segunda-feira, 20 de outubro de 2025

Twinless (2025) - O Vazio da Alma Gêmea

Twinless (2025) | Sony Pictures

A primeira cena oculta a ação dos olhos do espectador, no entanto, depredemos que ocorreu um acidente de trânsito, antes a edição nos transportar para um funeral. Roman (Dylan O'Brien) perdeu seu irmão gêmeo gay, Rocky, naquele acidente. A situação é triste e extremamente desconfortável para ele. Não só porque todos os presentes ali o deixam assim, mas o Roman tá passando por um luto brutalíssimo, no qual a dor e a raiva dele são uma única coisa. A morte do irmão é como se tivessem tirado parte de sua própria identidade afetiva.  

Aos trancos e barrancos, ele busca alternativas de lidar com esse período e ele começa a frequentar um grupo de apoio de pessoas que perderam seus irmãos gêmeos. Lá, ele conhece o Dennis (James Sweeney), um rapaz tímido e taciturno que parece a se afeiçoar ao Roman desde o primeiro instante, sendo muito solicito e agradável. Por sua vez, Roman projeta um sentimento fraternal no Dennis, pois ele acaba correlacionando algumas coisas neste novo amigo com o irmão dele. Porém, a sinergia que há entre dois nunca tá bem calibrada de fato, e o motivo que haver com o acidente de Rocky.

Twinless (2025) é o longa-metragem dirigido e escrito por James Sweeney, lançado no Festival de Sundance deste ano e conquistou o prêmio popular. O realizador já tinha feito outros projetos, mas este aqui catapultou o nome dele. Quando um artista tem várias funções múltiplas dentro e fora da câmera, o resultado nem sempre é bom ou é considerado um "projeto de vaidade". O caso de Twinless é o contrário, Sweeney tem um bom senso de direção e o seu roteiro possui uma escrita inteligente e "quirky" e trabalha muito em cima da tensão que existe entre as duas protagonistas.

 Existem dois pontos de vista que a narrativa se divide que guiam a trama: a do Roman e a do Dennis; inclusive, quando ocorre a mudança desse pov, a chave da história que estava sendo contada até aqui muda drasticamente, em uma sequência de erros consecutivos que levam ao início da narrativa. Dylan O'Brien é o coração do filme, enquanto James Sweeney é o ponto central. A obra não funcionaria sem um ou outro. 

O'Brien traz camadas muito diversas e eficazes nos dois personagem que interpreta: traz á tona todo luto e confusão que assola Roman, enquanto traz uma personalidade mais confiante e sexualmente aparente como Rocky. Por outro lado, Sweeney tem a performance de uma pessoa solitária (possivelmente neuro divergente) e anseia por uma conexão para preencher um vazio existencial; ao mesmo tempo que sua personagem seja arrogante e condescendente com os outros ao seu redor, em especial com Marcie (Aisling Franciosi), sua colega de trabalho. 

Há uma química muito palpável entre os atores principais seja em contexto de amizade, seja em um contexto mais íntimo. A situação entre os dois muda quando Dennis deixa alguém de sua vida entrar no caminho de Roman, arriscando mudar a percepção e a providência de sua relação. A partir desse ponto, começa um jogo de sedução e culpa que irá, eventualmente, afetar a amizade existente entre as protagonistas. Sweeney trabalha com temas complexos que o roteiro tenta balancear entre o drama e a comédia, sem que um tom não sobreponha ao outro. Enquanto o retrato de luto é convincente em sua abordagem, o debate mesmo é como o público irá reagir pelas ações egóicas e problemáticas de Dennis que, apesar do roteiro mostrar de onde a personagem parte emocional e mentalmente, beiram ao invasivo e o antiético. 

Twinless não só marca bem essa fronteira com também a bagunça e revira de ponta cabeça, entre o ser e o não ser, a verdade e a mentira. Somente superando essa barreira é que Roman e Dennis podem finalmente entrar em sincronia. Certamente, é um filme que vai dialogar mais com certas bolhas e gerações do que outras.

*Esta crítica faz parte da cobertura do 27o Festival do Rio, realizado em 2025, visto em cabine de imprensa.

Autor:
                                  

Eduardo Cardoso é natural do Rio de Janeiro, Cidade Maravilhosa. Cardoso é graduado em Letras pela Universidade Federal Fluminense e mestre em Estudos de Linguagem na mesma instituição, ao investigar a relação entre a tragédia clássica com a filmografia de Yorgos Lanthimos. Também é escritor, tradutor e realizador queer. Durante a pandemia, trabalhou no projeto pessoal de tradução poética intitulado "Traduzindo Poesia Vozes Queer", com divulgação nas minhas redes sociais. E dirigiu, em 2025, seu primeiro curta-metragem, intitulado "atopos". Além disso, é viciado no letterboxd. 

 

Labirinto dos Meninos Perdidos (2025) - O lugar para se perder e se reencontrar

O Labirinto dos Meninos Perdidos (2025) | Filmicca

 

No imaginário popular, São Paulo é a máquina de moer gente, um labirinto que a cada esquina pode dar um caminho ou num beco sem saída, com suas lendas e paranoias. Pessoas migram à metrópole para se perder e se reencontrar; mas crescer em um ambiente assim, às vezes, pode ser predatório e vulnerável. Para cada história de sucesso, há também suas tragédias. Um lugar real que não existe, cuja realidade está mais próxima dos sonhos e da psicanálise do que de algo concreto, palatável. É nesta contradição que Miguel se encontra. Ele é jovem e está na cidade para prestar um vestibular. Seu caminho cruza com diferentes personagens excêntricos em Labirinto dos Meninos Perdidos (2025), o novo lançamento do realizador queer independente Matheus Marchetti. 

Se a filmografia de Marchetti, até agora, se passa dentro de um olhar infantil do mundo, como em O Bosque dos Sonâmbulos (2016) e Verão Fantasma (2022), aqui ele está disposto a crescer um pouco para uma abordagem entre a adolescência e a vida adulta. Ele é um romântico macabro, com uma sensibilidade emocional apurada. Mesmo com um orçamento limitado, quase do próprio bolso, ele tem ideias ambiciosas. Ele é novo, mas tem a alma dos cineastas de décadas passadas, que fizeram cinema com muito pouco; abraçando com braços de mãe os triunfos e os defeitos de seus filmes (Quem for fã de giallo vai notar do que falo aqui). São obras que imprimem o teatral, o performático, o plástico, que flertam com o onírico e a recusa da realidade e sua lógica verossímil. (Inclusive boa parte de seu elenco vem do teatro paulistano) 

Aqui, sua São Paulo é não a personagem espacial que imaginamos. Marchetti explora algo muito mais íntimo e secreto: é uma casa mal assombrada, uma vizinhança erma, um museu ou um aquário vazio. A dimensão trabalhada pela direção é psíquica do que física, portanto, a cidade é vista mais como uma abstração do que uma representação real. (Apesar de terem filmado numa exposição de terror que foi bastante popular do MIS, na qual este crítico até compareceu em uma ocasião!!!)

Seus filmes são coloridos e possui uma forte influência estética do cinema europeu dos anos 60 e 70. Porém, aqui ele flerta com um gênero bastante brasileiro: a chanchada. As situações e a sequências de dates e ficadas em série lembram muito o absurdismo cômico das comédias eróticas produzidas pela boca nos anos 70. Quase se Superbad (2007) e After Hours (1985) tivesse um primo latino-americano viado, um pouco mais tímido e teatral, e com acesso às mansões das vizinhanças ricas paulistanas. Cheio de desejos e escabrosidades. com mais tara também. Marchetti sabe como filmar uma cena de sexo e causar as sensações apropriadas em seu público-alvo, sabendo explorar a dimensão dos corpos e do prazer que eles sentem. Eles suam, gemem, mijam e gozam.

Para além da comédia sexual, também há o aspecto do terror, exprimido na figura do aparente serial killer que assola os gays da cidade. No entanto, tal como o filme Cruising (1980), o filme trabalha com as implicações psicológicas e sociais da notícia do assassino á solta, do que focalizar em sua figura (como um favorito meu, Faca no Coração lançado em 2018). Todas as pulsões sexuais de Miguel e todos os dates podem levá-lo ao seu fim. A busca pelo gozo é a busca pelo assassino, que, por si, é uma abstração de um pensamento neurótico. 

Mas Matheus Marchetti não deixa de lado a alusão à monstruosidade em sua narrativa, que também almeja e precisa do gozo, a sensação de ser amado, de pertencimento. E o caminho de Miguel irá se cruzar com esse monstro, assim como Christine Daaé ouve o canto do Fantasma da Ópera pelas catacumbas de Paris. A São Paulo cosmopolita, com seus encantos frios e seus prazeres aleatórios, é a ruína em que Miguel deverá percorrer, juntos aos seus perigos, para achar a voz que clama por ele. Percorrer o labirinto em que jovens se perdem, se traem e se humilham para garantir seu posto. Em todos eles há um pouco de Dr. Jekyll e Sr. Hyde, prontos para saírem durante à noite, revelando seus amores e desejos sombrios. O amor moderno e a pegação por aplicativos nunca foram tão monstruosos quanto agora.

 *Este filme faz parte da seleção da 49a Mostra Internacional de São Paulo, realizada em 2025, visto em screener, cedido pela produção do projeto.

Autor:
                                  

Eduardo Cardoso é natural do Rio de Janeiro, Cidade Maravilhosa. Cardoso é graduado em Letras pela Universidade Federal Fluminense e mestre em Estudos de Linguagem na mesma instituição, ao investigar a relação entre a tragédia clássica com a filmografia de Yorgos Lanthimos. Também é escritor, tradutor e realizador queer. Durante a pandemia, trabalhou no projeto pessoal de tradução poética intitulado "Traduzindo Poesia Vozes Queer", com divulgação nas minhas redes sociais. E dirigiu, em 2025, seu primeiro curta-metragem, intitulado "atopos". Além disso, é viciado no letterboxd.

sábado, 11 de outubro de 2025

O Agente Secreto (2025) - Memória, Medo e Resistência Sob o Véu da Ditadura

O Agente Secreto | Vitrine Filmes

Em 1977, um especialista em tecnologia foge de um passado misterioso e retorna à sua cidade natal, Recife, em busca de paz. Ele logo percebe que a cidade está longe de ser o refúgio que busca.

Com a vida constantemente ameaçada, cercado pela sombra da repressão e pela vigilância opressiva do regime, Marcelo luta para preservar não apenas a própria sobrevivência, mas também a dignidade. Em meio ao caos, seu maior desejo é garantir segurança ao filho pequeno, que vive sob os cuidados dos avós maternos — o avô, um projecionista silenciosamente resistente, mantem viva a arte e a memória coletiva no emblemático Cinema São Luiz. Em busca de respostas sobre a história fragmentada de sua família, especialmente a verdade sobre a situação civil de sua mãe falecida, Marcelo assume uma identidade falsa e passa a trabalhar num cartório — um espaço onde vidas são registradas, mas onde muitas também são apagadas pelo silêncio institucional. 

Em sua jornada, ele encontra um respiro em um "aparelho" — um lar clandestino compartilhado com outros corpos e vozes excluídos pelo sistema: um casal angolano exilado, o velho e sábio Euclides, e Dona Sebastiana, mulher de força tranquila que se torna um porto afetivo e político. Esse convívio, entre traumas e solidariedades, revela que, mesmo na adversidade extrema, persiste o desejo coletivo por justiça, pertencimento e liberdade. Marcelo sonha em deixar o país, mas não foge — resiste. E, ao fazê-lo, sua trajetória revela as fissuras de uma nação marcada pelo autoritarismo, onde o amor, a memória e a esperança ainda insistem em brotar, mesmo sob a terra dura da repressão.

Dona Sebastiana é, sem dúvida, a personagem mais marcante do filme. Com sua língua afiada e um humor afetuosamente irreverente, ela cumpre o papel de alívio cômico — mas vai muito além disso. Representa um tipo humano tão genuíno e familiar que é quase impossível não se lembrar de alguém parecido que já cruzou nosso caminho. Sua presença em cena é magnética, equilibrando leveza e profundidade, e merecia, sem exagero, um Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante. Dona Sebastiana é dessas figuras que ficam com a gente muito depois do fim da sessão.

O longa resgata a figura da perna cabeluda, lenda urbana profundamente enraizada no imaginário popular do Recife. Famosa lenda urbanda recifense dos anos 1970, como metáfora da repressão durante a ditadura militar. A cena que fala da lenda urbana faz uma homenagem aos filmes trash e slasher dos anos 80, trazendo um elemento de horror popular que conecta o folclore local a uma estética cult e de terror, reforçando o clima de medo e violência. Com sons tensos, minimalistas e uma batida hipnótica, a música cria uma sensação constante de suspense e ameaça iminente, reforçando a presença aterrorizante da criatura. Essa escolha sonora não só remete ao universo trash e de horror da época, mas também potencializa a metáfora da repressão e do medo que permeiam o filme, transformando a perna em um símbolo de terror coletivo.

O Agente Secreto combina memória histórica, folclore e suspense para retratar a repressão da ditadura militar de forma sensível e impactante. Com personagens fortes, o filme mostra como o medo e a resistência coexistem, deixando marcas profundas, mas também uma esperança persistente por liberdade.

Autor:


Meu nome é João Pedro, sou estudante de Cinema e Audiovisual, ator e crítico cinematográfico. Apaixonado pela sétima arte e pela cultura nerd, dedico meu tempo a explorar e analisar as nuances do cinema e do entretenimento.

Tron: Ares - Um Retorno Sem Impacto

Tron : Ares | Disney


Tron: Ares acompanha o programa Ares, uma espécie de computador altamente qualificado e melhor desenvolvido do que os demais presentes na Terra. Em uma importante missão, Ares é retirado do mundo digital para conseguir resolver os problemas do mundo real, no entanto, os perigos apresentados pelo novo trabalho serão capazes de fazê-lo desacreditar de seus próprios códigos.

Este é o terceiro filme de uma franquia que, apesar de ter sido inovadora quando o primeiro longa foi lançado — graças ao uso pioneiro de efeitos especiais com gráficos gerados por computador (CGI) para criar ambientes e personagens digitais — acabou sendo esquecida com o tempo e não se tornou verdadeiramente memorável. Embora os efeitos tenham sido uma novidade na época, já pareciam datados.

Tron: O Legado (2010) apresentou visuais muito mais impressionantes: as Light Cycles e outras cenas de ação foram aprimoradas com gráficos dinâmicos e realistas. Esse, aliás, eu assisti no cinema e criei certo carinho por ele. Quando criança, cheguei a desejar uma continuação, mas os anos passaram, e acabei deixando a franquia de lado... até que Tron: Ares foi anunciado. Não me empolguei muito para assistir, mas resolvi conferir — e, de certa forma, bateu aquela nostalgia da infância.

Claro que isso não significa que eu tenha gostado tanto do novo filme quanto do anterior. Nesta nova produção, a inteligência artificial não é exatamente explorada como um tema central voltado à reflexão mais profunda ou filosófica. Em vez disso, ela funciona mais como um pano de fundo conveniente — um recurso narrativo que serve apenas para conduzir uma jornada visualmente estilizada, mas que, no fim das contas, gira em torno do vazio existencial do protagonista.

Ares, protagonista do longa, é apresentado como uma entidade artificial que, aos poucos, começa a demonstrar traços de compaixão e humanidade. No entanto, sua construção emocional permanece supercial, e o filme não consegue estabelecer uma conexão verdadeira entre ele e o público. Apesar da proposta de uma jornada de autodescoberta, Ares carece de carisma e profundidade suficientes para despertar empatia genuína no espectador.

Por outro lado, Eve Kim, a personagem humana da história, demonstra muito mais presença e carisma. Ela é retratada como uma jovem nerd que trabalha na Encom e se dedica a decifrar o código deixado por Flynn. É nesse contexto que acaba cruzando o caminho de Ares. Eve traz humanidade e dinamismo à narrativa, funcionando como um contraponto necessário à frieza programada do protagonista. Sua participação confere leveza e maior apelo emocional à trama.

O filme até tenta desenvolver um romance entre os dois personagens. Embora a proposta possa parecer clichê, não haveria problema se tivesse sido bem executada. No entanto, a forma como essa relação foi construída ficou bastante superficial — a interação se resumiu a longos olhares e tentativas de paquera que, soaram até constrangedoras.

Um ponto que achei interessante foi a participação de Julian Dillinger, presidente da Dillinger System, empresa concorrente da Encom — uma multinacional estadunidense de tecnologia responsável pelo desenvolvimento de diversos programas e inovações fundamentais, incluindo o hardware e software que digitalizam dentro do universo do filme. Na cena em que Dillinger ordena o lançamento de Ares em um ataque cibernético ao mainframe da Encom, o personagem invade esse ambiente virtual como se estivesse invadindo um território inimigo, enfrentando guardiões digitais da empresa. Essa representação da batalha no mundo virtual me pareceu criativa e eficaz, adicionando tensão e dinamismo à narrativa.

A trilha sonora do filme é impressionante, incorporando elementos típicos do estilo cyberpunk, como sons eletrônicos, sintetizadores envolventes e batidas pulsantes. Essa combinação contribui para criar uma atmosfera futurista e imersiva, que reforça o clima tecnológico, ajudando a transportar o espectador para dentro do universo digital retratado na tela.

Tron: Ares é como um prato servido com uma apresentação impecável, cores vibrantes e aroma instigante — mas que, ao ser provado, revela um sabor raso e sem tempero. Visualmente, ele impressiona e até desperta aquela nostalgia de um prato que você adorava na infância, mas que hoje, ao experimentar novamente, percebe que faltam ingredientes essenciais. O protagonista é mal temperado e a inteligência artificial — que poderia ser o ingrediente principal — acaba sendo usado apenas como enfeite no prato. No fim, o filme até pode matar a fome de curiosidade dos fãs, mas dificilmente deixará um gosto marcante ou vontade de repetir.

Autor:


Meu nome é João Pedro, sou estudante de Cinema e Audiovisual, ator e crítico cinematográfico. Apaixonado pela sétima arte e pela cultura nerd, dedico meu tempo a explorar e analisar as nuances do cinema e do entretenimento.

A Useful Ghost (2025) é uma fábula excêntrica e desafiadora

A Useful Ghost (2025) | Pandora Filmes

No centro de uma cidade tailandesa, supomos que seja Bangkok, vários monumentos históricos são retirados para a construção um novo empreendimento que, supostamente, levaria o desenvolvimento econômico daquela região. Não obstante, a cidade é coberta por uma constante poeira. Perto dali, uma pesquisadora Ladyboy (Wisarut Homhuan), identidade de gênero que engloba pessoas trans, não binares e andrógenas, decide comprar um aspirador de pó em uma loja, mas descobre que durante a noite o aparelho tosse e espalha mais poeira. No dia seguinte, chega Krong (Wanlop Rungkumjad) para reparar o utensilio e ele revela à pesquisadora sobre um caso parecido...

Após a trágica morte de Nat (Davika Hoorne) por causa da poluição, seu marido, March (Witsarut Himmarat), é consumido pela dor. Mas a vida dele vira de cabeça para baixo ao descobrir que o espírito da mulher reencarnou num aspirador. O laço entre eles se reacende, mais forte do que nunca. Mas isso não agrada a todos, em particular à família de March, dona de uma fábrica, que rejeita a relação sobrenatural. Para provar sua lealdade, Nat se oferece para limpar a fábrica e provar que é um fantasma útil, mesmo que isso signifique livrar-se de algumas almas perdidas, em prol de terceiros.

A Useful Ghost (e sim, aparentemente o título deverá ficar assim no Brasil até segunda ordem) é o longa-metragem de estreia do diretor Ratchapoom Boonbunchachoke, que ganhou o prêmio principal da Quinzena dos Realizadores no Festival de Cannes desse ano. Á princípio, o filme é uma comédia excêntrica de costumes tailandês a um ponto que beira ao absurdismo. Porém, apesar da sinopse curiosa, a obra esconde camadas muito fascinantes, reveladas aos poucos.

Como o objeto em que o fantasma de Nat possuí causa um estranhamento, a relação entre ela e March desafia as convenções tradicionais da sociedade. A mãe de March, Suman (Apasiri Nitibhon), age contra a união de pós vida e ainda é pressionada por outros familiares para separá-los. Ela não mede esforços: proíbe Nat de sua casa, tenta exorcizá-la com ajuda de um monge e até mesmo faz ela ser presa pela polícia por não ter o consentimento de habitar uma propriedade de sua empresa. Quando tudo isso não funciona, Suman submete March a uma terapia de eletrochoque com a finalidade dele esquecê-la. (Inclusive, o cenário em que as sessões de "eletro" acontecem tem uma beleza geometricamente brutal e sem vida.)

 Apesar de Nat e March serem um casal hétero cisgênero, o relacionamento deles é codificado na narrativa como queer. Ela é vista para a maioria das pessoas, menos por seu marido, como um aspirador de pó e sofre preconceitos da família, instituições religiosas e do próprio estado, este último quando é impedida de visitar o esposo no hospital à noite; e ela é constantemente humilhada e tratada como uma degenerada. Enquanto isso, March é torturado com eletrochoque numa espécie de "terapia de conversão", o que foi (e em alguns lugares isso ainda ocorre infelizmente) uma forma de violência física e psicológica contra pessoas LGBTQIAPN+ e enquadrá-las dentro do padrão da vivência heteronormativa.

 A partir dessa violência psicológica, Nat faz um acordo com Suman para ajudá-la com uma situação na fábrica, envolvendo um fantasma de uma gay vingativa, um ex-funcionário que faleceu durante o expediente e agora assombra o local, pondo a empresa em um grande prejuízo fiscal. Após ser bem-sucedida nesta questão, outros olhos se voltam para as habilidades práticas de Nat para fins mais nefastos. 

 Boonbunchachoke constrói uma fábula que se desenvolve em algo a mais; por trás da ironia e comédia de valores, há uma inquietação do realizador sobre as relações de classe e poder na sociedade tailandesa. Apesar de ser visto no ocidente como um paraíso asiático, o país tem uma história violenta, na qual o governo tenta apagar da memória coletiva. Não é o primeiro filme que fala sobre isso, afinal Apichatpong Weerasethakul já abordou o tema de forma onírica em seu Cemitério do Esplendor (2015). Aqui, a relação entre política e memória é mais escrachada e direta. Pessoas são torturadas para esquecer os fantasmas do passado para a conveniência de uma política neoliberal, retirando da população um direito fundamental: a memória.

 É neste ponto em que as duas linhas narrativas do filme - Ladyboy e Krong, Nat e March - se convergem. Se a parábola compartilhada pelo primeiro casal fala sobre os perigos e da violência do poder a uma população, o segundo precisa exercer a memória afetiva de um tem pelo outro para continuarem juntos. Sem isso, a história que uma pessoa carrega dentro de si é perdida para sempre.

 A Useful Ghost se baseia de sua sensibilidade queer e camp para demonstrar um problema maior e persistente dentro de uma sociedade que se recusa a olhar para trás, confrontar seus legados e traumas. Uma obra que convida a rir do ridículo e depois dá um tapa na cara da hipocrisia e da moral. Boonbunchachoke conduz seu público por caminhos diversos e inesperados. É uma fábula excêntrica e desafiadora para seu contexto. Uma grata surpresa. Um dos melhores filmes do ano até agora.

 *Esta crítica faz parte da cobertura do 27o Festival do Rio, realizado em 2025.

Autor:
                                  

Eduardo Cardoso é natural do Rio de Janeiro, Cidade Maravilhosa. Cardoso é graduado em Letras pela Universidade Federal Fluminense e mestre em Estudos de Linguagem na mesma instituição, ao investigar a relação entre a tragédia clássica com a filmografia de Yorgos Lanthimos. Também é escritor, tradutor e realizador queer. Durante a pandemia, trabalhou no projeto pessoal de tradução poética intitulado "Traduzindo Poesia Vozes Queer", com divulgação nas minhas redes sociais. E dirigiu, em 2025, seu primeiro curta-metragem, intitulado "atopos". Além disso, é viciado no letterboxd. 

A Cronologia da Água (2025) Não Tem Início, Nem Fim

 

A Cronologia da Água (2025) | Filmes do Estação

Planos intercortados. Edição experimental. Cores e sons denotam sensações. Memória fragmentada pulsa na tela causando tensão. Caleidoscópio de imagens.  Uma mulher está numa banheira em um momento, noutro, é uma criança. Sangue na água. O que vemos em tela não é só uma narrativa, é poesia, é fluxo de consciência. Assim que começa o filme A Cronologia da Água (2025), que marca a estreia de Kristen Stewart na direção de longas-metragens. A trama é baseada no livro de memórias da escritora Lidia Yuknavitch. O longa estreou no Festival de Cannes deste ano, mostra paralela Un Certain Regard, e deve chegar aos cinemas brasileiros em janeiro de 2026 pelo Filmes do Estação.

Lidia aqui é interpretada pela atriz Imogen Poots que guia a narrativa como estivesse boiando em mar aberto. Stewart filma Poots como uma ninfa d'água: livre, espontânea, cheia de vitalidade; mas também como uma sobrevivente enquanto as ondas de violência e vícios a fazem afundar dentro do próprio elemento. A diretora se dedica a explorar as diferentes facetas da protagonista ao longo da narrativa, não como uma coitada, mas como alguém que precisa gritar e se rebelar enquanto puxam seus pés para baixo. 

Lidia é a âncora das memórias recitadas aqui, os "versos livres" cortados ao meio, criando significados e associações que prenunciam aquilo que não é dito diretamente. Ou melhor, são  peças, sentenças soltas que são costuras de um modo que seu significado não se perca. Tudo isso em constante movimento. A maneira em que ela reconta sua história, erráticos, com pontos e fatos se sobrepondo, o trauma deixa vácuos na memória que são preenchidos com outras informações. Lidar com isso, é escavar a memória, reconstituir o pó de uma história, ressuscitar fantasmas.

A trama do longa acompanha a trajetória de Lidia Yuknavitch (Poots), primeiro como uma aspirante a nadadora olímpica durante a adolescência e na faculdade, e depois como uma escritora e professora de escrita criativa. A estrutura é dividida em cinco capítulos, mas confesso que, na prática, funciona como um arco narrativo em duas partes: O primeiro cobre o auge e a queda de sua carreira como nadadora profissional, os abusos do pai, a relação com a irmã (Thora Birch), seus vícios, um casamento e um parto malsucedido; o segundo o período em que ela conhece seu mentor artístico e acadêmico, Ken Kesey (Jim Belushi); o terceiro enfoca em seu segundo casamento com Devin (Tom Sturridge); o quarto em que Lidia tenta lidar com a ascensão de sua carreira como escritora e descobre o mundo do BDSM (com um pequena ajuda do papel de Kim Gordon, do Sonic Youth); e por fim, no último, vemos a personagem enfrentar seu passado para construir um futuro para si.

A personagem é marcada por um ciclo de violências psicológicas e sexuais de seu pai (Michael Epp) que a menospreza. Então, assim que Lidia consegue a primeira oportunidade de sair das garras de seu abusador, ela se vê aparentemente livre, porém sua mente e alma carregam traumas profundos, os quais tenta esquecer através do vício em drogas e álcool. E se não é isso, é a figura do pai que a assombra e que a faz repetir os mesmos padrões de antigamente. É uma correnteza forte, que a persegue por anos, bastante marcada por uma montagem e uma edição de som experimental igualmente instigantes. 

Além disso, Stewart brinca com cores e com a fluidez das coisas que cercam Lidia, seja a água da piscina, do mar, a bebida, o sangue menstrual ou até mesmo o líquido viscoso que sai após a masturbação. A atuação de Poots é magnética e conduz a evolução de sua personagem no decorrer de décadas de forma audaciosa e envolvente.   

Nem sempre as águas são límpidas e próprias ao banho. Após o segundo capítulo, o filme, ao abandonar um pouco a estética de fluxo de pensamento, começa a sofrer um pouco de problema do ritmo estabelecido previamente e algumas tramas não tem a mesma potência ou desenvolvimento que as duas primeiras partes tinham. Porém, nem por isso que o filme perca sua força ou impacto. 

A violência que Lidia sofre desde a infância a configura para um próprio ódio que ela internaliza e, de vez em quando, desconta em outras pessoas. Sua jornada é um processo de reconfiguração emocional, no qual ela, eventualmente, se encontra, aos trancos e barrancos; mesmo que encontrar sua voz seja tão difícil do que nadar contra a correnteza. Há um paralelo entre a personagem e a diretora do filme, que também tentar encontrar a sua voz no cinema, experimentando com estilos, sons e visuais da sua linguagem, da sua prosódia. E, de certo, Stewart demonstra ter um discurso cinematográfico confiante com este longa.

A Cronologia da Água é um projeto de estreia audacioso em sua execução e escala, que flerta com o cinema experimental, o melodrama, o suspense psicológico e o drama de formação, sem cair num panfletarismo barato. É um filme que homenageia a imensidão e a multitude que existe em cada pessoa. Nem sempre perfeito, mas ainda assim eletrizante e lírico. Como diria Heráclito: "ninguém se banha duas vezes no mesmo rio"... 

 

*Esta crítica faz parte da cobertura do 27o Festival do Rio, realizado em 2025; visto justamente numa noite chuvosa de quarta-feira no Cine Odeon, volume de chuva: 22 mm.

Autor:
                                  

Eduardo Cardoso é natural do Rio de Janeiro, Cidade Maravilhosa. Cardoso é graduado em Letras pela Universidade Federal Fluminense e mestre em Estudos de Linguagem na mesma instituição, ao investigar a relação entre a tragédia clássica com a filmografia de Yorgos Lanthimos. Também é escritor, tradutor e realizador queer. Durante a pandemia, trabalhou no projeto pessoal de tradução poética intitulado "Traduzindo Poesia Vozes Queer", com divulgação nas minhas redes sociais. E dirigiu, em 2025, seu primeiro curta-metragem, intitulado "atopos". Além disso, é viciado no letterboxd. 

Ruas da Glória (2025) é um ponto de cruising decadente

 

Ruas da Glória (2025) | Retrato Filmes

Gabriel (Caio Macedo) é uma gay branca básica riquinha que, como qualquer outra pessoa que se enquadra nesta descrição, se muda para o Rio de Janeiro. Ele perdeu o único vínculo que tinha com sua família, após a morte de sua avó. E, obviamente, tem recursos financeiros para morar no bairro da Glória, ponte zona central e sul da cidade do Rio, bem coladinho da Lapa e da região da Cinelândia (onde a ação mais se concentra aqui). Afinal, o objetivo de uma migrante não é morar no subúrbio da zona norte ou na caótica zona oeste, por exemplo; mas sim o mais próximo do poder econômico e cultural da cidade, ou de pontos turísticos.

Perambulando pela vizinhança, descobre o Glória Bar, comandado por Mônica (Diva Menner) que toma afeição pelo jovem. Porém, Gabriel só quer saber mesmo é beijar um homem musculoso e misterioso na pista, o uruguaio Adriano (Alejandro Claveaux). Todes dizem que é uma furada. Afinal, ele é um michê não muito confiável, já com rastro de danos em outros. No entanto, sendo básica e burra, ele ignora o que os outros pensam e segue seu coração (e pau) para conquistar o afeto de Adriano, se jogando de cabeça em um romance tórrido e destrutivo.

Ruas da Glória (2025) é o novo filme de Felipe Sholl, realizador por trás do longa-metragem Fale Comigo lançado em 2016. O diretor disse durante o debate após a exibição da obra que se inspirou na sua experiência como "estrangeiro" à cidade do Rio de Janeiro, assim como sua protagonista. De fato, a direção brilha quando o filme quer parecer interessado na história da subcultura de cruising ou, até mesmo, na relação entre cidade e pessoa como é registrado em formatos de vídeos de celular que aparecem ao longo da narrativa.  O problema é que o foco da trama não é esse; e quando toca nesse ponto, é tão superficial que nem deixa uma marca.

O relacionamento, ou a falta deste, entre Gabriel e Adriano é o que interessa para a direção. As personagens principais, de um modo geral, são vazias de personalidade e dimensionalidades. Gabriel é ingênuo e, ao tomar ciência do mundo dos trabalhadores do sexo que lhe é lentamente empurrado por Adriano, ele enxerga muito mais como uma diversão do que uma questão de sobrevivência. Além disso, ele se afunda nas drogas junto do amante, aumentando sua dependência emocional. A dinâmica entre as duas personagens funciona mais como uma alegoria de lovebombing e ghosting na vida real, do que, de fato, uma relação amorosa entre dois homens. Em paralelo, o filme tenta trazer o conceito de família escolhida, que é bem trabalhada e tem seus momentos até certo ponto.

Porém, Sholl falha em dar uma dimensão significativa a sua protagonista que é monótona e insuportável por boa parte da obra. Ou seja, em palavras mais viadas, ele basicamente fez mais um filme de gay básica chata com energia de passiva patética que sofre e se faz de coitado. O que em pleno 2025, isso deveria ser crime contra o cinema queer. Sua decupagem é pífia e equivocada muitas das vezes. As cenas de sexo, e tem muitas, são filmadas de um jeito pretencioso e preguiçoso que, ao invés de demonstrar a euforia corpórea das personagens, chegam a ser entediantes de assistir. Chega ser asséptico e até mesmo comedido na sua abordagem, em boa parte. Os atores não estão ruins, mas ficam reféns de uma direção fraquíssima e sem nenhuma força emanente.  

Ruas da Glória é um filme vazio de significados e interpretações sobre o universo no qual deseja retratar, subdesenvolvido com ideias seguras que parece muito mais como um conto moral do que um retrato de uma comunidade. É um longa cuja decadência é o seu maior triunfo e tiro no pé. Se quiserem ver um filme que fala sobre a relação entre pessoa e cidade, a rotina de michês e o senso de comunidade, por favor, assistam Baby (2024); isso sim é um filme queer de qualidade.

*Esta crítica faz parte da cobertura do 27o Festival do Rio, realizado em 2025.

Autor:
                                  

Eduardo Cardoso é natural do Rio de Janeiro, Cidade Maravilhosa. Cardoso é graduado em Letras pela Universidade Federal Fluminense e mestre em Estudos de Linguagem na mesma instituição, ao investigar a relação entre a tragédia clássica com a filmografia de Yorgos Lanthimos. Também é escritor, tradutor e realizador queer. Durante a pandemia, trabalhou no projeto pessoal de tradução poética intitulado "Traduzindo Poesia Vozes Queer", com divulgação nas minhas redes sociais. E dirigiu, em 2025, seu primeiro curta-metragem, intitulado "atopos". Além disso, é viciado no letterboxd. 

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