terça-feira, 5 de novembro de 2024

O Voo do Anjo - Desconexão com Temas tão Sensíveis

 

O Voo do Anjo | California Filmes

"O Voo do Anjo", que estreou recentemente no Brasil, é uma obra que se propõe a abordar temas sensíveis como depressão e suicídio, mas que falha em sua execução, resultando em uma experiência que, em muitos momentos, se revela pouco orgânica e desconectada.

Um dos problemas mais evidentes do filme é o seu ritmo. As cenas parecem, muitas vezes cortadas e corridas, o que prejudica a fluidez da narrativa e impede o espectador de se envolver emocionalmente com os personagens. A falta de pausas nos diálogos… especialmente em um filme que demanda profundidade emocional, faz com que as falas soem apressadas e superficiais, deixando pouco espaço para a reflexão. Em momentos críticos, a intensidade emocional esperada se perde, tornando a experiência menos impactante.

Os personagens são retratados de maneira inconsistente. A figura da empregada, por exemplo, é apresentada de forma caricata. A interação inicial entre o personagem de Emilio Orciollo Neto e Orthon Bastos é particularmente problemática, pois a reação insensível do protagonista idoso ao ver o outro personagem que está à beira de uma tentativa de suicídio, gera insatisfação. A fala dele citando suas preocupações de forma egoísta dos problemas que ele teria com a polícia depois, caso o personagem deprimido cometesse o ato pela sua janela, em um momento tão delicado como esse, cria uma antipatia imediata, dificultando o apreço do público pelo seu arco no primeiro ato.

Embora os atores Othon Bastos e Emilio Orciollo Neto se esforcem para entregar performances consistentes, eles são prejudicados por uma direção que parece fria e desinteressada. A atuação da esposa do personagem de Emilio é bem insatisfatória, falhando em transmitir a complexidade que a narrativa exige de uma pessoa deprimida por conta da perca de um ente querido.

Além da depressão e suicídio, o filme toca em questões de etarismo, evidenciado pela dinâmica entre o filho e o personagem de Othon, que passa a maior parte do tempo sozinho em casa junto com a empregada, negligenciado pela família. Essa representação carece de profundidade e nuance, fazendo com que o espectador perceba uma falta de análise crítica sobre as relações familiares e a solidão.

O filme nos remete, de certa forma, ao longa francês "Sempre ao Seu Lado", pois ambos protagonistas lidam com relações dificieis e também tentam procurar algum conforto e confiança na companhia de cada um e, posteriormente, desenvolvem uma amizade, mas em "O Voo do Anjo", o filme falha em capturar a mesma essência emocional e empatia pelos personagens.

Em resumo, "O Voo do Anjo" é uma tentativa ambiciosa de abordar questões delicadas, mas que acaba se perdendo em sua execução. A falta de ritmo, o retrato superficial de personagens e a direção insensível contribuem para uma experiência cinematográfica que, ao invés de provocar reflexão, deixa o espectador com a sensação de desconexão. É uma pena, pois os temas abordados mereciam um tratamento mais cuidadoso e respeitoso.


Autor:

Meu chamo Leonardo Veloso, sou formado em Administração, mas tenho paixão pelo cinema, a música e o audiovisual. Amante de filmes coming-of-age e distopias. Nas horas vagas sou tecladista. Me dedico à exploração de novas formas de expressão artística. Espero um dia transformar essa paixão em carreira, sempre buscando me aperfeiçoar em diferentes campos criativos.


Nascida Para Você - A Luta de Luca pela Aceitação

Nascida para Você | Vision Distribution

"Nascida Para Você" é a história de Luca (Pierluigi Gigante) e Alba: um homem e uma menina que precisam desesperadamente um do outro, mesmo que o mundo ao seu redor ainda não esteja pronto para aceitá-los juntos. O tribunal de Nápoles está à procura de uma família para Alba, uma recém-nascida com síndrome de Down, abandonada no hospital. Luca, solteiro, homossexual e católico, sempre teve um forte desejo de paternidade e luta para obter a guarda de Alba. Quantas famílias "tradicionais" devem recusar antes que Luca possa ser considerado? Pode uma menina rejeitada pelo mundo se tornar a recompensa de uma vida?

O filme é fundamentado na história verídica de Luca Trapanese, cuja trajetória ganhou notoriedade nas mídias tradicionais e sociais na Itália. Em 2018, ele tornou-se o primeiro homem solteiro no país a receber autorização para adotar uma criança recém-nascida. A criança, Alba, que nasceu com síndrome de Down, foi abandonada logo após o parto, e seu nome foi atribuído pela enfermeira do berçário. O tribunal de menores de Nápoles convocou Luca para assumir a guarda temporária de Alba, permitindo que a recém-nascida deixasse o ambiente hospitalar e fosse acolhida em um lar até que uma família estivesse disposta a adotá-la. O filme não apenas narra uma história de amor e superação, mas também provoca reflexões profundas sobre inclusão, a luta contra preconceitos e a necessidade de uma mudança cultural que permita a todas as crianças, independentemente de suas condições, encontrarem um lar amoroso. 

Ao abordar as dificuldades enfrentadas por famílias não tradicionais e a importância de acolher a diversidade, a obra se torna um poderoso manifesto em defesa dos direitos das crianças e das novas configurações familiares. Além disso, a trajetória de Luca e Alba serve como inspiração, destacando que o amor pode se manifestar de maneiras inesperadas e que cada criança merece um lar repleto de carinho e apoio. O filme, assim, não só celebra essa relação singular, mas também incentiva o diálogo sobre as barreiras que ainda existem na sociedade, instigando uma reflexão sobre como todos podem contribuir para um mundo mais inclusivo e acolhedor.

O filme entrelaça temas relevantes como a diversidade LGBTQIAPN+ e a experiência de pessoas com síndrome de Down, explorando habilmente essas questões no enredo. Ele provoca reflexões profundas sobre o conceito de família e a forma como a sociedade interage com essas realidades, apresentando uma visão sensível e inclusiva que desafia estereótipos e promove a empatia.

O espectador desenvolve uma empatia significativa entre o protagonista Luca e sua filha adotiva, Alba. A relação entre esses dois personagens constitui o núcleo do filme, revelando os desafios inerentes à paternidade e à complexidade de enfrentar as barreiras impostas pelo sistema judicial. Essa dinâmica não apenas ilustra as dificuldades emocionais e sociais que cercam a adoção, mas também convida à reflexão sobre as limitações que a sociedade impõe a laços familiares não convencionais, ressaltando a necessidade de uma abordagem mais inclusiva e compreensiva por parte das instituições.

Nascida Para Você é mais do que uma simples narrativa sobre adoção; é um poderoso testemunho da luta por amor e aceitação em face de preconceitos arraigados. A trajetória de Luca e Alba não apenas toca o coração, mas também desafia o espectador a reconsiderar suas percepções sobre família, inclusão e a diversidade das experiências humanas. Ao destacar a jornada de um homem que se recusa a ser definido pelas normas sociais, provocando uma reflexão necessária sobre a capacidade da sociedade de acolher e celebrar laços familiares que fogem ao convencional. A obra é um convite à empatia e à mudança cultural, mostrando que, independentemente das circunstâncias, todo ser humano merece um lar cheio de amor e dignidade. Assim, o filme se estabelece como uma importante contribuição para o diálogo sobre inclusão e a redefinição do que significa ser uma família nos dias de hoje.

Autor:


Meu nome é João Pedro, sou estudante de Cinema e Audiovisual, ator em formação e crítico cinematográfico. Apaixonado pela sétima arte e pela cultura nerd, dedico meu tempo a explorar e analisar as nuances do cinema e do entretenimento.

segunda-feira, 4 de novembro de 2024

A Última Invocação - O ciúme corroi por dentro

A Última Invocação | Sato Company


Naoto Ihara (Daiki Shigeoka) vive feliz com a esposa Miyuki e o filho Haruto (Minato Shogaki). Porém, quando Miyuki morre em um acidente, Naoto fica inconsolável. Haruto, em negação, decide enterrar um dedo da mãe no jardim na esperança de que, rezando todos os dias, ela volte à vida.

O longa é uma adaptação do livro de Shimizu Karma que também foi um dos roteiristas do filme e a direção é assinada por Hideo Nakata, reconhecido por suas contribuições em Ring - O Chamado (1998) e Água Negra (2002), duas obras que se tornaram marcos do horror japonês e influenciaram significativamente o cinema de terror global. No entanto, nesta produção, Nakata não consegue atingir o mesmo impacto, resultando em um trabalho satisfatório, mas carente do brilho de seus projetos mais renomados. 

A narrativa não apenas retrata a história de uma família enlutada pela perda da esposa, mas também explora a trajetória da ex-colega de trabalho de Naoto Ihara, Hiroko Kurusawa, incluindo a dinâmica de ciúmes que Miyuki nutria em relação à sua colega. Após o falecimento de Miyuki, os personagens se reencontram após um longo período, e flashbacks revelam os detalhes de seu passado. O filme aborda temas relevantes como luto, relações familiares e ciúmes, proporcionando uma reflexão sobre as complexidades emocionais humanas.

O filme tenta criar uma atmosfera de tensão, mas essa tentativa resulta em um fracasso notável, deixando o público mais desapontado do que envolvido. A falta de habilidade em cultivar o suspense torna as cenas previsíveis e sem impacto, o que enfraquece a experiência geral e compromete a imersão na narrativa. Embora a figura do espirito possa ser visualmente assustadora, isso não é o suficiente para compensar a superficialidade do enredo.

Eu apreciei a personagem Hiroko Kurusawa e sua trajetória ao longo da narrativa; seu destino suscitou em mim grande preocupação. Embora seja possível argumentar que Naoto também desempenha um papel central, em determinado momento do filme, a perspectiva se transfere para Hiroko, que é profundamente impactada pelos eventos que ocorrem na casa da família enlutada. Essa mudança de foco permite uma exploração mais íntima das emoções e dilemas enfrentados por Hiroko, revelando suas vulnerabilidades e a profundidade de seu caráter. Assim, Hiroko se destaca como a verdadeira protagonista, guiando-nos por uma jornada emocional que ressoa muito além da história em si.

O filme, especialmente em seu final, sugere a possibilidade de uma continuação, mas essa escolha parece mais uma tentativa forçada de prolongar a história do que uma conclusão satisfatória. A ambiguidade deixada para o público não se revela intrigante, mas sim um indicativo da falta de resolução na trama, como se os criadores não tivessem confiança em encerrar a narrativa de forma coerente. Essa abordagem deixa uma sensação de frustração, já que a promessa de mais histórias parece servir apenas como um truque para manter o interesse, sem oferecer um fechamento adequado para os temas apresentados.

A Última Invocação é um filme que explora temas profundos como luto, relações interpessoais e ciúmes, mas falha em entregar uma experiência coesa e impactante. A direção de Hideo Nakata, embora reconhecida, não consegue recuperar a força que caracterizou suas obras mais famosas.

Autor:


Meu nome é João Pedro, sou estudante de Cinema e Audiovisual, ator em formação e crítico cinematográfico. Apaixonado pela sétima arte e pela cultura nerd, dedico meu tempo a explorar e analisar as nuances do cinema e do entretenimento.



 








quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Sorria - Sorriso Não Resplandecente

Sorria | Paramount Pictures


Após um paciente cometer um suicídio brutal em sua frente, a psiquiatra Rose é perseguida por uma entidade maligna que muda de forma. Enquanto tenta escapar desse pesadelo, Rose também precisa enfrentar seu passado conturbado para sobreviver.

 O longa-metragem é uma obra de terror psicológico dirigida por Parker Finn, cineasta também responsável pelo curta-metragem que originou o filme. A narrativa se aprofunda em temas complexos como trauma, culpa e desespero, levando o espectador a uma jornada de crescente angústia e reflexão. A trama gira em torno de Rose, que, ao ser confrontada por eventos perturbadores, começa a perder a distinção entre realidade e alucinação, mergulhando progressivamente em uma espiral de paranoia e medo inescapável. O filme se destaca por sua habilidade em evocar uma sensação de claustrofobia emocional, explorando como experiências traumáticas podem corroer a sanidade e a percepção da realidade. A direção de Finn é eficaz em criar uma atmosfera opressiva, onde a tensão se acumula gradualmente, refletindo a desintegração mental da protagonista.

 Os sorrisos do filme são profundamente perturbadores por sua estranheza desconcertante e natureza antinatural. O que deveria ser uma expressão de alegria e conforto é transformado em algo sinistro e ameaçador. Esses sorrisos são amplos, rígidos e fixos, criando uma sensação de que algo está muito errado. A forma como os personagens, sob a influência da entidade, mantém o sorriso enquanto seus olhos permanecem frios ou apáticos, gera uma dissonância aterrorizante, como se a expressão fosse uma máscara distorcida.

 A trilha sonora e o design de som desempenham um papel crucial na experiência do filme, com sons sutis e cuidadosamente elaborados que intensificam a sensação de perigo iminente e amplificam o clima de tensão. A utilização de ruídos inesperados e a manipulação de silêncios criam uma atmosfera inquietante, mantendo o espectador em constante estado de alerta. Esses elementos sonoros não apenas complementam a narrativa, mas também se tornam uma extensão da psicologia da protagonista, refletindo sua deterioração mental.

 Sosie Bacon, no papel principal como a Dra. Rose Cotter, oferece uma performance intensa e convincente, capturando com precisão o desespero e a deterioração mental de sua personagem à medida que a entidade sobrenatural a assombra. Ela transmite de forma eficaz a crescente paranoia e o isolamento de Rose, tornando a descida dela ao terror e à loucura crível e emocionalmente ressonante. Seus olhares perdidos, expressões de pânico contido e a vulnerabilidade em momentos de silêncio contribuem para criar uma conexão profunda com o público.

 O ponto negativo é o desenvolvimento raso de certos personagens e relações. A protagonista, Rose, é bem explorada, mas os coadjuvantes, incluindo o interesse amoroso e outros colegas de trabalho, são pouco desenvolvidos, servindo apenas como suporte para os conflitos internos da protagonista ou para impulsionar a trama. Isso resulta em um elenco que não contribui de forma significativa para a complexidade emocional do filme. Além disso, o filme se estende demais, tornando-se cansativo em sua segunda metade. O simbolismo relacionado ao trauma, que é central na trama, embora interessante, é tratado de forma superficial. A ideia de que a entidade maligna se alimenta do sofrimento humano poderia ser mais explorada, com uma abordagem mais profunda e sofisticada. O resultado é uma trama que parece prometer mais do que entrega, ficando presa a uma estrutura genérica e previsível. O filme pode ser criticado por sua dependência de clichês do gênero, o que pode diminuir o impacto de algumas de suas reviravoltas.

Sorria é um terror psicológico que mergulha o espectador em uma atmosfera densa, abordando de forma impactante temas como trauma e culpa, enquanto acompanha a inquietante jornada de deterioração mental da protagonista. Porém, a narrativa se alonga desnecessariamente, tornando a segunda metade repetitiva, com sustos previsíveis que diminuem a tensão e enfraquecem o impacto do medo. Ainda assim, Sorria deixa uma marca inquietante, ecoando suas mensagens sobre trauma e sanidade.

Autor:


Meu nome é João Pedro, sou estudante de Cinema e Audiovisual, ator em formação e crítico cinematográfico. Apaixonado pela sétima arte e pela cultura nerd, dedico meu tempo a explorar e analisar as nuances do cinema e do entretenimento.

Lispectorante – A salvação é pelo risco

Lispectorante | Aroma Filmes

 

Participante da Premiére Brasil do 26º Festival do Rio, Lispectorante conta a história de Glória, uma artista plástica desempregada que passa por um momento de crise existencial em sua vida, e se apoia nas obras de Clarice Lispector, assim como uma nova amizade e romance com o andarilho Guitar, como um mecanismo de fuga da sua nova realidade opressora e desinteressante.

A obra traz à tona um sentimento de retorno da ideia de cinema de atrações, onde o espetáculo e as conquistas criativas visuais são mais importantes e mais evidentes do que qualquer sentido de contexto e da história em si, percepção que se sustenta também pela escolha de grading que destaca o vermelho, azul e verde, primeiras cores do cinema e muito usadas como deslumbre visual na época.  A direção de Renata Pinheiro é ousada e criativa, onde ao retratar a imaginação da personagem Glória, não tem medo de criar ambientes fantásticos e usar recursos visuais de iluminação que não são vistos normalmente no cinema brasileiro, se destacando nesse sentido. 

Os pontos altos do filme são a interpretação de Marcélia Cartaxo, que entrega a personagem Glória com paixão e profundidade, se mostrando extremamente carismática e única, e as sequências de sonho protagonizadas por Grace Passô, alter-ego fictício interno de Glória, que ilustram ludicamente os eventos vividos por ela no decorrer de sua história, em um cenário de uma banca de jornal remanescente em um Brasil apocalíptico, que de acordo com relatos da própria diretora se inspira nos eventos e sentimentos trazidos pela pandemia global de Covid-19.

Porém os pontos altos não são capazes de se manterem de pé sozinhos, com um roteiro que mal explora as próprias possibilidades, e tenta contar diversas histórias ao mesmo tempo, sem nunca se preocupar em concluir nenhuma, quase como se existissem muitas ideias e objetivos que os autores queria trazer para o filme, mas não foram capazes de abrir mão de algumas delas em prol de uma boa e instigante narrativa.

Em determinado momento, Guitar, também muito bem interpretado por Pedro Wagner, diz que ele e seus amigos tinham uma banda chamada “Lispectorante”, na qual as letras de suas músicas eram apenas os textos de Clarice Lispector traduzidas para uma língua estrangeira, depois para outra, para então ser retraduzida para o português e ver que tipo de resultado tal brincadeira traria, resultando em um monte de palavras desconexas, mas que, de alguma forma, funcionava. Tal momento consegue metalinguisticamente descrever o resultado do filme em si, que funciona, contendo seu começo meio e fim, mas que ao tentar ser muitas coisas simultaneamente, acaba por não se definir de fato.

Sendo assim, Lispectorante acaba por ser uma experiência estética corajosa e uma jornada de autoconhecimento para a protagonista, mas, ao mesmo tempo, provoca no espectador uma ambiguidade narrativa incômoda. O filme é uma obra que se propõe a ser um mosaico de sensações e interpretações, arriscando-se ao abordar a complexidade da experiência humana. Embora sua trama dispersa e inconclusiva possa causar certa frustração, também pode ser vista como uma característica que aproxima o filme das reflexões que fazemos das obras que consumimos, e nesse caso encarar que vez ou outra não são necessárias respostas claras, pois o valor da obra está na experiência sensorial e no convite à introspecção, e é através desse risco que o filme em si tenta se salvar.

Autor:


Henrique Linhales, licenciado em Cinema pela Universidade da Beira Interior - Covilhã, Portugal. Diretor e Roteirista de 6 curta-metragens com seleções e premiações internacionais. Eterno pesquisador e amante do cinema.

terça-feira, 29 de outubro de 2024

O Dia da Posse - Política e Imagem

O Dia da Posse | Embaúba Filmes

A trajetória de Brendo, que aspira à presidência do Brasil, revela uma juventude marcada pela ambição superficial e pela adaptação às dinâmicas das redes sociais. Enquanto estuda Direito e produz conteúdos para plataformas digitais, ele se projeta em um futuro de conquistas, refletindo não apenas um desejo de notoriedade, mas também a influência nociva de uma cultura de celebridade que prioriza a imagem em detrimento da substância. Essa idealização de liderança, exacerbada durante a pandemia por meio do entretenimento massivo, levanta questões inquietantes sobre a superficialidade dos valores que moldam os líderes da nova geração e sobre a capacidade real desses indivíduos de enfrentar os complexos desafios do país.

O documentário se desenvolve no contexto da pandemia da COVID-19, especificamente em 2020, quando a população foi forçada a permanecer em quarentena. Nele, são articuladas críticas contundentes ao presidente Jair Bolsonaro, destacando seu manejo das vacinas e o impacto prejudicial de suas decisões sobre a saúde pública. Essa análise levanta questões sobre a responsabilidade dos líderes políticos em momentos de crise. É provável que grupos com ideologias nacionalistas extremas não apenas discordem, mas também considerem as perspectivas apresentadas na obra como uma afronta, evidenciando a polarização crescente no debate político e social. Essa reação revela a dificuldade de engajamento com críticas fundamentadas, muitas vezes substituídas por uma defesa acrítica de narrativas que priorizam a ideologia em detrimento da verdade factual.

Embora se trate de um documentário, a obra evoca a estética de um filme do gênero slice of life, retratando personagens em atividades cotidianas, mesmo durante o isolamento. Cenas de exercícios na sala, cozinhar e conversas por vídeo oferecem uma visão íntima e realista da vida durante a pandemia. Essa abordagem destaca a resiliência e a adaptação das pessoas frente às dificuldades, mostrando como pequenos momentos do dia a dia podem se tornar significativos. Ao capturar essas experiências, o filme celebra a vida em sua forma mais autêntica, revelando a capacidade humana de encontrar conexão e significado, mesmo em tempos desafiadores.

A obra inclui detalhes que evocam a impressão de erros de gravação, exemplificados por Brendo ao tentar se posicionar adequadamente diante da câmera. Sua solicitação ao amigo para evitar gravações muito próximas, acompanhada de momentos de irritação, indica uma busca pela autenticidade em meio à vulnerabilidade da exposição. Essa dinâmica além de contribuir para a humanização do protagonista, funciona como dispositivo narrativo que destaca a desconexão entre imagem pública e a realidade pessoal, sublinhando a pressão que muitos sentem ao se expor em um mundo digital que exige perfeição. A tensão entre o desejo de ser visto de forma autêntica e a necessidade de se conformar a padrões de estética e comportamento estabelecidos pela sociedade cria uma profundidade emocional na narrativa, permitindo que o público se conecte mais intimamente com a experiência do protagonista.

Dia da Posse é uma obra multifacetada que, embora centrada na trajetória de Brendo, oferece uma reflexão profunda sobre a condição humana durante a pandemia. As críticas ao governo daquela época e as nuances da vida cotidiana durante o isolamento enriquecem o discurso, ressaltando a responsabilidade dos líderes e a complexidade das experiências vividas. Ao unir aspectos íntimos e coletivos, a obra não apenas documenta um momento específico, mas também convida o público a considerar as implicações sociais e emocionais de sua realidade.


Autor:


Meu nome é João Pedro, sou estudante de Cinema e Audiovisual, ator em formação e crítico cinematográfico. Apaixonado pela sétima arte e pela cultura nerd, dedico meu tempo a explorar e analisar as nuances do cinema e do entretenimento.

Anatomia de uma Queda - A História de um Homem que Cai

Anatomia de uma Queda | Le Pacte

Afinal, Sandra é culpada? Foi acidente? Nesse caso, pouco importa!

Tudo em Anatomia de uma queda cai. A bolinha, no início, descendo escada abaixo indicando que a relação do casal que há muito caiu. A relação pais e filhos segue caindo. As expectativas do início já estão no abismo desde o dia 1. O julgamento, teatral e terrivelmente feroz para a mulher, tudo em queda.

Anatomia de uma queda conta a história de um casal com um filho e um cachorro. O filme parece ter invertido os papéis, assim como em Cenas de um casamento de 2021. Sandra, não esbanja feminilidade, é prática, objetiva, trabalha fora, escritora de sucesso. Samuel, quase invisível, faz o papel do que a sociedade considera feminino. Do lar, cuida do filho, do cachorro e da casa, usa pano de prato no ombro, não se acha na carreira de escritor. À sombra de Sandra, amarga dentro de casa, segundo ele, sobrecarregado, sozinho, como o lagosta sem par.

O ressentimento era tempero constante na relação deles. A cena inicial já deixa claro isso: ela tentando conceder uma entrevista na sala, enquanto o som dele, em volume máximo, repetido e irritante, descia do andar de cima atrapalhando o andamento daquela conversa – que também caiu, não vingou. A criança, o filho, Daniel, possui deficiência visual em decorrência de um acidente acontecido outrora e que, como muitas outras coisas, não fica claro de quem foi a culpa! Daniel decide assistir ao julgamento e ali, sim ali, no meio do “teatro” fica conhecendo a ponta do iceberg do que são seus pais. Afinal, que criança sabe verdadeiramente quem são seus pais?

Durante o julgamento, para elucidação do ocorrido, o filme abusa de cenas de discussões anteriores ao fatídico dia. Durante dias e sessões exaustivas, a sexualidade, o amor, a bondade, a devoção, a lealdade, o caráter de Sandra são expostos à prova o tempo inteiro.

Em dado momento, a acusação expõe o áudio de uma discussão entre o casal. Discussão calorosa que quem escuta com um “ouvido de Samuel”, encontra um homem triste, traído, injustiçado. Quem escuta com um “ouvido de Sandra”, encontra um homem covarde e uma mulher que fez da vida o que achava que devia ter feito. Na discussão, ele, histérico, culpa Sandra pelo acidente do filho além de alegar que nunca chegou aonde queria porque ela roubou a vida dele e a ideia do seu livro. Ela, calma, claro!, diz que ele não fez o que quis porque não teve coragem. Não só não bancou o próprio desejo, como ainda imputou culpa a terceiro.

Antes do veredito, Daniel informa que vai depor. O julgamento é adiado para o dia seguinte e, em casa, Daniel pede para ficar apenas com a tutora designada pelo juízo. Em um determinado passeio frio, conversando, Daniel pergunta à tutora como se toma uma decisão difícil. Ela não sabe, mas supõe que às vezes é uma questão de escolha. Pronto! Ali estava desenhado o filme. Cortando para Daniel tocando no piano a mesma música que tocava junto com Sandra no início do filme. Ele escolheu! Fez o que foi possível.

Fim de julgamento! Sandra inocentada, comemora com os advogados sua liberdade ao mesmo tempo em que chora por ter sido nessas circunstâncias. Vai para casa. Sobe ao quarto do filho. Ele dorme! Antes que ela se retire, ele a chama. Eles se abraçam. Um ato de cumplicidade? Um conforto de terem um ao outro? Jamais saberemos. Ato final, no escritório, Sandra, deitada, abraça o cachorro. Toca a mesma música que mãe e filho costumavam tocar juntos, em par.

Assassinato? Suicídio? Acidente? Nesse caso, de novo, pouco importa! Anatomia de uma queda, parafraseando a psicanalista Maria Homem, é sobre um homem que cai, mas também, ouso dizer, sobre escolher o que se aguenta sustentar.

Autora:


Lá em 2004 participei do meu primeiro filme. Ali apaixonei pelo cinema, mas como toda boa paixão, à la Jack e Rose, naufragou. A vida toma rumos e acabei seguindo outra área. Mas nada apaga uma boa paixão, né isso? Me chamo Carol Sousa e hoje falo e escrevo sobre cinema, quem sabe isso quer dizer amor...

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