segunda-feira, 20 de outubro de 2025

Fernão de Magalhães (2025) disserta sobre o processo colonizatório

 

Fernão de Magalhães (2025) | Filmes do Estação

A virada do século XV para o século XVI não só marcou o fim da Idade Média na Europa, mas também foi marcada pelas Grandes Navegações que os reinos europeus promoviam para justamente encontrar novas rotas comerciais de especiarias. Todos queriam achar o mais rápido e ter o controle total dessa "mina de ouro". 

E como todo brasileiro sabe, porque isso acarreta um pouco na nossa formação histórica, a maior potência naquela época era o reino de Portugal. Enquanto o território brasileiro não sofria das intervenções das garras coloniais, a vítima da vez eram as nações asiáticas. E durante a brutal ocupação de Malaca, que hoje pertence à Malásia, pelo Vice-Rei das Índias Portuguesas que conhecemos Fernão de Magalhães, o objeto de estudo do novo épico do diretor filipino Lav Diaz.

Fernão de Magalhães (1480-1522) foi um soldado do exército imperial que chegou ao posto de capitão e, a mando do rei de Portugal, foi enviado para auxiliar na conquista de territórios das Índias, que, após se ferir em batalha, volta para a metrópole para se recuperar, junto com alguns espólios, e começa a maquinar uma nova rota de navegação que, à princípio, iria assegurar a posição de Portugal, contra os avanços das expedições castelhanas: uma rota que desse uma volta ao globo. 

No entanto, para a sua surpresa o rei rejeita a proposta e o expulsa da corte portuguesa. Sentindo-se traído, Magalhães vai, então, para o reino de Castela (Espanha) que financia a expedição da nova rota. E talvez o rei português tenha razão, pois a viagem é tumultuada com Fernão passando cada dia mais esquizofrênico, tentativa de motim e boa parte de sua tripulação perecendo pelos diversos tipos de doenças e insolações durante o percurso. Para sua sorte o trajeto de Magalhães o leva para o reino de Mactan, na ilha de Cebu, região que hoje forma parte das Filipinas. 

O roteiro nós conhecemos bem... Magalhães conhece o líder da comunidade, traz presentes para firmar uma relação mais estreita, introduz os nativos ao cristianismo e, depois disso, quem não estiver de acordo com a visão de mundo dos colonizadores, será alvo de uma represália em nome da corte e da igreja. E essa tentativa de dominar  esse povo que será a ruína ou, melhor dizendo o último prego no caixão de Magalhães.

Nesta obra, Lav Diaz, apesar de fazer um filme que dialoga muito ao estilo do cinema português, não tem nenhuma intenção de glorificar o passado de uma nação europeia, ao invés disso, ele usa dessa personagem histórica para construir uma ponte cultural e temporal que tem a ver com o início de uma transformação muito importante e traumática da história das Filipinas. 

Porém, Diaz tem uma intenção de dimensionar algo que foi tão particular, para uma universalização ampla do contexto colonizatório. Algo com que possamos nos relacionar. Um exemplo disso já aparece na primeira cena do filme, ainda em Malaca, em que vemos uma mulher no rio coletando água numa jarra e quando ela vê os portugueses se aproximando, a expressão dela muda para um terror absoluto, como se o chão estivesse sendo tirado dela, ficando á mercê da morte.

Fernão não sabe, mas ele tem dentro de si, uma autodestruição  que causa tanto mal aqueles que se opõem à coroa quanto aos seus entes queridos. Quem interpreta o Magalhães do título é o ator mexicano Gael García Bernal, que está bem no papel, apesar de esbarrar na fronteira entre o português e o espanhol em alguns momentos. 

Apesar da personagem ter sido considerada como um "herói" (e com muitas aspas!) por bons séculos na história portuguesa, aqui vemos um Magalhães pequeno que tenta desafiar as forças que o mundo externo põe sobre seus ombros, um homem com suas complexidades e dores, mas que também, à mando de quem serve, um homem crudelíssimo e paranoico. 

Fernão, aqui, não é só uma personagem, mas uma representação da ambição do projeto colonial. Um garimpeiro em busca de seu ouro, mesmo que às custas de uma população, com sua truculência política e espiritual. Um instrumento do estado e do papa. Um agente do genocídio. Por todo lado que passa, ele causa o pânico e a destruição.

Por outro lado, Diaz desvia a atenção de Magalhães para outras personagens que servem para contar esse capítulo da história, pessoas marginalizadas e povos que tiveram contato com a expedição, como Enrique (Amado Arjay Babon), um filipino escravizado que serve como o tradutor oficial de Magalhães durante a viagem, e Rajah Humabon (Ronnie Lazaro), o líder dos Mactan que, após os espanhóis forçarem seu poder e forçarem os nativos ao cristianismo, irá declarar guerra contra a armada de Fernão. 

Diaz compõe tableaux vivants assustadoramente lindos, demonstrando a beleza e a violência do mundo, tudo em cena é meticulosamente posto, em planos longos que dão o tempo do espectador paciente de absorver e devorar cada detalhe. O uso da fotografia e iluminação é um espetáculo à parte. E todo o trabalho de som do longa é interessantíssimo, ao produzir uma textura muito única e de focar nos sons da natureza que envolvem o espectador para dentro de seu mundo. É um orgasmo visual e auditivo: em um momento, você se sente relaxado com o som do mato ou da chuva; e no outro, você leva um susto com o som dos tiros dos canhões em alto mar. 

O realizador faz parte do movimento do slow cinema, em que realizadores fazem filmes mais lentos e/ou contemplativos. Se, dentro do cinema asiático, o diretor tailandês Apichatpong Weerathakul é o exemplo mais popular, Lav Diaz é o mais extremo: seus projetos tem fama de serem considerados alguns dos filmes mais longos da história com oito ou até dez horas de duração. Fernão de Magalhães (2025) tem somente duas horas e meia de duração, o que torna um de seus longas mais acessíveis ao público. 

No entanto, a impressão que passa é de um corte mais comercial, dado em vista que o filme foi selecionado para o Festival de Cannes deste ano e é o representante das Filipinas a uma vaga ao Oscar de Melhor Filme Internacional em 2026. A sensação que fica é, apesar de ter passado uma jornada inteira, ainda falta alguma coisa a mais. Talvez menos tempo na caravela e um pouco mais de tempo desenvolvendo o núcleo filipino no terceiro ato do filme? Talvez é provável Diaz trabalhe mesmo no corte de nove horas, citado durante sua passagem em Cannes, para algum momento no futuro, e, possivelmente, teremos as respostas. 

Mas o que temos agora é um épico sobre um homem que tenta impor sua glória que um dia, certamente, caíra por aqueles que tentaram oprimir. Uma obra de arte que precisa ser apreciada no seu próprio tempo e ritmo. Uma dissertação sobre o processo colonizatório: as veias abertas das Filipinas. Perfeito para ver num fim de tarde, acompanhado de um bom café.

*Esta crítica faz parte da cobertura do 27o Festival do Rio, realizado em 2025.

Autor:
                                  

Eduardo Cardoso é natural do Rio de Janeiro, Cidade Maravilhosa. Cardoso é graduado em Letras pela Universidade Federal Fluminense e mestre em Estudos de Linguagem na mesma instituição, ao investigar a relação entre a tragédia clássica com a filmografia de Yorgos Lanthimos. Também é escritor, tradutor e realizador queer. Durante a pandemia, trabalhou no projeto pessoal de tradução poética intitulado "Traduzindo Poesia Vozes Queer", com divulgação nas minhas redes sociais. E dirigiu, em 2025, seu primeiro curta-metragem, intitulado "atopos". Além disso, é viciado no letterboxd. 

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