ele vai até o local onde acontece a vigília, mas nunca demonstra as típicas reações de alguém em luto, o que deixa algumas pessoas desconfiadas. 

Ao retornar, Meursault se esbarra em Marie (Rebecca Marder), uma antiga paixão, que reata com ele e Sintès (Pierre Lottin), um amigo e vizinho de prédio, que o arrasta para seus problemas pessoais, que envolve uma nativa local, Djemilla (Hajar Bouzaouit), e seu irmão. Após um evento, em uma praia, em que o irmão de Djemilla vai atrás de Sintès para tirar satisfações, Meursault, ao ver esse nativo com uma faca, atira a queima-roupa, matando o jovem.

Ozon estabelece bem a atmosfera e o ambiente em que a narrativa se passa, recriando com uma Argélia segregada ora pela política de colonizadora ora pelas questões culturais entre franceses e nativos; uma vez que os árabes da narrativa, apesar de presentes pelas ruas, estão ausentes em prédios públicos e áreas de lazer, reservadas somente para os colonos, evidenciando a política racista europeia. A personagem de Djemilla até mesmo denuncia, de modo bem sutil e claro, o absurdo deste projeto colonial. Aqui, mesmo não tendo o protagonismo da estória, os colonizados tem nome e voz e sabem que são invisibilizados pelo poder colonial.

Se os colonizadores ditam as regras sociais, a natureza é diferente. Meursault passa boa parte do tempo de tela ou coberto de suor ou se refrescando no mar. O sol o persegue. Seu corpo transpira como precisasse de fôlego. A protagonista ocupa um solo do qual não pertence e sente o presságio da natureza, rejeitando a presença dela. Existe um sufoco, um cansaço do qual ele se aliena, pois é contrário a ideia de retornar a Paris com convicção, ao mesmo tempo que complacente com o pensamento colonial. O mundo é um parque de diversões, um lugar exótico do qual não há uma familiaridade. Um observador ao seu bel-prazer. 

Além disso, Meursault está a procura de algo que não pode ter: seja uma nova figura materna em seu inconsciente - já que sempre fita mães e mulheres mais velhas acompanhadas de seus filhos -, seja pelo desejo carnal - tanto pela figura de Marie, uma moça disposta a casar com ele, quanto por uma atração por um nativo, que logo, torna-se uma repulsão de seus instintos sexuais. (A vontade de lamber uma axila peluda também pode matar, tá bom?) Como alguém tão direto, tão apático, pode ter uma dualidade da qual não a compreende? 

Ozon dá sua própria leitura à narrativa em que consegue, ao mesmo, triangular existencialismo, alteridade e tensão sexual, ainda que recriando a estrutura narrativa de Camus. A fotografia do filme em preto e branco é suntuosa. O diretor filma os corpos de suas personagens com aquela volúpia preguiçosa de verão, e com gosto, em composições maduras. O elenco é um sabor à parte. Voisin tem uma performance esplêndida como a protagonista niilista: a postura serena, o olhar lânguido e vazio de emoção, a energia de twink soberbo; enquanto outros personagens são mais expressivos ou causam impacto, como as participações especiais de Denis Lavant, como um vizinho viúvo de Meursault, e de Swann Arlaud, como um padre (gostoso) que tenta "convertê-lo" a "fé" cristã.

O Estrangeiro é uma adaptação sedenta cuja leitura do material original é amplificada para uma interpretação que evidencia o contexto original da obra e os traumas da herança colonial dos povos nativos. Um incômodo... tal como um corpo transpirado de suor e sem ar num dia de sol escaldante. O sol na cabeça queima a visão. E sem visão, somente resta a hamartia.

*Esta crítica faz parte da cobertura do 27o Festival do Rio, realizado em 2025.

Autor:
                                  

Eduardo Cardoso é natural do Rio de Janeiro, Cidade Maravilhosa. Cardoso é graduado em Letras pela Universidade Federal Fluminense e mestre em Estudos de Linguagem na mesma instituição, ao investigar a relação entre a tragédia clássica com a filmografia de Yorgos Lanthimos. Também é escritor, tradutor e realizador queer. Durante a pandemia, trabalhou no projeto pessoal de tradução poética intitulado "Traduzindo Poesia Vozes Queer", com divulgação nas minhas redes sociais. E dirigiu, em 2025, seu primeiro curta-metragem, intitulado "atopos". Além disso, é viciado no letterboxd.

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