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Paterno | Filmes do Estação |
Recife, dia ensolarado. Um homem estaciona perto da praia. Muda de roupa,
tem uma aparência agora mais simples. Encontra um comparsa no meio da rua, e
juntos eles vão a um lugar. Uma casa grande com vários andares, jardim
espaçoso. Este homem que visita o imóvel parece convencer o casal, que mora e
conta a história do local, que gostaria de comparar a casa para poder morar
nela. Um rapaz ouve a conversa atrás da porta. Ele se apresenta como neto deste
casal e entra na conversa. Enxerga através do homem e indaga sobre seus reais
motivos com imovél, antes de revelar que, na verdade, está a serviço de uma
grande empreiteira que deseja construir um arranha-céu no local…
O filme Paterno de Marcelo
Lordello teve uma trajetória trágica, porém normalizada no mercado audiovisual
braisleiro: a obra foi filmada em 2017, em contexto de desmonte de recursos
federais para cultura, pré pandemia e pré (des)governo Bolsonaro; só conseguiu
ser finalizado em 2021; entra no
circuito de festivais em 2022; porém, somente chega aos cinemas em agosto de
2025, no dia 7, quinta-feira, para ser mais exato. Ou seja, o projeto demorou
oito anos para ser apropriadamente lançado ao público.
É como uma cápsula do tempo. Um longa que foi realizado em determinado
contexto e tem sua recepção de lançamento em outro diverso. Por sorte, a obra
tem um olhar maduro e envelheceu bem nessa passagem bastante extensa de tempo
do que outros filmes brasileiros produzidos e lançados após 2017(como o
acidental mockumentary “Transa” lançado em 2022-24 sobre a época do desgoverno,
por exemplo), uma vez que o realizador compreende o zeitgeist da época.
Na trama, Sérgio (Marco Ricca) é um arquiteto que deseja conquistar a
direção da empreiteira da família para realizar um sonho há muito esquecido,
contra as vontades do irmão que comanda a empresa. Seu pai, Heitor, está
internado, quase à beira da morte, e tem problemas de se conectar com seu filho
Tomás (Guga Patriota). Enquanto ele
tenta viabilizar um novo projeto com ajuda de Cláudio (Thomás Aquino), um jovem
ambicioso, ele acaba descobrindo um segredo da vida do seu pai que ameaça seus
planos, revelando quem ele realmente se tornou.
Durante o debate após a premiére do filme no Rio de Janeiro, realizada no
Estação Net Rio, o diretor afirmou que o filme foi pensado como uma espécie de
tragédia. Com certeza, paternidade é o tema central do filme, porém a crise e
especulação imobiliária de Recife e os lobistas imobiliários influenciando na
política, cujo é o pano de fundo da narrativa, é mais interessante. É quase um Aquarius (2016) às avessas, um outro
lado da moeda deste: ao invés de focar nas pessoas que lutam contra o sistema,
estamos do lado dele.
Sérgio é uma personagem megalomaníaca e canibalista, tem sonhos de
grandeza, mal resolvido consigo mesmo, extremamente obsessivo, e usa do sistema
político-econômico para chegar nos seus objetivos. Um homem perverso com
abordagem mansa. Se o filme tivesse uma abordagem camp, com certeza Sérgio
seria um vilão de desenho animado, como mostra a cena em que a personagem
retira vários livros de sua mesa para revelar o mapa da cidade embaixo dos
calhamaços. No entanto, as perspectivas desses papeis são complexos, bem
estabelecidos, não dicotômicos, e mostra como personagens como a de Marco Ricca
ou de Thomás Aquino são passíveis de serem corruptíveis em diferentes âmbitos:
a traição da própria essência e a de fins econômicos, respectivamente.
É um filme sociopolítico, que poderia ser um thriller (seja político ou
psicológico) interessante, mas é introspectivo. O público acompanha mais as
questões íntimas de Sérgio do que suas artimanhas. A personagem principal é
solipsista, não vê ao que está ao seu redor, voltando para dentro de si, sempre
olhando para seus objetivos, o que delimita o limite do alcance da narrativa.
Não há quase nenhuma cena em que Sérgio não esteja presente, os olhos dele são
os do espectador. O que alimenta a incomunicabilidade entre a personagem e seu
filho durante o filme.
Enquanto Tomás sabe quem é seu pai de verdade, o mesmo não sabe quem é o
seu filho, até que seja tarde demais para uma conexão genuína entre ambos. Há
uma tensão geracional entre Sérgio (pai), Tomás (filho) e Heitor (avô), que
funciona quase como uma prisão familiar dentro da sociedade, aparências de
poder para ser mantidas e não desmanteladas. A obra cinematográfica usa desse
tema como um ponto de ruptura para a reflexão das relações entre pais e filhos,
mas nunca consegue desenvolver de modo satisfatório. E, como o filme foi feito
no contexto pós-impeachment, o
realizador não deixa de pincelar o conflito dos discursos entre direita e
esquerda que se afloraram de forma exponencial na década passada. O
longa-metragem de Lordello trabalha muito com simbolismos do cotidiano como
representação de seus temas, mas nem sempre o recorte compensa a longo
prazo.
A aposta da obra em realizar a função de “advogado do diabo” traz também,
suas consequências: há personagens com dilemas mais interessantes a serem
desenvolvidos do que Sérgio: um exemplo disso é a personagem Suzana,
interpretada por Rejane Faria, que teve um relacionamento com Heitor, e
representa uma outra camada social no filme, da classe média emergente, um
contraponto a personagem principal do filme, que se comporta quase como um
aristocrata (nas palavras do diretor).
A presença, e talvez ameaça simbólica, dessa personagem faz com que
Sérgio saia de seus eixos e seja confrontado por um outro lado, o da ausência.
Não é à toa que as poucas cenas, uma de perseguição e de visita, são as mais
emblemáticas da obra para este crítico; pois a protagonista é confrontada com
questões morais e pessoais que trazem à tona sua complexidade.
O elemento trágico que Lordello conceitualista em seu filme é de caráter
subjetivo do que factual. A quebra das expectativas, das ilusões, do ponto de
vista de Sérgio. A tragédia é a crise de identidade, de âmbito emocional e
psicológico. Porém, o longa nunca se coloca totalmente na posição de sua
protagonista. Sempre vemos Sérgio, como espectador, a uma certa distância,
quase sanitária. Todos os conflitos são internalizados e, a maioria, são
convenientes resolvidos sem nenhuma grande consequência de suas ações. A obra
quer promover uma catarse que nunca chega de fato. E se chega, é por uma
parcela bastante limitada da audiência.
Paterno é bem produzido, tem
uma fotografia soturna de cores frias, um excelente trabalho de sonoplastia,
boas atuações, principalmente de Ricca, Aquino e Faria. Mas como um filme sobre
obsessão, mistura vários temas, mas alguns são mais bem desenvolvidos do que
outros, algo se perde na tradução do roteiro ao corte final.
A escolha de fazer um filme intimista, mas com um olhar distante de sua
protagonista, é um problema recorrente no cinema brasileiro, pois afasta a
catarse de uma obra de seu público. É um olhar apático de uma personagem que
não necessariamente aprende com seus erros. As sutilezas do longa são
neutralizadas pela própria asperidade, ao convidar o público para participar de
sua proposta. Uma provocação que volta para o mesmo ponto. Talvez esse seja o
preço de fazer uma tragédia moderna de lugar comum. Mas como retrato social de
uma época específica, tem o seu valor histórico que ainda se sustenta.
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