sábado, 11 de outubro de 2025

O Agente Secreto (2025) - Memória, Medo e Resistência Sob o Véu da Ditadura

O Agente Secreto | Vitrine Filmes

Em 1977, um especialista em tecnologia foge de um passado misterioso e retorna à sua cidade natal, Recife, em busca de paz. Ele logo percebe que a cidade está longe de ser o refúgio que busca.

Com a vida constantemente ameaçada, cercado pela sombra da repressão e pela vigilância opressiva do regime, Marcelo luta para preservar não apenas a própria sobrevivência, mas também a dignidade. Em meio ao caos, seu maior desejo é garantir segurança ao filho pequeno, que vive sob os cuidados dos avós maternos — o avô, um projecionista silenciosamente resistente, mantem viva a arte e a memória coletiva no emblemático Cinema São Luiz. Em busca de respostas sobre a história fragmentada de sua família, especialmente a verdade sobre a situação civil de sua mãe falecida, Marcelo assume uma identidade falsa e passa a trabalhar num cartório — um espaço onde vidas são registradas, mas onde muitas também são apagadas pelo silêncio institucional. 

Em sua jornada, ele encontra um respiro em um "aparelho" — um lar clandestino compartilhado com outros corpos e vozes excluídos pelo sistema: um casal angolano exilado, o velho e sábio Euclides, e Dona Sebastiana, mulher de força tranquila que se torna um porto afetivo e político. Esse convívio, entre traumas e solidariedades, revela que, mesmo na adversidade extrema, persiste o desejo coletivo por justiça, pertencimento e liberdade. Marcelo sonha em deixar o país, mas não foge — resiste. E, ao fazê-lo, sua trajetória revela as fissuras de uma nação marcada pelo autoritarismo, onde o amor, a memória e a esperança ainda insistem em brotar, mesmo sob a terra dura da repressão.

Dona Sebastiana é, sem dúvida, a personagem mais marcante do filme. Com sua língua afiada e um humor afetuosamente irreverente, ela cumpre o papel de alívio cômico — mas vai muito além disso. Representa um tipo humano tão genuíno e familiar que é quase impossível não se lembrar de alguém parecido que já cruzou nosso caminho. Sua presença em cena é magnética, equilibrando leveza e profundidade, e merecia, sem exagero, um Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante. Dona Sebastiana é dessas figuras que ficam com a gente muito depois do fim da sessão.

O longa resgata a figura da perna cabeluda, lenda urbana profundamente enraizada no imaginário popular do Recife. Famosa lenda urbanda recifense dos anos 1970, como metáfora da repressão durante a ditadura militar. A cena que fala da lenda urbana faz uma homenagem aos filmes trash e slasher dos anos 80, trazendo um elemento de horror popular que conecta o folclore local a uma estética cult e de terror, reforçando o clima de medo e violência. Com sons tensos, minimalistas e uma batida hipnótica, a música cria uma sensação constante de suspense e ameaça iminente, reforçando a presença aterrorizante da criatura. Essa escolha sonora não só remete ao universo trash e de horror da época, mas também potencializa a metáfora da repressão e do medo que permeiam o filme, transformando a perna em um símbolo de terror coletivo.

O Agente Secreto combina memória histórica, folclore e suspense para retratar a repressão da ditadura militar de forma sensível e impactante. Com personagens fortes, o filme mostra como o medo e a resistência coexistem, deixando marcas profundas, mas também uma esperança persistente por liberdade.

Autor:


Meu nome é João Pedro, sou estudante de Cinema e Audiovisual, ator e crítico cinematográfico. Apaixonado pela sétima arte e pela cultura nerd, dedico meu tempo a explorar e analisar as nuances do cinema e do entretenimento.

Tron: Ares - Um Retorno Sem Impacto

Tron : Ares | Disney


Tron: Ares acompanha o programa Ares, uma espécie de computador altamente qualificado e melhor desenvolvido do que os demais presentes na Terra. Em uma importante missão, Ares é retirado do mundo digital para conseguir resolver os problemas do mundo real, no entanto, os perigos apresentados pelo novo trabalho serão capazes de fazê-lo desacreditar de seus próprios códigos.

Este é o terceiro filme de uma franquia que, apesar de ter sido inovadora quando o primeiro longa foi lançado — graças ao uso pioneiro de efeitos especiais com gráficos gerados por computador (CGI) para criar ambientes e personagens digitais — acabou sendo esquecida com o tempo e não se tornou verdadeiramente memorável. Embora os efeitos tenham sido uma novidade na época, já pareciam datados.

Tron: O Legado (2010) apresentou visuais muito mais impressionantes: as Light Cycles e outras cenas de ação foram aprimoradas com gráficos dinâmicos e realistas. Esse, aliás, eu assisti no cinema e criei certo carinho por ele. Quando criança, cheguei a desejar uma continuação, mas os anos passaram, e acabei deixando a franquia de lado... até que Tron: Ares foi anunciado. Não me empolguei muito para assistir, mas resolvi conferir — e, de certa forma, bateu aquela nostalgia da infância.

Claro que isso não significa que eu tenha gostado tanto do novo filme quanto do anterior. Nesta nova produção, a inteligência artificial não é exatamente explorada como um tema central voltado à reflexão mais profunda ou filosófica. Em vez disso, ela funciona mais como um pano de fundo conveniente — um recurso narrativo que serve apenas para conduzir uma jornada visualmente estilizada, mas que, no fim das contas, gira em torno do vazio existencial do protagonista.

Ares, protagonista do longa, é apresentado como uma entidade artificial que, aos poucos, começa a demonstrar traços de compaixão e humanidade. No entanto, sua construção emocional permanece supercial, e o filme não consegue estabelecer uma conexão verdadeira entre ele e o público. Apesar da proposta de uma jornada de autodescoberta, Ares carece de carisma e profundidade suficientes para despertar empatia genuína no espectador.

Por outro lado, Eve Kim, a personagem humana da história, demonstra muito mais presença e carisma. Ela é retratada como uma jovem nerd que trabalha na Encom e se dedica a decifrar o código deixado por Flynn. É nesse contexto que acaba cruzando o caminho de Ares. Eve traz humanidade e dinamismo à narrativa, funcionando como um contraponto necessário à frieza programada do protagonista. Sua participação confere leveza e maior apelo emocional à trama.

O filme até tenta desenvolver um romance entre os dois personagens. Embora a proposta possa parecer clichê, não haveria problema se tivesse sido bem executada. No entanto, a forma como essa relação foi construída ficou bastante superficial — a interação se resumiu a longos olhares e tentativas de paquera que, soaram até constrangedoras.

Um ponto que achei interessante foi a participação de Julian Dillinger, presidente da Dillinger System, empresa concorrente da Encom — uma multinacional estadunidense de tecnologia responsável pelo desenvolvimento de diversos programas e inovações fundamentais, incluindo o hardware e software que digitalizam dentro do universo do filme. Na cena em que Dillinger ordena o lançamento de Ares em um ataque cibernético ao mainframe da Encom, o personagem invade esse ambiente virtual como se estivesse invadindo um território inimigo, enfrentando guardiões digitais da empresa. Essa representação da batalha no mundo virtual me pareceu criativa e eficaz, adicionando tensão e dinamismo à narrativa.

A trilha sonora do filme é impressionante, incorporando elementos típicos do estilo cyberpunk, como sons eletrônicos, sintetizadores envolventes e batidas pulsantes. Essa combinação contribui para criar uma atmosfera futurista e imersiva, que reforça o clima tecnológico, ajudando a transportar o espectador para dentro do universo digital retratado na tela.

Tron: Ares é como um prato servido com uma apresentação impecável, cores vibrantes e aroma instigante — mas que, ao ser provado, revela um sabor raso e sem tempero. Visualmente, ele impressiona e até desperta aquela nostalgia de um prato que você adorava na infância, mas que hoje, ao experimentar novamente, percebe que faltam ingredientes essenciais. O protagonista é mal temperado e a inteligência artificial — que poderia ser o ingrediente principal — acaba sendo usado apenas como enfeite no prato. No fim, o filme até pode matar a fome de curiosidade dos fãs, mas dificilmente deixará um gosto marcante ou vontade de repetir.

Autor:


Meu nome é João Pedro, sou estudante de Cinema e Audiovisual, ator e crítico cinematográfico. Apaixonado pela sétima arte e pela cultura nerd, dedico meu tempo a explorar e analisar as nuances do cinema e do entretenimento.

A Useful Ghost (2025) é uma fábula excêntrica e desafiadora

A Useful Ghost (2025) | Pandora Filmes

No centro de uma cidade tailandesa, supomos que seja Bangkok, vários monumentos históricos são retirados para a construção um novo empreendimento que, supostamente, levaria o desenvolvimento econômico daquela região. Não obstante, a cidade é coberta por uma constante poeira. Perto dali, uma pesquisadora Ladyboy (Wisarut Homhuan), identidade de gênero que engloba pessoas trans, não binares e andrógenas, decide comprar um aspirador de pó em uma loja, mas descobre que durante a noite o aparelho tosse e espalha mais poeira. No dia seguinte, chega Krong (Wanlop Rungkumjad) para reparar o utensilio e ele revela à pesquisadora sobre um caso parecido...

Após a trágica morte de Nat (Davika Hoorne) por causa da poluição, seu marido, March (Witsarut Himmarat), é consumido pela dor. Mas a vida dele vira de cabeça para baixo ao descobrir que o espírito da mulher reencarnou num aspirador. O laço entre eles se reacende, mais forte do que nunca. Mas isso não agrada a todos, em particular à família de March, dona de uma fábrica, que rejeita a relação sobrenatural. Para provar sua lealdade, Nat se oferece para limpar a fábrica e provar que é um fantasma útil, mesmo que isso signifique livrar-se de algumas almas perdidas, em prol de terceiros.

A Useful Ghost (e sim, aparentemente o título deverá ficar assim no Brasil até segunda ordem) é o longa-metragem de estreia do diretor Ratchapoom Boonbunchachoke, que ganhou o prêmio principal da Quinzena dos Realizadores no Festival de Cannes desse ano. Á princípio, o filme é uma comédia excêntrica de costumes tailandês a um ponto que beira ao absurdismo. Porém, apesar da sinopse curiosa, a obra esconde camadas muito fascinantes, reveladas aos poucos.

Como o objeto em que o fantasma de Nat possuí causa um estranhamento, a relação entre ela e March desafia as convenções tradicionais da sociedade. A mãe de March, Suman (Apasiri Nitibhon), age contra a união de pós vida e ainda é pressionada por outros familiares para separá-los. Ela não mede esforços: proíbe Nat de sua casa, tenta exorcizá-la com ajuda de um monge e até mesmo faz ela ser presa pela polícia por não ter o consentimento de habitar uma propriedade de sua empresa. Quando tudo isso não funciona, Suman submete March a uma terapia de eletrochoque com a finalidade dele esquecê-la. (Inclusive, o cenário em que as sessões de "eletro" acontecem tem uma beleza geometricamente brutal e sem vida.)

 Apesar de Nat e March serem um casal hétero cisgênero, o relacionamento deles é codificado na narrativa como queer. Ela é vista para a maioria das pessoas, menos por seu marido, como um aspirador de pó e sofre preconceitos da família, instituições religiosas e do próprio estado, este último quando é impedida de visitar o esposo no hospital à noite; e ela é constantemente humilhada e tratada como uma degenerada. Enquanto isso, March é torturado com eletrochoque numa espécie de "terapia de conversão", o que foi (e em alguns lugares isso ainda ocorre infelizmente) uma forma de violência física e psicológica contra pessoas LGBTQIAPN+ e enquadrá-las dentro do padrão da vivência heteronormativa.

 A partir dessa violência psicológica, Nat faz um acordo com Suman para ajudá-la com uma situação na fábrica, envolvendo um fantasma de uma gay vingativa, um ex-funcionário que faleceu durante o expediente e agora assombra o local, pondo a empresa em um grande prejuízo fiscal. Após ser bem-sucedida nesta questão, outros olhos se voltam para as habilidades práticas de Nat para fins mais nefastos. 

 Boonbunchachoke constrói uma fábula que se desenvolve em algo a mais; por trás da ironia e comédia de valores, há uma inquietação do realizador sobre as relações de classe e poder na sociedade tailandesa. Apesar de ser visto no ocidente como um paraíso asiático, o país tem uma história violenta, na qual o governo tenta apagar da memória coletiva. Não é o primeiro filme que fala sobre isso, afinal Apichatpong Weerasethakul já abordou o tema de forma onírica em seu Cemitério do Esplendor (2015). Aqui, a relação entre política e memória é mais escrachada e direta. Pessoas são torturadas para esquecer os fantasmas do passado para a conveniência de uma política neoliberal, retirando da população um direito fundamental: a memória.

 É neste ponto em que as duas linhas narrativas do filme - Ladyboy e Krong, Nat e March - se convergem. Se a parábola compartilhada pelo primeiro casal fala sobre os perigos e da violência do poder a uma população, o segundo precisa exercer a memória afetiva de um tem pelo outro para continuarem juntos. Sem isso, a história que uma pessoa carrega dentro de si é perdida para sempre.

 A Useful Ghost se baseia de sua sensibilidade queer e camp para demonstrar um problema maior e persistente dentro de uma sociedade que se recusa a olhar para trás, confrontar seus legados e traumas. Uma obra que convida a rir do ridículo e depois dá um tapa na cara da hipocrisia e da moral. Boonbunchachoke conduz seu público por caminhos diversos e inesperados. É uma fábula excêntrica e desafiadora para seu contexto. Uma grata surpresa. Um dos melhores filmes do ano até agora.

 *Esta crítica faz parte da cobertura do 27o Festival do Rio, realizado em 2025.

Autor:
                                  

Eduardo Cardoso é natural do Rio de Janeiro, Cidade Maravilhosa. Cardoso é graduado em Letras pela Universidade Federal Fluminense e mestre em Estudos de Linguagem na mesma instituição, ao investigar a relação entre a tragédia clássica com a filmografia de Yorgos Lanthimos. Também é escritor, tradutor e realizador queer. Durante a pandemia, trabalhou no projeto pessoal de tradução poética intitulado "Traduzindo Poesia Vozes Queer", com divulgação nas minhas redes sociais. E dirigiu, em 2025, seu primeiro curta-metragem, intitulado "atopos". Além disso, é viciado no letterboxd. 

A Cronologia da Água (2025) Não Tem Início, Nem Fim

 

A Cronologia da Água (2025) | Filmes do Estação

Planos intercortados. Edição experimental. Cores e sons denotam sensações. Memória fragmentada pulsa na tela causando tensão. Caleidoscópio de imagens.  Uma mulher está numa banheira em um momento, noutro, é uma criança. Sangue na água. O que vemos em tela não é só uma narrativa, é poesia, é fluxo de consciência. Assim que começa o filme A Cronologia da Água (2025), que marca a estreia de Kristen Stewart na direção de longas-metragens. A trama é baseada no livro de memórias da escritora Lidia Yuknavitch. O longa estreou no Festival de Cannes deste ano, mostra paralela Un Certain Regard, e deve chegar aos cinemas brasileiros em janeiro de 2026 pelo Filmes do Estação.

Lidia aqui é interpretada pela atriz Imogen Poots que guia a narrativa como estivesse boiando em mar aberto. Stewart filma Poots como uma ninfa d'água: livre, espontânea, cheia de vitalidade; mas também como uma sobrevivente enquanto as ondas de violência e vícios a fazem afundar dentro do próprio elemento. A diretora se dedica a explorar as diferentes facetas da protagonista ao longo da narrativa, não como uma coitada, mas como alguém que precisa gritar e se rebelar enquanto puxam seus pés para baixo. 

Lidia é a âncora das memórias recitadas aqui, os "versos livres" cortados ao meio, criando significados e associações que prenunciam aquilo que não é dito diretamente. Ou melhor, são  peças, sentenças soltas que são costuras de um modo que seu significado não se perca. Tudo isso em constante movimento. A maneira em que ela reconta sua história, erráticos, com pontos e fatos se sobrepondo, o trauma deixa vácuos na memória que são preenchidos com outras informações. Lidar com isso, é escavar a memória, reconstituir o pó de uma história, ressuscitar fantasmas.

A trama do longa acompanha a trajetória de Lidia Yuknavitch (Poots), primeiro como uma aspirante a nadadora olímpica durante a adolescência e na faculdade, e depois como uma escritora e professora de escrita criativa. A estrutura é dividida em cinco capítulos, mas confesso que, na prática, funciona como um arco narrativo em duas partes: O primeiro cobre o auge e a queda de sua carreira como nadadora profissional, os abusos do pai, a relação com a irmã (Thora Birch), seus vícios, um casamento e um parto malsucedido; o segundo o período em que ela conhece seu mentor artístico e acadêmico, Ken Kesey (Jim Belushi); o terceiro enfoca em seu segundo casamento com Devin (Tom Sturridge); o quarto em que Lidia tenta lidar com a ascensão de sua carreira como escritora e descobre o mundo do BDSM (com um pequena ajuda do papel de Kim Gordon, do Sonic Youth); e por fim, no último, vemos a personagem enfrentar seu passado para construir um futuro para si.

A personagem é marcada por um ciclo de violências psicológicas e sexuais de seu pai (Michael Epp) que a menospreza. Então, assim que Lidia consegue a primeira oportunidade de sair das garras de seu abusador, ela se vê aparentemente livre, porém sua mente e alma carregam traumas profundos, os quais tenta esquecer através do vício em drogas e álcool. E se não é isso, é a figura do pai que a assombra e que a faz repetir os mesmos padrões de antigamente. É uma correnteza forte, que a persegue por anos, bastante marcada por uma montagem e uma edição de som experimental igualmente instigantes. 

Além disso, Stewart brinca com cores e com a fluidez das coisas que cercam Lidia, seja a água da piscina, do mar, a bebida, o sangue menstrual ou até mesmo o líquido viscoso que sai após a masturbação. A atuação de Poots é magnética e conduz a evolução de sua personagem no decorrer de décadas de forma audaciosa e envolvente.   

Nem sempre as águas são límpidas e próprias ao banho. Após o segundo capítulo, o filme, ao abandonar um pouco a estética de fluxo de pensamento, começa a sofrer um pouco de problema do ritmo estabelecido previamente e algumas tramas não tem a mesma potência ou desenvolvimento que as duas primeiras partes tinham. Porém, nem por isso que o filme perca sua força ou impacto. 

A violência que Lidia sofre desde a infância a configura para um próprio ódio que ela internaliza e, de vez em quando, desconta em outras pessoas. Sua jornada é um processo de reconfiguração emocional, no qual ela, eventualmente, se encontra, aos trancos e barrancos; mesmo que encontrar sua voz seja tão difícil do que nadar contra a correnteza. Há um paralelo entre a personagem e a diretora do filme, que também tentar encontrar a sua voz no cinema, experimentando com estilos, sons e visuais da sua linguagem, da sua prosódia. E, de certo, Stewart demonstra ter um discurso cinematográfico confiante com este longa.

A Cronologia da Água é um projeto de estreia audacioso em sua execução e escala, que flerta com o cinema experimental, o melodrama, o suspense psicológico e o drama de formação, sem cair num panfletarismo barato. É um filme que homenageia a imensidão e a multitude que existe em cada pessoa. Nem sempre perfeito, mas ainda assim eletrizante e lírico. Como diria Heráclito: "ninguém se banha duas vezes no mesmo rio"... 

 

*Esta crítica faz parte da cobertura do 27o Festival do Rio, realizado em 2025; visto justamente numa noite chuvosa de quarta-feira no Cine Odeon, volume de chuva: 22 mm.

Autor:
                                  

Eduardo Cardoso é natural do Rio de Janeiro, Cidade Maravilhosa. Cardoso é graduado em Letras pela Universidade Federal Fluminense e mestre em Estudos de Linguagem na mesma instituição, ao investigar a relação entre a tragédia clássica com a filmografia de Yorgos Lanthimos. Também é escritor, tradutor e realizador queer. Durante a pandemia, trabalhou no projeto pessoal de tradução poética intitulado "Traduzindo Poesia Vozes Queer", com divulgação nas minhas redes sociais. E dirigiu, em 2025, seu primeiro curta-metragem, intitulado "atopos". Além disso, é viciado no letterboxd. 

Ruas da Glória (2025) é um ponto de cruising decadente

 

Ruas da Glória (2025) | Retrato Filmes

Gabriel (Caio Macedo) é uma gay branca básica riquinha que, como qualquer outra pessoa que se enquadra nesta descrição, se muda para o Rio de Janeiro. Ele perdeu o único vínculo que tinha com sua família, após a morte de sua avó. E, obviamente, tem recursos financeiros para morar no bairro da Glória, ponte zona central e sul da cidade do Rio, bem coladinho da Lapa e da região da Cinelândia (onde a ação mais se concentra aqui). Afinal, o objetivo de uma migrante não é morar no subúrbio da zona norte ou na caótica zona oeste, por exemplo; mas sim o mais próximo do poder econômico e cultural da cidade, ou de pontos turísticos.

Perambulando pela vizinhança, descobre o Glória Bar, comandado por Mônica (Diva Menner) que toma afeição pelo jovem. Porém, Gabriel só quer saber mesmo é beijar um homem musculoso e misterioso na pista, o uruguaio Adriano (Alejandro Claveaux). Todes dizem que é uma furada. Afinal, ele é um michê não muito confiável, já com rastro de danos em outros. No entanto, sendo básica e burra, ele ignora o que os outros pensam e segue seu coração (e pau) para conquistar o afeto de Adriano, se jogando de cabeça em um romance tórrido e destrutivo.

Ruas da Glória (2025) é o novo filme de Felipe Sholl, realizador por trás do longa-metragem Fale Comigo lançado em 2016. O diretor disse durante o debate após a exibição da obra que se inspirou na sua experiência como "estrangeiro" à cidade do Rio de Janeiro, assim como sua protagonista. De fato, a direção brilha quando o filme quer parecer interessado na história da subcultura de cruising ou, até mesmo, na relação entre cidade e pessoa como é registrado em formatos de vídeos de celular que aparecem ao longo da narrativa.  O problema é que o foco da trama não é esse; e quando toca nesse ponto, é tão superficial que nem deixa uma marca.

O relacionamento, ou a falta deste, entre Gabriel e Adriano é o que interessa para a direção. As personagens principais, de um modo geral, são vazias de personalidade e dimensionalidades. Gabriel é ingênuo e, ao tomar ciência do mundo dos trabalhadores do sexo que lhe é lentamente empurrado por Adriano, ele enxerga muito mais como uma diversão do que uma questão de sobrevivência. Além disso, ele se afunda nas drogas junto do amante, aumentando sua dependência emocional. A dinâmica entre as duas personagens funciona mais como uma alegoria de lovebombing e ghosting na vida real, do que, de fato, uma relação amorosa entre dois homens. Em paralelo, o filme tenta trazer o conceito de família escolhida, que é bem trabalhada e tem seus momentos até certo ponto.

Porém, Sholl falha em dar uma dimensão significativa a sua protagonista que é monótona e insuportável por boa parte da obra. Ou seja, em palavras mais viadas, ele basicamente fez mais um filme de gay básica chata com energia de passiva patética que sofre e se faz de coitado. O que em pleno 2025, isso deveria ser crime contra o cinema queer. Sua decupagem é pífia e equivocada muitas das vezes. As cenas de sexo, e tem muitas, são filmadas de um jeito pretencioso e preguiçoso que, ao invés de demonstrar a euforia corpórea das personagens, chegam a ser entediantes de assistir. Chega ser asséptico e até mesmo comedido na sua abordagem, em boa parte. Os atores não estão ruins, mas ficam reféns de uma direção fraquíssima e sem nenhuma força emanente.  

Ruas da Glória é um filme vazio de significados e interpretações sobre o universo no qual deseja retratar, subdesenvolvido com ideias seguras que parece muito mais como um conto moral do que um retrato de uma comunidade. É um longa cuja decadência é o seu maior triunfo e tiro no pé. Se quiserem ver um filme que fala sobre a relação entre pessoa e cidade, a rotina de michês e o senso de comunidade, por favor, assistam Baby (2024); isso sim é um filme queer de qualidade.

*Esta crítica faz parte da cobertura do 27o Festival do Rio, realizado em 2025.

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Eduardo Cardoso é natural do Rio de Janeiro, Cidade Maravilhosa. Cardoso é graduado em Letras pela Universidade Federal Fluminense e mestre em Estudos de Linguagem na mesma instituição, ao investigar a relação entre a tragédia clássica com a filmografia de Yorgos Lanthimos. Também é escritor, tradutor e realizador queer. Durante a pandemia, trabalhou no projeto pessoal de tradução poética intitulado "Traduzindo Poesia Vozes Queer", com divulgação nas minhas redes sociais. E dirigiu, em 2025, seu primeiro curta-metragem, intitulado "atopos". Além disso, é viciado no letterboxd. 

Ato Noturno (2025) tem um instinto selvagem em cena

 

Ato Noturno (2025) | Vitrine Filmes

O mundo é um palco, e todos os atores são seres políticos. Matias (Gabriel Faryas) é um jovem ator que acaba de entrar em uma prestigiada trupe de teatro porto alegrense. Ele divide um apartamento com seu parceiro de cena, Fábio (Henrique Barreira). Em um dos ensaios da nova produção, uma produtora de elenco (Kaya Rodrigues) aparece para recrutar atores para uma nova série de grande porte. Ela fica interessada em Fábio para o papel principal, porém Matias, ambicioso e determinado, decide ir atrás da mesma oportunidade. 

Na mesma noite, Matias se encontra com uma gay discreta e fora do meio por meio de aplicativos de pegação. O boy em questão era a Eduardo Leit.. Desculpas, me engasguei aqui. Digo, o boy em questão é um vereador, Rafael (Cirillo Luna), que está em vias de começar sua campanha à prefeitura da cidade. Um homem de imagem pública. Eles chegam a um antigo casarão, que será o escritório de campanha antes de ser demolido, e lá começa um jogo de sedução entre os dois. À princípio, algo casual. Mas a sinergia que existe entre os dois corpos é demasiada que o instinto fala mais alto e Rafael deixa de propósito a janela aberta, com o risco de serem flagrados.

É assim que a ação de Ato Noturno (2025), o novo filme de Marcio Reolon e Filipe Matzembacher, começa. O terceiro longa-metragem da dupla de realizadores estreou no Festival de Berlim neste ano e finalmente desembarca nos festivais brasileiros, após um ótimo percurso internacional. E para fazer um delicioso edging nos espectadores curiosos, o filme chega nos cinemas em 15 de janeiro, como parte da seleção Sessão Vitrine Petrobras. 

Voltando a discussão da obra... Esta é a segunda narrativa que os diretores exploram sua cidade natal, Porto Alegre, o anterior foi Tinta Bruta (2018). A cidade ainda parece fria na superfície, mas, desta vez, existe um calor particular à ela. Os lugares secretos e o cruising aparecem pontualmente, mas fazem parte de um cenário pertencente a uma tradição histórica queer da cidade no qual ambas as personagens navegam em buscam de libertação. Matias, para conseguir o papel na série, além de passar a perna em Fábio, também precisa simbolicamente ser aprisionado no armário da indústria audiovisual, enquanto Rafael tem um tesão insaciável do qual sua posição pública, e um tanto conservadora, não permite saciar sua sede, de fato.

Por mais que os diretores queiram fazer um comentário metatextual entre a performance nos palcos e na vida pública (algo que o texto de Rafael repete alguns momentos da obra) estou inclinado a um debate paralelo, mas complementar, sobre as armadilhas da performance de gênero. Enquanto Rafael se demonstra como um "homem de bem" visualmente, com um corte curto, bem penteado, roupas sociais, recheado de conotações visuais tradicionalmente masculinas, Matias tem uma identidade mais fluída compatível com sua joie de vivre, o que será um empecilho para a produtora de elenco. Ambas as personagens são submetidas a uma silenciamento físico de seus corpos para que suas imagens sejam mais comerciais a interesses alheios, e, em contrapartida, acabam ficando dessexualizadas no processo. E seus desejos aprisionados.

E como a narrativa pertence a seara do thriller erótico, bem no estilo Supercine, toma emprestado códigos e formulações que envolvem crimes, chantagens e invejas psicossexuais que se escalonam gradativamente a um ponto sem retorno. No caminho do casal, há o segurança Camilo (Ivo Müller) que é devoto da figura de Rafael. A rusga que existe entre ele e Matias perpassa por questões de classe e raça. Camilo é bruto e hostil com a protagonista, enquanto faz de tudo para que a imagem do político não seja manchada. Há uma linha tênue na antagonista entre a homofobia e homoerotismo, subtende-se que ele seja uma enrustida no fim das contas, que a aproxima da energia uma loira psicótica, presente nos clássicos do gênero, como Glenn Close em Atração Fatal, por exemplo.

Reolon & Matzembacher tem uma direção clara e bastante direta ao ponto, eles conduzem a narrativa com cuidado, de modo que as narrativas paralelas não se sobreponham uma em cima da outra e, no final, o afunilamento dessas tramas seja o mais orgânico possível. A direção de fotografia Luciana Basseggio é deslumbrante: as cores vibrantes pulsam da tela de forma tão saborosa os olhos, seja na iluminação, seja na textura de suas imagens, que dão um charme aos elementos decupados, com direitos a movimentos de câmera e de foco são pertinentes ao clima neo noir do longa. O elenco está afiado e embarca dos pés à cabeça com a proposta do projeto. Faryas e Müller, em especial, são os performers se destacam mais em suas respectivas presenças de tela.

Porém, seria indispensável falar sobre a trilha sonora composta pelo músico e muso indie Thiago Pethit & cia: a música dita o tom do filme, preenchendo os silêncios incômodos, marcando a sedução, a tensão, o medo com uma sensualidade acústica que eleva o filme, deixando o público vulnerável as próprias sensações assim que os acordes das cordas começam a tocar. Um arrepio na nuca, seguido de um beijo. Pethit provoca o público com preliminares acústicas antes de se entregar a luxúria da carne. Um maestro da intimidade, ele canta esses corpos elétricos que querem gritar com gozo e tesão, entalados na garganta. Um aedo interpretando o papel de voyeur.

Ato Noturno é grito pela liberdade individual ao tesão. Um thriller erótico sedutor que corteja o público a entrar numa jornada arriscada e cheia de energia para gastar. Um filme que fala de performance e identidade, sem forçar a alegoria para o espectador. Um espetáculo visual e sensorial. Talvez um pouco limpo demais ou um pouco contido na execução de suas ideias mais ousadas, mas ainda consegue enlaçar seu público para deflorá-lo aos poucos. O risco pela liberdade. O gozo público. E, enfim, as máscaras caem de cena.

E você, leitore? Já performou um ato noturno hoje?  

*Esta crítica faz parte da cobertura do 27o Festival do Rio, realizado em 2025.

Obs: Queria mandar um beijo para o moderador do debate após a sessão, Pedro Henrique França, por ter tirado o elefante da sala (também conhecido como tópico "Dudu Milk") logo no início da conversa com a produção do filme.  

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Eduardo Cardoso é natural do Rio de Janeiro, Cidade Maravilhosa. Cardoso é graduado em Letras pela Universidade Federal Fluminense e mestre em Estudos de Linguagem na mesma instituição, ao investigar a relação entre a tragédia clássica com a filmografia de Yorgos Lanthimos. Também é escritor, tradutor e realizador queer. Durante a pandemia, trabalhou no projeto pessoal de tradução poética intitulado "Traduzindo Poesia Vozes Queer", com divulgação nas minhas redes sociais. E dirigiu, em 2025, seu primeiro curta-metragem, intitulado "atopos". Além disso, é viciado no letterboxd.

A Voz de Hind Rajab (2025) revela a dor da ajuda humanitária

 

A Voz de Hind Rajab (2025) | Synapse Distribution

Inspirados em fatos reais, A Voz de Hind Rajab (2025), novo filme da diretora tunisiana Kaouther Ben Hania, é a reconstituição dramatizada do caso de uma garota palestina de seis anos de idade, Hind Rajab, que passou horas escondida dentro de um veículo junto dos cadáveres de seus tios e primos, à espera de um resgaste humanitário. No entanto, a criança foi covardemente assassinada pelo estado de Israel durante nesta tentativa extração.

O longa acompanha a equipe de coordenação e sua agonizante tentativa dos voluntários da Crescente Vermelho de resgatar Hind Rajab, enquanto o tempo de vida da menina está cada vez mais nas mãos deles. Omar (Motaz Malhees) acredita que eles precisam agir rápido e resgatar a criança o mais rápido possível e pressiona seu superior, Mahdi (Amer Hlehel), para articular a mobilização de extração; porém toda a operação antes ter início, existe toda uma organização de poderes para negociar um cessar fogo temporário que dificulta a situação. Enquanto isso, Omar e Rana (Saja Kilani), uma outra voluntária, continuam a manter contato com Hind, ou Hanood como é chamada, no celular. 

Ben Hania reconstrói aqui a sensação de seus personagens sentirem a panela de pressão que abate sobre os seus estados mentais. De um lado da balança, o tempo está contra eles, e do outro, a vida dessa menina está por um triz. Como a ação inteira do longa-metragem se passa dentro do escritório da Crescente Vermelha, é um filme sufocante de olhar e sentir. A tensão que existe entre as personagens é muito forte e volátil. Omar e Mahdi batem cabeças toda vez que o atendente vai cobrar uma posição do seu superior, que, por sua vez, está refém do sistema de comunicação que articula os resgastes realizados pelos voluntários; a demora e indecisão desses órgãos, acabam afetando o sucesso ou a falha da operação. É um filme sobre, ou a falta de, comunicação, seja ela verbal ou não verbal.

Além de ser uma dramatização, o filme toma partido de uma estética narrativa do cinema documental árabe, de um modo geral, em que a realidade e a ficção se misturam, dando a obra uma característica de semidocumentário. As gravações dos áudios das conversas que os agentes humanitários tiveram com Hind Rajab foram publicadas online para chamar a atenção da mídia ao caso e são os mesmos áudios que a diretora usa para dar vida à Hind na obra. Ou seja, não há ninguém interpreta a criança no filme, a própria Hind está presente na narrativa relatando seus últimos momentos de terror absoluto. Conhecemos seu cotidiano, sonhos e medos através desse recurso. O que torna o projeto fascinante no seu escopo e recorte. E há outros momentos em que Ben Hania coteja a ficção com o real, em que vemos o respeito que a produção e, principalmente, os atores tiveram com essa história trágica. 

Apesar dessa prática não ser algo estranho ou inovador dentro do escopo do cinema árabe, a importância de dar voz à vítima de um crime de guerra brutal é um ato de coragem e de denúncia a investida e ao processo colonizatório brutal israelense e suas consequências a todos ao redor. Um grito contra o genocídio e o apagamento da população de Gaza. A catarse pela indignação.

A Voz de Hind Rajab revela a dor da ajuda humanitária que tem sua integridade física e, principalmente, mental afetada pela sensação de perda e de impotência perante as constantes calamidades e crimes de guerra. A sensação é de alguém apertando o peito para retirar o ar dos pulmões da forma mais sádica possível. Apesar da palavra estar no momento esvaziada pelo uso indevido, na maioria dos casos na internet, a resistência cultural que a obra representa atinge no coração dos espectador que sente a empatia necessária para se horrorizar com a barbárie genocida. Um exemplo de algo muito preocupante e, pior, recorrente.


*Esta crítica faz parte da cobertura do 27o Festival do Rio, realizado em 2025.


Autor:
                                  

Eduardo Cardoso é natural do Rio de Janeiro, Cidade Maravilhosa. Cardoso é graduado em Letras pela Universidade Federal Fluminense e mestre em Estudos de Linguagem na mesma instituição, ao investigar a relação entre a tragédia clássica com a filmografia de Yorgos Lanthimos. Também é escritor, tradutor e realizador queer. Durante a pandemia, trabalhou no projeto pessoal de tradução poética intitulado "Traduzindo Poesia Vozes Queer", com divulgação nas minhas redes sociais. E dirigiu, em 2025, seu primeiro curta-metragem, intitulado "atopos". Além disso, é viciado no letterboxd. 

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