quinta-feira, 18 de setembro de 2025

Dormir de Olhos Abertos - e o peso do não pertencimento

Dormir de Olhos Abertos | Vitrine Filmes

O novo filme de Nele Wohlatz, Dormir de Olhos Abertos (com produção de Kleber Mendonça Filho), aposta em um retrato diferente da imigração. Em vez de mostrar personagens que encontram no Brasil um espaço de acolhimento ou de oportunidades, vemos o contrário: Xiao Xin, Fu Ang e Kai caminham por Recife sem rumo, sem pertencimento e sem qualquer encanto com a cidade.

Eles não são turistas em busca de experiências para guardar, mas imigrantes tentando sobreviver a trabalhos informais e ao estranhamento de viver em um lugar que não é deles. A sensação é de que estão sempre de passagem, atentos, mas nunca tranquilos. O título resume bem essa ideia: a agitação involuntária de estar em um lugar diferente, soa como se eles estivessem constantemente dormindo com os seus olhos abertos, nunca podendo relaxar.

A narrativa reflete esse deslocamento sem rumo. Não há uma história linear, e sim fragmentos: deslocamentos, encontros rápidos, diálogos em múltiplos idiomas (chinês, português, espanhol, inglês e alemão). Essa mistura linguística reforça a barreira cultural, já que a comunicação acontece de forma parcial, quase sempre atravessada por ruídos. É interessante como a diretora transforma a dificuldade de entender em um elemento central do filme.

A fotografia segue uma linha simples e próxima, sem se render ao Recife cartão-postal. O olhar é intimista e cotidiano: fachadas gastas, ruas movimentadas, detalhes que poderiam passar despercebidos. É um registro da cidade pelos olhos de quem nunca se sente parte dela.

Um dos momentos mais fortes envolve a xenofobia. Essa cena traz um choque direto, lembrando que o não-pertencimento também passa pelo preconceito. O problema é que, fora esse ponto, a narrativa às vezes parece dispersa demais, abraçando personagens sem se aprofundar tanto neles.

O ritmo um pouco lento pode afastar o público, assim como o final em aberto, que soa mais como indecisão do que como escolha estética. Ainda assim, existe valor nessa proposta de olhar para a experiência do estrangeiro no Brasil sem idealizações.

Dormir de Olhos Abertos não é um filme fácil. É lento, fragmentado e, em certos momentos, frustrante. Mas também é único na forma como aborda o deslocamento, a solidão e o choque cultural. 

Autor:

Bárbara Borges é do Rio de Janeiro e estudante de Jornalismo. Apaixonada por cinema desde criança, sempre foi movida por histórias intensas, especialmente as de terror, seu gênero favorito. Em 2024, dirigiu o documentário Além do Recinto, que levanta questionamentos sobre o bem-estar de animais silvestres em zoológicos e o impacto do confinamento longe de seus habitats naturais. Gosta de pensar no cinema como uma forma de provocar, sentir e transformar. Vive atualizando seu Letterboxd com comentários sinceros e, às vezes, emocionados. Entre seus filmes favoritos estão Laranja Mecânica, Psicopata Americano, Pânico, Pearl e Premonição 3.


A Longa Marcha: Caminhe ou Morra - A Maratona da Morte

A Longa Marcha: Caminhe ou Morra | Paris Filmes


Em um futuro distópico, 100 jovens participam de uma competição brutal na qual só um pode sobreviver. A cada passo, a tensão aumenta. A Longa Marcha é uma adaptação eletrizante da obra de Stephen King.

O filme é uma daquelas obras de sobrevivência intensas, que conseguem prender o espectador do início ao fim. Assim como em Jogos Vorazes, também dirigido por Francis Lawrence, aqui o diretor mostra mais uma vez sua habilidade em criar atmosferas de tensão e urgência. A comparação com Round 6 também é válida, especialmente pelo caráter brutal da competição, onde seguir em frente é a única regra  — qualquer deslize, por menor que seja, significa a morte. O longa se destaca por sua narrativa direta e impactante, que não dá respiro ao público, refletindo a exaustão dos personagens. A maneira como a tensão é construída — especialmente quando uma vítima está prestes a morrer — é eficiente e emocionalmente envolvente. A câmera se aproxima, o som estrondoso da arma vem como um choque, e o espectador sente o peso da perda. Tudo isso mostra que, mesmo em meio a violência, o filme consegue despertar empatia e reflexão. Com uma direção segura e um ritmo bem conduzido, o filme não apenas entrega entretenimento, mas também provoca o espectador a pensar sobre os limites humanos e o custo da sobrevivência.


O protagonista da história é Raymond Garraty, um jovem que se alista para a competição motivado por questões mal resolvidas com o Major, uma figura autoritária que representa tanto o sistema opressor quanto um conflito pessoal direto na vida de Raymond. A relação entre os dois é marcada por tensão e ressentimento, funcionando como um dos pilares emocionais da narrativa. Esse embate simbólico entre o jovem rebelde e a figura de poder acrescenta profundidade ao enredo, destacando temas como controle, resistência e a busca por identidade em meio ao caos.


Durante a caminhada, Ray desenvolve uma forte amizade com Peter — uma conexão que, apesar de recente, rapidamente se transforma em um laço profundo de companheirismo no inferno que estão enfrentando. Em meio à brutalidade da competição, os dois se tornam uma espécie de porto seguro um para o outro: ajudam-se nos momentos de fraqueza, quando um está à beira da morte, e se puxam de volta para a realidade do jogo. Em certos momentos, trocam provocações e brincadeiras como forma de aliviar a tensão, o que humaniza a jornada e oferece respiros emocionais ao espectador. Essa relação sincera entre os personagens é um dos pontos altos do filme, pois mostra que, mesmo em um cenário desumano, ainda é possível encontrar solidariedade, afeto e resistência por meio dos vínculos humanos.


As cenas de violência são intensas e impactantes, retratando de forma crua as consequências físicas e psicológicas da competição. A direção não poupa o espectador da brutalidade, mas evita o exagero gratuito, mantendo a tensão constante e reforçando o clima opressivo da narrativa.


A Longa Marcha se destaca como uma adaptação poderosa e emocionalmente carregada da obra de Stephen King. Com uma direção precisa de Francis Lawrence, o filme não apenas entrega cenas de tensão e impacto visual, mas também mergulha em temas profundos como opressão, amizade, resistência e o limite da condição humana. Ao equilibrar brutalidade com momentos de humanidade genuína, a narrativa consegue ser envolvente sem perder sua crítica social. É uma obra que não se limita a entreter — ela também provoca, incomoda e faz refletir. Uma experiência intensa e memorável para quem busca mais do que apenas ação em uma história de sobrevivência.


Autor:


Meu nome é João Pedro, sou estudante de Cinema e Audiovisual, ator e crítico cinematográfico. Apaixonado pela sétima arte e pela cultura nerd, dedico meu tempo a explorar e analisar as nuances do cinema e do entretenimento.

segunda-feira, 15 de setembro de 2025

A Grande Viagem Da Sua Vida (2025) - Entre o real e a performance

 

A Grande Viagem da Sua Vida | Sony Pictures

Nos primeiros minutos do filme, conhecemos David (Colin Farrell), um homem balzaquiano, solteiro, preparando-se para ir a um evento. Ele descobre que o carro dele foi multado e vai até uma agência, muito suspeita por sinal, para alugar um automóvel. A atendente da empresa (Phoebe Waller-Bridge) é bem peculiar, trata David, um cliente, como se fosse uma diretora de casting, e oferece um modelo de carro antigo com GPS a ele.

David, não tendo outra alternativa, aluga o carro e chega ao evento: um casamento de um amigo, no qual ele nota Sarah (Margot Robbie), pela primeira vez. Eles acabam se conhecendo um pouco e há uma certa química no ar; mas, como os dois são emocionalmente indisponíveis, há também uma certa distância. A partir do ponto em que o GPS do carro de David sugere que ele tem de socorrer Sarah, cujo automóvel para de funcionar no meio do caminho, e seguir por meio de uma jornada mística, o nosso filme, de fato, começa.

A Grande Viagem Da Sua Vida (2025) é o novo filme dirigido pelo Kogonada, de Columbus (2017) e After Yang (2021); e quem conhece o trabalho do diretor vai notar que este lançamento da Sony é, ao mesmo tempo, uma mudança de ângulo e uma continuação temática de sua filmografia. Kogonada tem um profundo olhar estético do cinema como forma: o modo que decupa, filma e edita é formidável; e seus filmes de ficção buscam pela essência das relações humanas ou/e pelo sentimento de humanidade. 

O roteiro assinado Seth Reiss, de O Menu (2022), se apropria de arquétipos e de metáforas já manjadas para criar novas ideias mais interessantes, apesar do texto soar muito como livro de autoajuda em um momento ou outro; muito açucarado para o meu gosto. Porém, a abordagem da narrativa através do fantástico talvez seja o maior trunfo do roteiro, já que as regras do mundo dito real não se aplicam na lógica da obra e permite novas camadas a serem exploradas.

A viagem que David e Sarah embarcam é para dentro de si e de entender qual é o próprio papel em sua respectiva narrativa. São pessoas diferentes: ele aparenta ser mais soturno, ela bem solar. David foi uma criança superprotegida pelos pais, tem problemas com rejeição e um complexo de conquistador; enquanto Sarah tem questões pessoais mal resolvidas por não estar presente e se culpa eternamente por isso, levando a não criar nenhum vínculo emocional com ninguém. Para poderem se conectar e se misturar, eles precisam justamente entrar em seus próprios mundos e olhar para a pessoa que um dia foram com outro par de olhos. 

David e Sarah são tratados como dois performers que ainda não acharam a identidade de suas personagens, e, portanto, não podem começar um relacionamento. Há um jogo bastante interessante aqui. O amor não é só um sentimento, mas também uma performance afetiva. Por trás da fantasia, há um jogo de cena em que precisam tomar partido. 

As protagonistas acabam encarando recriações de seus passados para conseguir ter o vislumbre de como devem agir, sentir e portar em sua performance. O amor torna-se a fantasia que David e Sarah devem justamente incorporar; e, a cada porta que abrem, eles ficam a passos mais próximos, ou distantes, de não só se conectarem, mas de transformar essa fantasia em realidade. Esse jogo metalinguístico, mesmo que sutil, se torna mais claro ao espectador à medida que a narrativa se desenrola. Estariam eles se apaixonando ou próximos de interpretar uma versão apaixonada de si mesmos?

Em mãos menos habilidosas, A Grande Viagem poderia se tornar um filme bem qualquer coisa, pesando a mão no sentimentalismo barato em busca de uma “edificação” do espírito; mas Kogonada soube bem equilibrar o tom meio “sessão da tarde” com o existencialismo, muito próximo de seus projetos anteriores. O diretor cria toda uma atmosfera colorida, cheia de vida, mas traz consigo a sensação da distância, do silêncio, das pausas e do uso da trilha sonora do fabuloso compositor Joe Hisaishi, dando um ar mais sofisticado à narrativa.

Apesar do filme ser um experimento voltado ao mainstream, nem tudo no filme funciona como esperado e, por sinal, alguns pontos chegam a ser rasos; mas ainda há uma sinergia em tela que não deixa o longa afundar dentro de si tão profundamente. Farrell e Robbie parecem estar confortáveis com seus papéis, caindo de cabeça no conceito da trama e suas variantes, e sem a química que há entre eles, a história não funcionaria desde o início. 

A Grande Viagem é aquele tipo de “filme conforto” que, entre acertos e tropeços, atinge de alguma forma o espectador que está disposto a embarcar na jornada. É necessário um pouco de paciência, mas o caminho vale a pena.


Autor:
                                  

Eduardo Cardoso é natural do Rio de Janeiro, Cidade Maravilhosa. Cardoso é graduado em Letras pela Universidade Federal Fluminense e mestre em Estudos de Linguagem na mesma instituição, ao investigar a relação entre a tragédia clássica com a filmografia de Yorgos Lanthimos. Também é escritor, tradutor e realizador queer. Durante a pandemia, trabalhou no projeto pessoal de tradução poética intitulado "Traduzindo Poesia Vozes Queer", com divulgação nas minhas redes sociais. E dirigiu, em 2025, seu primeiro curta-metragem, intitulado "atopos". Além disso, é viciado no letterboxd

Ne Zha - Quando o Espírito Demoníaco Resolve Virar Herói (Tipo Naruto, Mas Chinês)

Ne Zha | Trinity CineAsia

A animação lembra o anime Naruto; ambos compartilham uma jornada marcada por rejeição, poder perigoso e busca por aceitação. Ne Zha e Naruto nasceram com um destino temido pelos outros — Ne Zha por carregar um espírito demoníaco e Naruto por abrigar a Raposa de Nove Caudas. Desde cedo, enfrentam preconceito e solidão, desenvolvendo uma personalidade rebelde e determinada. Apesar de serem vistos como ameaças, recusam-se a ser definidos por isso. Com grande poder interior, enfrentam desafios não apenas para provar seu valor, mas para mostrar que podem escolher seu próprio caminho. No fundo, suas histórias falam sobre identidade, superação e a força das escolhas pessoais.

As cenas de ação da animação Ne Zha são visualmente impressionantes e carregadas de energia, prendendo a atenção do espectador do início ao fim. Com uma animação fluida e detalhada, o filme combina artes marciais com magia, criando um espetáculo visual que eleva cada combate a um nível quase mítico. Os movimentos dos personagens são dinâmicos, ágeis e precisos, resultando em coreografias que misturam técnica, criatividade e emoção. Os confrontos são construídos com ritmo e tensão, explorando bem o potencial de cada personagem. A magia é usada de forma inventiva, com ataques que vão além do tradicional, incorporando elementos como fogo, vento, raios e energia espiritual. Esses recursos não só enriquecem as batalhas visualmente, mas também reforçam a natureza caótica e poderosa de Ne Zha, refletindo seu conflito interno e o desequilíbrio entre destino e escolha.

A relação entre Ne Zha e Ao Bing é marcada por contraste, mas também por uma conexão inesperada. Eles vêm de origens muito diferentes e carregam grandes responsabilidades, além de poderes únicos. Ne Zha, nascido com um espírito demoníaco, é visto como uma ameaça; Ao Bing, filho do Rei Dragão, foi criado para restaurar a glória dos clãs dragões, o que o coloca em oposição direta a Ne Zha. Apesar disso, compartilham sentimentos de solidão e o desejo de serem aceitos pelo que realmente são, não pelo que o mundo espera deles. Ao longo da história, os dois desenvolvem uma relação que transita entre rivalidade e empatia. Suas interações são profundas e refletem temas como destino, identidade e liberdade de escolha. Essa dinâmica entre os dois personagens adiciona emoção e complexidade à narrativa, tornando suas jornadas ainda mais impactantes.

Ne Zha é uma animação poderosa que combina espetáculo visual com uma narrativa profunda e emocional, capaz de tocar públicos de todas as idades. A produção se destaca não apenas pela qualidade técnica — com cenários vibrantes, movimentos fluidos e efeitos visuais impressionantes —, mas também pela forma como constrói uma história rica em simbolismos e emoção. Com personagens cativantes e bem desenvolvidos, o filme apresenta conflitos que vão além do físico, mergulhando nas dores e dilemas internos de seus protagonistas. As cenas de ação refletem as emoções e transformações dos personagens, abordando temas como rejeição, identidade e superação de forma sensível e profunda. A história vai além do mito, mostrando a jornada de Ne Zha para desafiar seu destino e as expectativas, transmitindo uma mensagem inspiradora sobre amadurecimento, liberdade de escolha e coragem para assumir o próprio caminho.

Autor:


Meu nome é João Pedro, sou estudante de Cinema e Audiovisual, ator e crítico cinematográfico. Apaixonado pela sétima arte e pela cultura nerd, dedico meu tempo a explorar e analisar as nuances do cinema e do entretenimento.

Rosário - Um terror, 200 contas de terço e uma hora e vinte oito minutos que parecem não ter fim

Rosario | Imagem Filmes


Rosário (Emeraude Toubia), uma jovem latina e bem-sucedida funcionária de uma empresa de investimentos em Nova Iorque, recebe uma ligação informando sobre a morte de sua avó. Ao atender, o porteiro do prédio informa que, por ser uma imigrante ilegal, o corpo dela será levado para um hospital qualquer e pode desaparecer no sistema. Determinada a evitar isso, Rosário decide ir ao apartamento da avó para ficar com o corpo até a chegada da ambulância. É quando coisas sinistras começam a acontecer.

Rosário, dirigido por Felipe Vargas, começa com uma premissa interessante: a urgência de uma jovem presa em um local isolado com o corpo de sua avó enquanto eventos terríveis se desenrolam. Essa situação inicial cria uma tensão palpável, capturando a atenção nos primeiros minutos. No entanto, a inspiração do filme parece esgotar-se rapidamente, e a obra se rende a jumpscares e flashbacks excessivamente expositivos.

Apesar do potencial do prédio abandonado e do apartamento bizarro, a direção falha ao tornar a experiência previsível. O cenário excessivamente claro e o filtro verde constante tornam as cenas visualmente exaustivas, prejudicando a atmosfera de terror que o filme tenta construir. A montagem acelerada é um dos principais pontos fracos, pois não permite que os eventos causem o impacto necessário no espectador. A falta de um verdadeiro senso de risco para a protagonista, Rosário, faz com que o público não tema por ela, tornando a narrativa desinteressante.

O filme busca, também, abordar a experiência traumática da imigração ilegal, ligando os eventos sobrenaturais à travessia da fronteira. Contudo, essa proposta acaba sendo superficial, pois a obra não aprofunda questões culturais e religiosas que permeiam a vida de imigrantes. O roteiro tenta criar elos entre o sobrenatural e o passado familiar, expandindo a história para além da relação entre avó e neta. No entanto, essa escolha se perde ao não aprofundar de fato em nenhuma das relações, diluindo a força emocional do enredo.

Em suma, Rosário é um filme ambicioso que falha na execução. Ele tenta ser muitas coisas, mas a falta de consistência na direção, a montagem problemática e o roteiro superficial o impedem de sustentar sua premissa. O filme acaba se tornando um exemplo de como uma ideia promissora pode ser sacrificada em favor de artifícios como o bom e velho jumpscare, deixando de lado a oportunidade de construir um terror psicológico mais significativo.



Autor:


Mateus José é graduando de Licenciatura em Cinema e Audiovisual pela UFF, escritor, poeta, montador e aspirante a diretor de fotografia. Apaixonado pelas artes, literatura, música e principalmente o cinema, dedica-se a consumir, estudar e dissecar as camadas mais profundas do cinema e da arte.

Filhos - A Culpa e a Penitência que Todos Nós Carregamos

Filhos | Mares Filmes

O mais novo filme do diretor dinamarquês Gustav Möller, Filhos, estreou nos cinemas brasileiros no último julho. A obra, que concorreu ao Urso de Ouro no ano passado em Berlim, relata a história de uma agente carcerária que tem sua vida transformada do dia para a noite quando percebe que o novo jovem a integrar o presídio no qual trabalha é simplesmente o sujeito que matou seu filho em outro reformatório. A partir disso, Eva (Sidse Babett Knudsen) entra em um conflito interno ético-moral e passa a ter comportamentos atípicos com o novo detento. Entretanto, suas ações acabam tendo consequências sérias naquele recinto, e ela percebe que, aos poucos, não corre o risco de apenas perder o seu emprego, mas também de perder a si mesma.

É preciso reconhecer que o trabalho de Sidse Knudsen está fantástico neste thriller psicológico, e sua performance é fundamental para nos conduzir emocionalmente durante todo o filme. A atriz consegue expressar seus dilemas com sutileza e profundidade, nos levando por uma verdadeira montanha-russa de sentimentos. Sua personagem demonstra estar em constante conflito — existe uma linha tênue sobre a qual a protagonista parece se equilibrar, o fio da navalha entre o que é justo e o que ela acredita ser certo. E isso é transmitido de forma extremamente palpável, gerando em nós, espectadores, uma inquietação constante: o que faríamos se estivéssemos no lugar dela?

Por mais que as locações do longa-metragem concentrem boa parte do tempo no espaço prisional, Gustav Möller utiliza com inteligência cada ambiente, cada vazio, para nos imergir em uma atmosfera claustrofóbica. A rotina rígida e os protocolos do presídio são constantemente apresentados e reforçam a estrutura fechada e inalterável daquele universo. É como se o tempo ali tivesse uma cadência própria, marcada por repetições, alarmes, portas de aço se fechando — tudo ordenado e previsível. No entanto, com a chegada do novo presidiário, tudo ao redor parece permanecer estático, mas dentro de Eva, há uma ruptura silenciosa, quase imperceptível à primeira vista. O mundo segue seu curso no presídio, mas dentro dela, a rotina se torna insuportável. O trauma, o luto mal resolvido e o conflito moral explodem em forma de um estresse psicológico crescente, que vai tomando conta da narrativa como uma bomba-relógio prestes a explodir.

O filme caminha, assim, para um final climático, intenso e emocionalmente devastador, onde a realidade entre os dois protagonistas finalmente se choca. Quando ambos são forçados a confrontar os fantasmas do passado, não há escapatória: tudo que foi reprimido, contido ou silenciado até então, vem à tona. É nesse embate que compreendemos que não é apenas o infrator quem cumpre uma penitência — Eva também carrega um fardo, uma dor que nunca foi elaborada. Ambos são prisioneiros, não apenas do sistema, mas de suas próprias culpas e memórias.

Filhos é uma história crua e visceral, que não busca soluções fáceis nem respostas claras. É um filme realista, duro, onde os personagens são tratados com profundidade e complexidade. As atuações são marcantes, e a direção de Möller é concisa e íntima, nos conduzindo por um drama psicológico inquietante e inesquecível.

Autor:


Meu chamo Leonardo Veloso, sou formado em Administração, mas tenho paixão pelo cinema, a música e o audiovisual. Amante de filmes coming-of-age e distopias. Nas horas vagas sou tecladista. Me dedico à exploração de novas formas de expressão artística. Espero um dia transformar essa paixão em carreira, sempre buscando me aperfeiçoar em diferentes campos criativos.

segunda-feira, 8 de setembro de 2025

Invocação do Mal 4: O Últmo Ritual- OU DELÍRIO COLETIVO?

 

Invocação do Mal 4: O Último Ritual | Warner Bros. Pictures


Tudo que há de bom, tem que acabar. Em alguns casos, a bonança já foi embora algum tempo atrás…

 Um fenômeno do mundo do terror nasceu em 2013, uma assombração que pegou o público desprevenido e implorando por mais: a franquia Invocação do Mal (The Conjuring, no original), encabeçado pelo diretor James Wan, que pariu duas outras sagas do gênero, Jogos Mortais, em 2004, e Sobrenatural, em 2010. 

A série paranormal de filmes acompanha alguns dos casos mais espinhosos do casal Ed e Lorraine Warren (Patrick Wilson e Vera Farmiga, respectivamente), especialistas, como eles dizem, do além e da demonologia. O primeiro filme arrecadou mais de 300 milhões de dólares mundiais contra um orçamento de 20, desencadeando, naturalmente, sequências e spin-offs interligados: como o da boneca Annabelle (2014-2019) e a demoníaca Valak, também conhecida como  A Freira (2018-2023). 

Os longas são dramatizações desses casos (o famoso/infame “baseado em fatos reais”) pela visão do casal, enraizada em crenças do catolicismo, que, por muito tempo, se envolveu em controvérsias sobre a documentação e veracidade dos fatos que tanto alegava para a mídia. Estas narrativas colocam os Warren como salvadores de um seio familiar diferente a cada filme, expurgando-lhes do mal que o devora por dentro: o caso da família Perron, no primeiro filme (2013); a possessão em Enfield, no segundo (2016); o julgamento de Arne Johnson, no terceiro (2021); e o poltergeist da família Smurl, agora nesta última parte (2025).

Ambientados nos anos 80, após os eventos do filme anterior, Ed e Lorraine Warren vivem uma pausa em sua carreira de investigadores paranormais, restringindo-se em realizar palestras sobre antigos casos, devido à problemas de saúde do patriarca. Lorraine começa a ter suspeitas de que a filha do casal, Judy (Mia Thomlison), que está prestes a se casar, esteja apresentando problemas em relação a sua mediunidade. Enquanto isso, em um subúrbio industrial da Pensilvânia, acompanhamos a assombração que atormenta os Smurl, uma família católica da classe operária; porém, a mesma entidade demoníaca tem uma ligação importante com o passado dos Warren e deseja reclamar Judy para si.

A franquia Invocação do Mal, desde os seus primórdios, usa da liberdade criativa, em graus variados ao longo dos filmes, para preencher as lacunas e incongruências dos relatos dos Warren e deixar a narrativa mais uniforme e linear; isto não é uma novidade. O que fez os primeiros capítulos desta saga funcionarem foram uma série de fatores estéticos e narrativos, muito além do “baseado em fatos”: a química entre Wilson e Farmiga como o casal de protagonistas; a direção afiada de James Wan que constrói com precisão a atmosfera sensorial da narrativa; o roteiro que desenvolve bem os personagens e arquiteta muito bem a suspensão da descrença, que é fundamental para um terror católico. 

Com a renovação da equipe criativa no terceiro filme -  sai Wan na direção e os irmãos Hayes no roteiro, respectivamente, e entra Michael Chaves e David Leslie Johnson-McGoldrick -  e duas das três qualidade citadas no parágrafo anterior são obliteradas por uma direção e um roteiro igualmente fracos. Deste modo, aproximando a qualidade da franquia principal com os seus derivados, que tiveram uma recepção mista em seus lançamentos. Agora, esta mesma equipe criativa tem a missão de encerrar o ciclo de narrativas dos Warrens, em um longa-metragem que promete muito e pouco se concretiza. Ou seja, o que não estava funcionando na obra anterior, ainda continua capenga.

Após a recepção divisiva de Invocação 3 entre críticos e fãs, principalmente pela estrutura de investigação procedural, a equipe, para este novo projeto, tenta a todo custo “voltar às origens”, ao estilo que fez a franquia ressoar bastante no público. Contudo, o filme apresenta uma narrativa que, ao mesmo tempo, é bastante redundante em si e mal desenvolvida ao ponto da franquia retomar a forma de outrora. 

Chaves tem uma direção mais direta e agressiva, cujo clima e tempo transcorrido é demasiado corriqueiro; enquanto o guião de Johnson-McGoldrick (e reescrito por Ian Goldberg e Richard Niang) é inflado, mas não tem muita sustância que o deixe firme. A interação entre os dois núcleos da trama é quase inexistente até o terceiro ato, deixando a sensação de que o espectador está assistindo a dois filmes completamente diferentes, amarrados de forma frouxa. 

Existe o sacrifício simbólico da relação entre os Warren e a família assombrada da vez, para focar na trajetória de Judy (e possível rosto do futuro da franquia), como uma vítima indefesa de uma possível e iminente tragédia, que é arquitetada pela obra. As relações interpessoais entre pessoas de diferentes contexto é substituída por um solipsismo piegas, projetado para a manipulação emocional escancarada do público. Os Smurl, como uma personagem coletiva, em contrapartida, são mal explorados aqui, uma escolha muito estranha; pois até o catolicismo é uma personagem mais proeminente na obra do que eles. O exagero na liberdade poética da produção acaba diminuindo o potencial narrativo e as situações parecem forçadas ao espectador, beirando ao sensacionalismo. A suspensão da descrença? Não existe aqui, desde que somos apresentados por uma cena com tons escancarados de “pró-vida” logo nos primeiros minutos. Que situação!

Apesar de ter poucos momentos bons, bem esparsos e todos envolvendo espelhos e cabos por sinal, os momentos de susto e de tensão são como uma piada sem graça: tem uma construção, mas não o punchline. Além disso, o filme usa referências e momentos dos capítulos anteriores como uma muleta: um punhado de truques baratos e soltos. Afinal, o longa não sabe se quer contar o caso ou ser uma homenagem que toma orgulho de se auto referenciar para agradar os fãs. São dois eixos que nunca acertam ao alvo, mas os quais a obra insiste em não querer largar a mão. 

O resultado final é um delírio maniqueísta que não consegue manter uma sobriedade, funcionando como um combustível reacionário de um conservadorismo religioso para questões atuais. É um filme que abraça e reforça a sua mediocridade narrativa e temática sem ter a vergonha de ser como tal; embalado como uma despedida a Wilson e Farmiga, como se fossem parte da sua família. A sensação que fica na boca é de um espectador que é obrigado a assistir ao final de novela religiosa da Record, enquanto mastiga cacos de vidro ao longo de sua enfadonha e incompreensível duração. A memória de que os filmes de Invocação foram minimamente bons, é coisa do passado. De certo, e sem chances de voltar atrás, essa franquia já virou um delírio coletivo.

                                                                  Autor:
                                  

Eduardo Cardoso é natural do Rio de Janeiro, Cidade Maravilhosa. Cardoso é graduado em Letras pela Universidade Federal Fluminense e mestre em Estudos de Linguagem na mesma instituição, ao investigar a relação entre a tragédia clássica com a filmografia de Yorgos Lanthimos. Também é escritor, tradutor e realizador queer. Durante a pandemia, trabalhou no projeto pessoal de tradução poética intitulado "Traduzindo Poesia Vozes Queer", com divulgação nas minhas redes sociais. E dirigiu, em 2025, seu primeiro curta-metragem, intitulado "atopos". Além disso, é viciado no letterboxd.

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