sábado, 11 de outubro de 2025

A Cronologia da Água (2025) Não Tem Início, Nem Fim

 

A Cronologia da Água (2025) | Filmes do Estação

Planos intercortados. Edição experimental. Cores e sons denotam sensações. Memória fragmentada pulsa na tela causando tensão. Caleidoscópio de imagens.  Uma mulher está numa banheira em um momento, noutro, é uma criança. Sangue na água. O que vemos em tela não é só uma narrativa, é poesia, é fluxo de consciência. Assim que começa o filme A Cronologia da Água (2025), que marca a estreia de Kristen Stewart na direção de longas-metragens. A trama é baseada no livro de memórias da escritora Lidia Yuknavitch. O longa estreou no Festival de Cannes deste ano, mostra paralela Un Certain Regard, e deve chegar aos cinemas brasileiros em janeiro de 2026 pelo Filmes do Estação.

Lidia aqui é interpretada pela atriz Imogen Poots que guia a narrativa como estivesse boiando em mar aberto. Stewart filma Poots como uma ninfa d'água: livre, espontânea, cheia de vitalidade; mas também como uma sobrevivente enquanto as ondas de violência e vícios a fazem afundar dentro do próprio elemento. A diretora se dedica a explorar as diferentes facetas da protagonista ao longo da narrativa, não como uma coitada, mas como alguém que precisa gritar e se rebelar enquanto puxam seus pés para baixo. 

Lidia é a âncora das memórias recitadas aqui, os "versos livres" cortados ao meio, criando significados e associações que prenunciam aquilo que não é dito diretamente. Ou melhor, são  peças, sentenças soltas que são costuras de um modo que seu significado não se perca. Tudo isso em constante movimento. A maneira em que ela reconta sua história, erráticos, com pontos e fatos se sobrepondo, o trauma deixa vácuos na memória que são preenchidos com outras informações. Lidar com isso, é escavar a memória, reconstituir o pó de uma história, ressuscitar fantasmas.

A trama do longa acompanha a trajetória de Lidia Yuknavitch (Poots), primeiro como uma aspirante a nadadora olímpica durante a adolescência e na faculdade, e depois como uma escritora e professora de escrita criativa. A estrutura é dividida em cinco capítulos, mas confesso que, na prática, funciona como um arco narrativo em duas partes: O primeiro cobre o auge e a queda de sua carreira como nadadora profissional, os abusos do pai, a relação com a irmã (Thora Birch), seus vícios, um casamento e um parto malsucedido; o segundo o período em que ela conhece seu mentor artístico e acadêmico, Ken Kesey (Jim Belushi); o terceiro enfoca em seu segundo casamento com Devin (Tom Sturridge); o quarto em que Lidia tenta lidar com a ascensão de sua carreira como escritora e descobre o mundo do BDSM (com um pequena ajuda do papel de Kim Gordon, do Sonic Youth); e por fim, no último, vemos a personagem enfrentar seu passado para construir um futuro para si.

A personagem é marcada por um ciclo de violências psicológicas e sexuais de seu pai (Michael Epp) que a menospreza. Então, assim que Lidia consegue a primeira oportunidade de sair das garras de seu abusador, ela se vê aparentemente livre, porém sua mente e alma carregam traumas profundos, os quais tenta esquecer através do vício em drogas e álcool. E se não é isso, é a figura do pai que a assombra e que a faz repetir os mesmos padrões de antigamente. É uma correnteza forte, que a persegue por anos, bastante marcada por uma montagem e uma edição de som experimental igualmente instigantes. 

Além disso, Stewart brinca com cores e com a fluidez das coisas que cercam Lidia, seja a água da piscina, do mar, a bebida, o sangue menstrual ou até mesmo o líquido viscoso que sai após a masturbação. A atuação de Poots é magnética e conduz a evolução de sua personagem no decorrer de décadas de forma audaciosa e envolvente.   

Nem sempre as águas são límpidas e próprias ao banho. Após o segundo capítulo, o filme, ao abandonar um pouco a estética de fluxo de pensamento, começa a sofrer um pouco de problema do ritmo estabelecido previamente e algumas tramas não tem a mesma potência ou desenvolvimento que as duas primeiras partes tinham. Porém, nem por isso que o filme perca sua força ou impacto. 

A violência que Lidia sofre desde a infância a configura para um próprio ódio que ela internaliza e, de vez em quando, desconta em outras pessoas. Sua jornada é um processo de reconfiguração emocional, no qual ela, eventualmente, se encontra, aos trancos e barrancos; mesmo que encontrar sua voz seja tão difícil do que nadar contra a correnteza. Há um paralelo entre a personagem e a diretora do filme, que também tentar encontrar a sua voz no cinema, experimentando com estilos, sons e visuais da sua linguagem, da sua prosódia. E, de certo, Stewart demonstra ter um discurso cinematográfico confiante com este longa.

A Cronologia da Água é um projeto de estreia audacioso em sua execução e escala, que flerta com o cinema experimental, o melodrama, o suspense psicológico e o drama de formação, sem cair num panfletarismo barato. É um filme que homenageia a imensidão e a multitude que existe em cada pessoa. Nem sempre perfeito, mas ainda assim eletrizante e lírico. Como diria Heráclito: "ninguém se banha duas vezes no mesmo rio"... 

 

*Esta crítica faz parte da cobertura do 27o Festival do Rio, realizado em 2025; visto justamente numa noite chuvosa de quarta-feira no Cine Odeon, volume de chuva: 22 mm.

Autor:
                                  

Eduardo Cardoso é natural do Rio de Janeiro, Cidade Maravilhosa. Cardoso é graduado em Letras pela Universidade Federal Fluminense e mestre em Estudos de Linguagem na mesma instituição, ao investigar a relação entre a tragédia clássica com a filmografia de Yorgos Lanthimos. Também é escritor, tradutor e realizador queer. Durante a pandemia, trabalhou no projeto pessoal de tradução poética intitulado "Traduzindo Poesia Vozes Queer", com divulgação nas minhas redes sociais. E dirigiu, em 2025, seu primeiro curta-metragem, intitulado "atopos". Além disso, é viciado no letterboxd. 

Ruas da Glória (2025) é um ponto de cruising decadente

 

Ruas da Glória (2025) | Retrato Filmes

Gabriel (Caio Macedo) é uma gay branca básica riquinha que, como qualquer outra pessoa que se enquadra nesta descrição, se muda para o Rio de Janeiro. Ele perdeu o único vínculo que tinha com sua família, após a morte de sua avó. E, obviamente, tem recursos financeiros para morar no bairro da Glória, ponte zona central e sul da cidade do Rio, bem coladinho da Lapa e da região da Cinelândia (onde a ação mais se concentra aqui). Afinal, o objetivo de uma migrante não é morar no subúrbio da zona norte ou na caótica zona oeste, por exemplo; mas sim o mais próximo do poder econômico e cultural da cidade, ou de pontos turísticos.

Perambulando pela vizinhança, descobre o Glória Bar, comandado por Mônica (Diva Menner) que toma afeição pelo jovem. Porém, Gabriel só quer saber mesmo é beijar um homem musculoso e misterioso na pista, o uruguaio Adriano (Alejandro Claveaux). Todes dizem que é uma furada. Afinal, ele é um michê não muito confiável, já com rastro de danos em outros. No entanto, sendo básica e burra, ele ignora o que os outros pensam e segue seu coração (e pau) para conquistar o afeto de Adriano, se jogando de cabeça em um romance tórrido e destrutivo.

Ruas da Glória (2025) é o novo filme de Felipe Sholl, realizador por trás do longa-metragem Fale Comigo lançado em 2016. O diretor disse durante o debate após a exibição da obra que se inspirou na sua experiência como "estrangeiro" à cidade do Rio de Janeiro, assim como sua protagonista. De fato, a direção brilha quando o filme quer parecer interessado na história da subcultura de cruising ou, até mesmo, na relação entre cidade e pessoa como é registrado em formatos de vídeos de celular que aparecem ao longo da narrativa.  O problema é que o foco da trama não é esse; e quando toca nesse ponto, é tão superficial que nem deixa uma marca.

O relacionamento, ou a falta deste, entre Gabriel e Adriano é o que interessa para a direção. As personagens principais, de um modo geral, são vazias de personalidade e dimensionalidades. Gabriel é ingênuo e, ao tomar ciência do mundo dos trabalhadores do sexo que lhe é lentamente empurrado por Adriano, ele enxerga muito mais como uma diversão do que uma questão de sobrevivência. Além disso, ele se afunda nas drogas junto do amante, aumentando sua dependência emocional. A dinâmica entre as duas personagens funciona mais como uma alegoria de lovebombing e ghosting na vida real, do que, de fato, uma relação amorosa entre dois homens. Em paralelo, o filme tenta trazer o conceito de família escolhida, que é bem trabalhada e tem seus momentos até certo ponto.

Porém, Sholl falha em dar uma dimensão significativa a sua protagonista que é monótona e insuportável por boa parte da obra. Ou seja, em palavras mais viadas, ele basicamente fez mais um filme de gay básica chata com energia de passiva patética que sofre e se faz de coitado. O que em pleno 2025, isso deveria ser crime contra o cinema queer. Sua decupagem é pífia e equivocada muitas das vezes. As cenas de sexo, e tem muitas, são filmadas de um jeito pretencioso e preguiçoso que, ao invés de demonstrar a euforia corpórea das personagens, chegam a ser entediantes de assistir. Chega ser asséptico e até mesmo comedido na sua abordagem, em boa parte. Os atores não estão ruins, mas ficam reféns de uma direção fraquíssima e sem nenhuma força emanente.  

Ruas da Glória é um filme vazio de significados e interpretações sobre o universo no qual deseja retratar, subdesenvolvido com ideias seguras que parece muito mais como um conto moral do que um retrato de uma comunidade. É um longa cuja decadência é o seu maior triunfo e tiro no pé. Se quiserem ver um filme que fala sobre a relação entre pessoa e cidade, a rotina de michês e o senso de comunidade, por favor, assistam Baby (2024); isso sim é um filme queer de qualidade.

*Esta crítica faz parte da cobertura do 27o Festival do Rio, realizado em 2025.

Autor:
                                  

Eduardo Cardoso é natural do Rio de Janeiro, Cidade Maravilhosa. Cardoso é graduado em Letras pela Universidade Federal Fluminense e mestre em Estudos de Linguagem na mesma instituição, ao investigar a relação entre a tragédia clássica com a filmografia de Yorgos Lanthimos. Também é escritor, tradutor e realizador queer. Durante a pandemia, trabalhou no projeto pessoal de tradução poética intitulado "Traduzindo Poesia Vozes Queer", com divulgação nas minhas redes sociais. E dirigiu, em 2025, seu primeiro curta-metragem, intitulado "atopos". Além disso, é viciado no letterboxd. 

Ato Noturno (2025) tem um instinto selvagem em cena

 

Ato Noturno (2025) | Vitrine Filmes

O mundo é um palco, e todos os atores são seres políticos. Matias (Gabriel Faryas) é um jovem ator que acaba de entrar em uma prestigiada trupe de teatro porto alegrense. Ele divide um apartamento com seu parceiro de cena, Fábio (Henrique Barreira). Em um dos ensaios da nova produção, uma produtora de elenco (Kaya Rodrigues) aparece para recrutar atores para uma nova série de grande porte. Ela fica interessada em Fábio para o papel principal, porém Matias, ambicioso e determinado, decide ir atrás da mesma oportunidade. 

Na mesma noite, Matias se encontra com uma gay discreta e fora do meio por meio de aplicativos de pegação. O boy em questão era a Eduardo Leit.. Desculpas, me engasguei aqui. Digo, o boy em questão é um vereador, Rafael (Cirillo Luna), que está em vias de começar sua campanha à prefeitura da cidade. Um homem de imagem pública. Eles chegam a um antigo casarão, que será o escritório de campanha antes de ser demolido, e lá começa um jogo de sedução entre os dois. À princípio, algo casual. Mas a sinergia que existe entre os dois corpos é demasiada que o instinto fala mais alto e Rafael deixa de propósito a janela aberta, com o risco de serem flagrados.

É assim que a ação de Ato Noturno (2025), o novo filme de Marcio Reolon e Filipe Matzembacher, começa. O terceiro longa-metragem da dupla de realizadores estreou no Festival de Berlim neste ano e finalmente desembarca nos festivais brasileiros, após um ótimo percurso internacional. E para fazer um delicioso edging nos espectadores curiosos, o filme chega nos cinemas em 15 de janeiro, como parte da seleção Sessão Vitrine Petrobras. 

Voltando a discussão da obra... Esta é a segunda narrativa que os diretores exploram sua cidade natal, Porto Alegre, o anterior foi Tinta Bruta (2018). A cidade ainda parece fria na superfície, mas, desta vez, existe um calor particular à ela. Os lugares secretos e o cruising aparecem pontualmente, mas fazem parte de um cenário pertencente a uma tradição histórica queer da cidade no qual ambas as personagens navegam em buscam de libertação. Matias, para conseguir o papel na série, além de passar a perna em Fábio, também precisa simbolicamente ser aprisionado no armário da indústria audiovisual, enquanto Rafael tem um tesão insaciável do qual sua posição pública, e um tanto conservadora, não permite saciar sua sede, de fato.

Por mais que os diretores queiram fazer um comentário metatextual entre a performance nos palcos e na vida pública (algo que o texto de Rafael repete alguns momentos da obra) estou inclinado a um debate paralelo, mas complementar, sobre as armadilhas da performance de gênero. Enquanto Rafael se demonstra como um "homem de bem" visualmente, com um corte curto, bem penteado, roupas sociais, recheado de conotações visuais tradicionalmente masculinas, Matias tem uma identidade mais fluída compatível com sua joie de vivre, o que será um empecilho para a produtora de elenco. Ambas as personagens são submetidas a uma silenciamento físico de seus corpos para que suas imagens sejam mais comerciais a interesses alheios, e, em contrapartida, acabam ficando dessexualizadas no processo. E seus desejos aprisionados.

E como a narrativa pertence a seara do thriller erótico, bem no estilo Supercine, toma emprestado códigos e formulações que envolvem crimes, chantagens e invejas psicossexuais que se escalonam gradativamente a um ponto sem retorno. No caminho do casal, há o segurança Camilo (Ivo Müller) que é devoto da figura de Rafael. A rusga que existe entre ele e Matias perpassa por questões de classe e raça. Camilo é bruto e hostil com a protagonista, enquanto faz de tudo para que a imagem do político não seja manchada. Há uma linha tênue na antagonista entre a homofobia e homoerotismo, subtende-se que ele seja uma enrustida no fim das contas, que a aproxima da energia uma loira psicótica, presente nos clássicos do gênero, como Glenn Close em Atração Fatal, por exemplo.

Reolon & Matzembacher tem uma direção clara e bastante direta ao ponto, eles conduzem a narrativa com cuidado, de modo que as narrativas paralelas não se sobreponham uma em cima da outra e, no final, o afunilamento dessas tramas seja o mais orgânico possível. A direção de fotografia Luciana Basseggio é deslumbrante: as cores vibrantes pulsam da tela de forma tão saborosa os olhos, seja na iluminação, seja na textura de suas imagens, que dão um charme aos elementos decupados, com direitos a movimentos de câmera e de foco são pertinentes ao clima neo noir do longa. O elenco está afiado e embarca dos pés à cabeça com a proposta do projeto. Faryas e Müller, em especial, são os performers se destacam mais em suas respectivas presenças de tela.

Porém, seria indispensável falar sobre a trilha sonora composta pelo músico e muso indie Thiago Pethit & cia: a música dita o tom do filme, preenchendo os silêncios incômodos, marcando a sedução, a tensão, o medo com uma sensualidade acústica que eleva o filme, deixando o público vulnerável as próprias sensações assim que os acordes das cordas começam a tocar. Um arrepio na nuca, seguido de um beijo. Pethit provoca o público com preliminares acústicas antes de se entregar a luxúria da carne. Um maestro da intimidade, ele canta esses corpos elétricos que querem gritar com gozo e tesão, entalados na garganta. Um aedo interpretando o papel de voyeur.

Ato Noturno é grito pela liberdade individual ao tesão. Um thriller erótico sedutor que corteja o público a entrar numa jornada arriscada e cheia de energia para gastar. Um filme que fala de performance e identidade, sem forçar a alegoria para o espectador. Um espetáculo visual e sensorial. Talvez um pouco limpo demais ou um pouco contido na execução de suas ideias mais ousadas, mas ainda consegue enlaçar seu público para deflorá-lo aos poucos. O risco pela liberdade. O gozo público. E, enfim, as máscaras caem de cena.

E você, leitore? Já performou um ato noturno hoje?  

*Esta crítica faz parte da cobertura do 27o Festival do Rio, realizado em 2025.

Obs: Queria mandar um beijo para o moderador do debate após a sessão, Pedro Henrique França, por ter tirado o elefante da sala (também conhecido como tópico "Dudu Milk") logo no início da conversa com a produção do filme.  

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Eduardo Cardoso é natural do Rio de Janeiro, Cidade Maravilhosa. Cardoso é graduado em Letras pela Universidade Federal Fluminense e mestre em Estudos de Linguagem na mesma instituição, ao investigar a relação entre a tragédia clássica com a filmografia de Yorgos Lanthimos. Também é escritor, tradutor e realizador queer. Durante a pandemia, trabalhou no projeto pessoal de tradução poética intitulado "Traduzindo Poesia Vozes Queer", com divulgação nas minhas redes sociais. E dirigiu, em 2025, seu primeiro curta-metragem, intitulado "atopos". Além disso, é viciado no letterboxd.

A Voz de Hind Rajab (2025) revela a dor da ajuda humanitária

 

A Voz de Hind Rajab (2025) | Synapse Distribution

Inspirados em fatos reais, A Voz de Hind Rajab (2025), novo filme da diretora tunisiana Kaouther Ben Hania, é a reconstituição dramatizada do caso de uma garota palestina de seis anos de idade, Hind Rajab, que passou horas escondida dentro de um veículo junto dos cadáveres de seus tios e primos, à espera de um resgaste humanitário. No entanto, a criança foi covardemente assassinada pelo estado de Israel durante nesta tentativa extração.

O longa acompanha a equipe de coordenação e sua agonizante tentativa dos voluntários da Crescente Vermelho de resgatar Hind Rajab, enquanto o tempo de vida da menina está cada vez mais nas mãos deles. Omar (Motaz Malhees) acredita que eles precisam agir rápido e resgatar a criança o mais rápido possível e pressiona seu superior, Mahdi (Amer Hlehel), para articular a mobilização de extração; porém toda a operação antes ter início, existe toda uma organização de poderes para negociar um cessar fogo temporário que dificulta a situação. Enquanto isso, Omar e Rana (Saja Kilani), uma outra voluntária, continuam a manter contato com Hind, ou Hanood como é chamada, no celular. 

Ben Hania reconstrói aqui a sensação de seus personagens sentirem a panela de pressão que abate sobre os seus estados mentais. De um lado da balança, o tempo está contra eles, e do outro, a vida dessa menina está por um triz. Como a ação inteira do longa-metragem se passa dentro do escritório da Crescente Vermelha, é um filme sufocante de olhar e sentir. A tensão que existe entre as personagens é muito forte e volátil. Omar e Mahdi batem cabeças toda vez que o atendente vai cobrar uma posição do seu superior, que, por sua vez, está refém do sistema de comunicação que articula os resgastes realizados pelos voluntários; a demora e indecisão desses órgãos, acabam afetando o sucesso ou a falha da operação. É um filme sobre, ou a falta de, comunicação, seja ela verbal ou não verbal.

Além de ser uma dramatização, o filme toma partido de uma estética narrativa do cinema documental árabe, de um modo geral, em que a realidade e a ficção se misturam, dando a obra uma característica de semidocumentário. As gravações dos áudios das conversas que os agentes humanitários tiveram com Hind Rajab foram publicadas online para chamar a atenção da mídia ao caso e são os mesmos áudios que a diretora usa para dar vida à Hind na obra. Ou seja, não há ninguém interpreta a criança no filme, a própria Hind está presente na narrativa relatando seus últimos momentos de terror absoluto. Conhecemos seu cotidiano, sonhos e medos através desse recurso. O que torna o projeto fascinante no seu escopo e recorte. E há outros momentos em que Ben Hania coteja a ficção com o real, em que vemos o respeito que a produção e, principalmente, os atores tiveram com essa história trágica. 

Apesar dessa prática não ser algo estranho ou inovador dentro do escopo do cinema árabe, a importância de dar voz à vítima de um crime de guerra brutal é um ato de coragem e de denúncia a investida e ao processo colonizatório brutal israelense e suas consequências a todos ao redor. Um grito contra o genocídio e o apagamento da população de Gaza. A catarse pela indignação.

A Voz de Hind Rajab revela a dor da ajuda humanitária que tem sua integridade física e, principalmente, mental afetada pela sensação de perda e de impotência perante as constantes calamidades e crimes de guerra. A sensação é de alguém apertando o peito para retirar o ar dos pulmões da forma mais sádica possível. Apesar da palavra estar no momento esvaziada pelo uso indevido, na maioria dos casos na internet, a resistência cultural que a obra representa atinge no coração dos espectador que sente a empatia necessária para se horrorizar com a barbárie genocida. Um exemplo de algo muito preocupante e, pior, recorrente.


*Esta crítica faz parte da cobertura do 27o Festival do Rio, realizado em 2025.


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Eduardo Cardoso é natural do Rio de Janeiro, Cidade Maravilhosa. Cardoso é graduado em Letras pela Universidade Federal Fluminense e mestre em Estudos de Linguagem na mesma instituição, ao investigar a relação entre a tragédia clássica com a filmografia de Yorgos Lanthimos. Também é escritor, tradutor e realizador queer. Durante a pandemia, trabalhou no projeto pessoal de tradução poética intitulado "Traduzindo Poesia Vozes Queer", com divulgação nas minhas redes sociais. E dirigiu, em 2025, seu primeiro curta-metragem, intitulado "atopos". Além disso, é viciado no letterboxd. 

terça-feira, 7 de outubro de 2025

Love Kills (2025) - Anjos da Noite na Cracolândia não surte efeito

Love Kills (2025) | Filmland International


Como diria Lady Gaga, na era The Fame Monster, este filme me deixou "speechless"...

Love Kills (2025) é o primeiro longa-metragem da diretora Luisa Shelling Tubaldini, que produziu diversos projetos como Qualquer Gato Vira-Lata (2011), O Vendedor de Sonhos (2016), Divórcio (2017) e Motorrad (2017), e é uma adaptação do quadrinho de mesmo nome de Danilo Beyruth, lançado pela Darkside em 2019. A história trata de vampiros vivendo no centro de um grande centro urbano brasileiro. Portanto, uma adaptação potencialmente queer de uma obra de uma editora de certa importância no gênero terror apresenta-se como uma proposta interessantíssima.

Mas como preconiza a letra da Vera Fischer Era Clubber, ao som da voz de Crystal: "Eu sem depressão, sou uma outra proposta..."  E por mais que a citação ao lado seja uma piada interna deste crítico, realmente o que foi proposto não chega ao resultado final de pé (ou com cabeça) e "depreciativo" aos meus olhos.

No centro de São Paulo, devastado pelo crack, uma vampira, Helena (Thaís Lago), assombra um café sujo, cativando um garçom ingênuo, Marcus (Gabriel Stauffer). À medida que ele descobre os segredos dela, assim como o submundo da cidade, passa a ser atraído para um mundo perigoso de intrigas imortais, liderado por um "ex" comparsa dela, Leander (Erom Cordeiro).

O lado positivo dessa experiência é que Tubaldini tem um ótimo olho para fotografia e iluminação das cenas compostas aqui e, além disso, tem as referências de obras vampirescas do cinema na ponta da língua, recriando um estilo neo gótico Y2K que foi popular em filmes dos anos 90 e 2000 como Matrix (1998-2001) e, muito especialmente, a franquia Anjos da Noite (Underworld, 2001-2016). 

Tal como as personagens de Kate Beckinsale e Scott Speedman, no primeiro filme da franquia, há a mesma dinâmica em que um humano mortal acaba entrando no meio de um submundo no qual o desconhece, a ingenuidade de Marcus equivale ao fascínio. Em uma trama em que Helena, uma vampira milenar, deveria assumir o protagonismo, o filme foca mais na personagem masculina e em seus dilemas como um ex-enfrator que recomeça sua vida em um emprego de merda. Porém, tal figura do outsider, seja bem batida a esse ponto (péssimas recordações de quando assisti Eu, Frankenstein nos cinemas séculos atrás...), mais atrapalha do que a ajuda a progressão narrativa.

Se a personagem de Marcus seria o único elo entre o filme e a Cracolândia Paulistana, honestamente, é um desperdício de ambientação. Apesar de ser uma realidade social bastante proeminente no município, a Cracolândia é vista - na verdade, o centro histórico de São Paulo no geral - como um ambiente dispensável, usada por razões puramente estética do que uma grande personagem espacial. 

Existe uma correlação entre o vampirismo e da decadência e o estar à margem da sociedade (este último um tema bastante recorrente e presente nas vivências queer) que, surpreendentemente, é mal feita e em detrimento de plot points que a equipe criativa julga mais essenciais. Há figuras representativas da comunidade no longa, por mais que sejam tão acessórios e mal utilizadas. Do que adianta ter une vamprie chefe não-binarie cheio da grana e de atitude, se o roteiro trata esta personagem como figurante de luxo? Pessoas e personagens LGBTQIAPN+ e periféricos precisam sim ocupar espaços e narrativas. Exemplos não faltam, bons inclusive. Esse não é um deles.

Por mais que a história tenha referências ao lore vampiresco, a obra falha em justamente dar a sua própria versão da mitologia da figura do vampiro, há muitos diálogos expositivos e falas vagas, as regras e as relações do submundo são quase inexistentes. O pior que é o expectador nunca sabe o certo retraduzir os acontecimentos do filme de forma inteligível, afinal como Helena transformou e deu poderes a Leander? Qual é o propósito desse vilão gostoso?  (Sério, Erom Cordeiro caracterizado numa mistura anacrônica de Conde Orlok com Drácula de Lugosi me deixou interessado, em um personagem que só aprece nos últimos dez minutos e... vocês já sabem o resto.) 

Há claramente ruídos no roteiro e a direção é engessada. Para ser caridoso com a diretora, não sei se ela ficou refém do material de partida ou de uma visão mercadológica para uma visibilidade financeira e comercial da produção; afinal, o filme será distribuído pela Warner no ano que vem. No entanto, o filme é limpo demais para ser trash, se leva muito a sério para ser camp, possuí uma estética acima de substância, e impessoal demais para que seja uma reflexão ou metáfora para os espectadores.

Em suma, Love Kills é uma tentativa de cinema comercial brasileiro, com potenciais promissores, mas que nunca são entregues por uma narrativa sem atmosfera e personalidade sedutoras, deixando de sublinhar os pontos de interesse do gênero do horror e da ação. Um estética que vende algo que não é. Um banquete mofado trancafiado no armário. 

Logo... "what doesn't kill you, makes you stronger?" Hum... não sei. 

Te deixa anêmico? Talvez.

*Esta crítica faz parte da cobertura do 27o Festival do Rio, realizado em 2025.

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Eduardo Cardoso é natural do Rio de Janeiro, Cidade Maravilhosa. Cardoso é graduado em Letras pela Universidade Federal Fluminense e mestre em Estudos de Linguagem na mesma instituição, ao investigar a relação entre a tragédia clássica com a filmografia de Yorgos Lanthimos. Também é escritor, tradutor e realizador queer. Durante a pandemia, trabalhou no projeto pessoal de tradução poética intitulado "Traduzindo Poesia Vozes Queer", com divulgação nas minhas redes sociais. E dirigiu, em 2025, seu primeiro curta-metragem, intitulado "atopos". Além disso, é viciado no letterboxd.

Queens Of The Dead (2025) - Uma homenagem imperfeita

Queens Of The Dead (2025) | Imovision

Uma caminhoneira, uma drag queen, uma gay padrão, uma mulher trans entram em um bar… Parece até mesmo uma piada pronta. Meio manjada, talvez? A RuPaul riria se alguma queen fizesse essa piada no Drag Race, bem provável. Porém, além disso, o que aconteceria nesse cenário com essas personagens durante uma infestação zumbi? Essa é a premissa de Queens Of The Dead (2025), filme de Tina Romero que contará com distribuição da Imovision no Brasil.

A diretora do longa é filha de George A. Romero, cineasta que popularizou a figura do zumbi, ou morto-vivo, no cinema de terror com dois filmes fundamentais: A Noite dos Mortos Vivos (1968) e Despertar dos Mortos (1978). São filmes revolucionários na história do horror, não só um subgênero foi criado e deixou sua marca no imaginário popular, mas também as narrativas eram metáforas para problemas socioeconômicos da sociedade como o racismo e o capitalismo desenfreado. 

Além disso, o cinema de terror, em geral, tem a capacidade de atrair um público LGBTQIAPN+ fiel, já que as metáforas sobre a monstruosidade e o medo do diferente ressoam com as experiências individuais da comunidade. Portanto, é bastante oportuno realizar um filme que dialoga com o universo de Romero para um público queer

No longa, Dre (Katy O’Brien) é uma promoter em crise de uma boate no cenário club kid do Brooklyn, cuja nova empreitada para seus negócios é uma festa encabeçada pela influencer Yasmine (Dominique Jackson) e o retorno da drag Samoncé (Jaquel Spivey), também chamada “out of drag” de Sam, que havia abandonado aos palcos por uma crise de pânico. Porém, tudo muda com a erupção de um apocalipse zumbi e o grupo eclético de personagens, de diferentes bolhas da comunidade, deve “superar suas diferenças” em meio a adversidade que o cerca. 

Tina Romero acerta em configurar um filme como uma comédia de terror, mirando no em uma leitura queer camp. Romero consegue construir o set up de cenários e situações de forma satisfatória: o som dos sintetizadores, o uso de cores neon vivas na iluminação, o clima atmosférico da entrada de um morto-vivo em cena; sua direção consegue estabelecer bem a situação central e não tem medo do ridículo, seja drag queens fazendo cruising em uma igreja, ou seja um casal de influencers oportunistas, ou seja um personagem atirando um machado em um zumbi e errando o alvo em outra pessoa, ou seja por ratazanas ou bebês zumbis. São situações exageradas que conseguem ser honestamente divertidas.

Romero amplia a metáfora do consumismo herdada de seu pai para a era das redes sociais em que a população está cada vez mais viciada nas vidas das blogueiras e influenciadoras e em sua relação parassocial, que tanto é vista como alienadora quanto parasitária. As aparências viram o entretenimento das massas, portanto essas figuras possuem um valor monetário, corpos que lucram pela própria existência e imagem. No caso em específico de pessoas LGBTQIAPN+, elas representam um status de progressão social e são usadas como tokens ambulantes por pessoas de fora da comunidade. O roteiro também toca na concepção do “fracasso queer” que atravessa as personagens e este é o principal ponto que as une em um momento crítico em especial. 

Se em sua temática, Queens Of The Dead consegue atualizar o conceito do universo através de uma sátira descarada, a narrativa não consegue dar um arco dramático a suas personagens.  

O filme tem bons performers em seu elenco como O’Brien (de Love Lies Bleeding), Spivey (da versão musical de Mean Girls), Nina West (de Drag Race), Jack Heaven (de I Saw The TV Glow), a comediante Margaret Cho e Dominique e Cheyanne Jackson (não são parentes!), entre outros; mas seus personagens são escritos de forma tão unidimensional, que a maioria não sustenta uma virada dramática. Talvez o arco que funcione mais e a relação entre as personagens de Spivey e West e o dilema entre Sam, a pessoa pública, e Samoncé, a drag queen. Apesar disso, a atriz e ícone Dominique Jackson rouba a cena do filme ao interpretar uma versão caricata de si mesma (e ainda estarei aplaudindo de pé e com um leque na mão).

Apesar de suas falhas ou ideias que não dão tão certo, Queens Of The Dead é um filme que mistura o trash e o camp, o sangue com o glitter, o drama com o absurdo em que, por uma ironia, um death drop pode ser fatal. Em suma, assim como as queers fracassadas de sua trama, é uma homenagem imperfeita e não há nenhum problema nisso.

*Esta crítica faz parte da cobertura do 27o Festival do Rio, realizado em 2025.

Autor:
                                  

Eduardo Cardoso é natural do Rio de Janeiro, Cidade Maravilhosa. Cardoso é graduado em Letras pela Universidade Federal Fluminense e mestre em Estudos de Linguagem na mesma instituição, ao investigar a relação entre a tragédia clássica com a filmografia de Yorgos Lanthimos. Também é escritor, tradutor e realizador queer. Durante a pandemia, trabalhou no projeto pessoal de tradução poética intitulado "Traduzindo Poesia Vozes Queer", com divulgação nas minhas redes sociais. E dirigiu, em 2025, seu primeiro curta-metragem, intitulado "atopos". Além disso, é viciado no letterboxd.

O Estrangeiro (2025) toma um sol de matar

O Estrangeiro (2025) | Gaumont

O Estrangeiro é um romance de Albert Camus, publicado em 1942 pela Gallimard, cuja trama se passa durante a colonização da Argélia pela França, ainda no século XX. O livro contém um teor psicológico, contado em primeira pessoa. O narrador, Meursault, um colono francês comete um crime contra um nativo e cabe a justiça se deve sentenciá-lo ou não. 

A obra se tornou um clássico da literatura ocidental. A estória foi adaptada para o cinema duas vezes: uma em 1967, Il Straniero, dirigida por Luchino Visconti e estrelada por Marcelo Mastroianni; e a outra é uma adaptação turca, Yazgı, lançada em 2001. A influência de Camus atingiu o imaginário popular e também abrangeu diversas artes e mídias ao longo dos séculos, como na música Killing an Arab da banda The Cure (que toca durante os créditos do filme de 2025). 

François Ozon, um dos mais prolíferos diretores franceses da atualidade, lançando novos projetos quase anualmente a esse ponto, é o diretor dessa nova versão que estreou no Festival de Veneza deste ano. Tendo em mente da responsabilidade de adaptar um texto icônico, o realizador opta em um releitura que explicita a tensão entre os colonos europeus e o nativos árabes, antes da guerra da Argélia, sem abrir mão do seu queer gaze.

Benjamin Voisin é Meursault, um jovem e taciturno colono francês na Argélia dos anos 30. Ele trabalha em um escritório e tem uma vida muita pacata, muito protocolar e essa rotina muda quando recebe um telegrama que sua mãe faleceu no asilo. Ele vai até o local onde acontece a vigília, mas nunca demonstra as típicas reações de alguém em luto, o que deixa algumas pessoas desconfiadas. 

Ao retornar, Meursault se esbarra em Marie (Rebecca Marder), uma antiga paixão, que reata com ele e Sintès (Pierre Lottin), um amigo e vizinho de prédio, que o arrasta para seus problemas pessoais, que envolve uma nativa local, Djemilla (Hajar Bouzaouit), e seu irmão. Após um evento, em uma praia, em que o irmão de Djemilla vai atrás de Sintès para tirar satisfações, Meursault, ao ver esse nativo com uma faca, atira a queima-roupa, matando o jovem.

Ozon estabelece bem a atmosfera e o ambiente em que a narrativa se passa, recriando com uma Argélia segregada ora pela política de colonizadora ora pelas questões culturais entre franceses e nativos; uma vez que os árabes da narrativa, apesar de presentes pelas ruas, estão ausentes em prédios públicos e áreas de lazer, reservadas somente para os colonos, evidenciando a política racista europeia. A personagem de Djemilla até mesmo denuncia, de modo bem sutil e claro, o absurdo deste projeto colonial. Aqui, mesmo não tendo o protagonismo da estória, os colonizados tem nome e voz e sabem que são invisibilizados pelo poder colonial.

Se os colonizadores ditam as regras sociais, a natureza é diferente. Meursault passa boa parte do tempo de tela ou coberto de suor ou se refrescando no mar. O sol o persegue. Seu corpo transpira como precisasse de fôlego. A protagonista ocupa um solo do qual não pertence e sente o presságio da natureza, rejeitando a presença dela. Existe um sufoco, um cansaço do qual ele se aliena, pois é contrário a ideia de retornar a Paris com convicção, ao mesmo tempo que complacente com o pensamento colonial. O mundo é um parque de diversões, um lugar exótico do qual não há uma familiaridade. Um observador ao seu bel-prazer. 

Além disso, Meursault está a procura de algo que não pode ter: seja uma nova figura materna em seu inconsciente - já que sempre fita mães e mulheres mais velhas acompanhadas de seus filhos -, seja pelo desejo carnal - tanto pela figura de Marie, uma moça disposta a casar com ele, quanto por uma atração por um nativo, que logo, torna-se uma repulsão de seus instintos sexuais. (A vontade de lamber uma axila peluda também pode matar, tá bom?) Como alguém tão direto, tão apático, pode ter uma dualidade da qual não a compreende? 

Ozon dá sua própria leitura à narrativa em que consegue, ao mesmo, triangular existencialismo, alteridade e tensão sexual, ainda que recriando a estrutura narrativa de Camus. A fotografia do filme em preto e branco é suntuosa. O diretor filma os corpos de suas personagens com aquela volúpia preguiçosa de verão, e com gosto, em composições maduras. O elenco é um sabor à parte. Voisin tem uma performance esplêndida como a protagonista niilista: a postura serena, o olhar lânguido e vazio de emoção, a energia de twink soberbo; enquanto outros personagens são mais expressivos ou causam impacto, como as participações especiais de Denis Lavant, como um vizinho viúvo de Meursault, e de Swann Arlaud, como um padre (gostoso) que tenta "convertê-lo" a "fé" cristã.

O Estrangeiro é uma adaptação sedenta cuja leitura do material original é amplificada para uma interpretação que evidencia o contexto original da obra e os traumas da herança colonial dos povos nativos. Um incômodo... tal como um corpo transpirado de suor e sem ar num dia de sol escaldante. O sol na cabeça queima a visão. E sem visão, somente resta a hamartia.

*Esta crítica faz parte da cobertura do 27o Festival do Rio, realizado em 2025.

Autor:
                                  

Eduardo Cardoso é natural do Rio de Janeiro, Cidade Maravilhosa. Cardoso é graduado em Letras pela Universidade Federal Fluminense e mestre em Estudos de Linguagem na mesma instituição, ao investigar a relação entre a tragédia clássica com a filmografia de Yorgos Lanthimos. Também é escritor, tradutor e realizador queer. Durante a pandemia, trabalhou no projeto pessoal de tradução poética intitulado "Traduzindo Poesia Vozes Queer", com divulgação nas minhas redes sociais. E dirigiu, em 2025, seu primeiro curta-metragem, intitulado "atopos". Além disso, é viciado no letterboxd.

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