![]() |
Orfeu (2025) | True Colors |
Um pianista toca no salão do clube Polypus.
Seu nome é Orfeu (Luca Vergoni) e, com o toque de seus dedos, conquista a atenção de Eura (Giulia Maenza), uma jovem dançarina que está junto à plateia. Antes que ela desapareça pelas ruas de Milão, o artista se aproxima dela e declara sua paixão. Mas o que não sabia, o quanto esse romance já estava malfadado pela vontade das parcas.
Um dia, Eura morre. Orfeu, à princípio, não sabe desse fato, mas ao ver o fantasma de sua musa amada, o artista deseja seguí-la ao mundo dos mortos e trazê-la de volta à vida.
Orfeu (2025) - Orfeo, no original - é o primeiro longa-metragem do realizador milanês Virgilio Villoresi, adaptação do quadrinho Poema a Fumetti (Poema em Quadrinhos, em português) do autor Dino Buzzati, que, por sua vez, reconta o mito de Orfeu e Eurídice na década de 1960.
Além disso, o filme é um experimento híbrido entre live-action e animação. Levando em conta que trata-se de uma produção independente, é um feito bastante trabalhoso e cujo resultado é interessantíssimo aos olhos. A forma que Villoresi mistura o real e o fantasioso, cria uma plasticidade em cena que é linda aos olhos do espectador. É uma direção esteta e rigorosa, movida pelo sensorial e tudo aquilo que foge de uma concretude, um pouco próximo do efeito que os filmes de Cattet & Forzani causam, por exemplo.
De acordo com a mitologia greco-romana, Orfeu era um poeta que tinha o dom de encantar o mundo com suas doces palavras e sua lira. Ele se apaixona por Eurídice. Eles se casam, mas por pouco tempo. Há versões que Eurídice morre ao ser picada por uma cobra, enquanto tentava se desvencilhar de Aristeu, um apicultor que a perseguia sexualmente; enquanto em outras, a morte foi causada por ninfas que a atacaram na floresta.
Protegido pelos deuses que se solidarizaram pela perda dele, Orfeu desce ao mundo dos mortos. Depois de encantar Cérbero, o cão guardião de três cabeças, Caronte e todas as almas no submundo, Orfeu consegue convencer Hades e Perséfone a retornar Eurídice para o mundo dos vivos; porém havia uma condição: Orfeu não poderia olhar para trás.
Por todo o percurso, Orfeu foi fiel à condição de Hades e não olhou na direção de Eurídice, conduzindo-a em direção à saída do submundo. Ao pensar que eles saíram, Orfeu finalmente olha para trás, só para ver Eurídice desaparecer de volta para o submundo. Amargo, Orfeu teve seus dias contados por causar a fúria das bacantes, adoradoras de Dionísio, que o esquartejaram e deixaram sua cabeça cantarolando boiando em um rio.
Se o quadrinho de Buzzati tem uma inspiração fellinesca do mito, o longa de Villoresi flerta com um toque cocteauniano. O astro do rock torna-se um pianista, sem nenhuma menção às bacantes que o idolatram, mas ainda carrega o surrealismo de sua obra de partida. Tudo parece ser grandiosamente artesanal, ao mesmo tempo que todo o trabalho estético aqui tenta elevar o material. E, de fato, é um filme elegante.
No entanto, a tentativa de Villoresi de dar sentido lógico para o sonho fervoroso de Buzzati não é tão frutífera assim. O realizador se apropria do imagético da obra base e reformula que, por trás de todo o pensamento onírico, há uma certa predestinação em toda jornada de Orfeu. Enquanto o quadrinho é bem direto na fonte grega e apresenta um “twist” com o desenlace do mito, o longa-metragem reconfigura esse Orfeu numa jornada de autodescoberta em que precisa aprender algo a partir disso.
Talvez o mais trágico nessa abordagem, é a falha em estabelecer a relação entre o artista e Eurídice, apresentado de forma superficial, e, sendo o relacionamento deles o ponto central da narrativa, acaba enfraquecendo a jornada do herói mítico. Eurídice aqui acaba se tornando uma parte estendida de Orfeu do que uma personagem desenvolvida e independente. De certa forma, é como se o público passasse a ver Orfeu buscando a olhar para o próprio reflexo, amorfo, que transforma a cada passo da jornada.
Apesar de uma interpretação reducionista da mitologia, quase beirando à autoajuda, que não agrada a sensibilidade artística deste crítico que vos escreve, Orfeu (2025) brilha como uma adaptação audaciosa, um sonho febril sobre lembranças que nos atormenta, frenético, brincando com a forma do próprio fazer cinematográfico. Villoresi é um diretor ambicioso, só falta um pouco mais de maturidade.
*Esta crítica faz parte da cobertura do 27o Festival do Rio, realizado em 2025.