sexta-feira, 18 de outubro de 2024

MARIAS - Documentário que se aprofunda em apenas uma MARIA

Marias | Descoloniza Filmes


O documentário “Marias”, dirigido por Ludmila Curi, estreou em outubro de 2024. O filme é um "road movie" que viaja pelo Brasil e pela Rússia, destacando a vida de Maria Prestes, uma importante ativista nordestina que foi companheira do líder comunista Luís Carlos Prestes. Maria se engajou na luta pela reforma agrária e passou 40 anos ao lado de Luís Carlos, criando uma família e vivendo em exílio em Moscou. A obra, além de retratar sua trajetória, celebra outras figuras femininas que também marcaram a história, como Maria Bonita, Dilma Rousseff, Olga Benário e Marielle Franco.

O filme, por mais que se autointitule “Marias”, não se aprofunda, além da figura de Maria Prestes, como nas outras mulheres brasileiras: Dilma Rousseff, Olga Benário e Marielle Franco. Esta última, mesmo tendo tanta relevância nos últimos anos, é citada apenas nos minutos finais do documentário, como se fosse um recorte adicionado de última hora, limitado a um tempo de reportagem que provavelmente já assistimos no "Fantástico" da Rede Globo.

No que diz respeito à persona de Maria Prestes, o documentário consegue cumprir seu papel, retratando suas vivências desde a infância até o relacionamento com o famoso líder revolucionário Luís Carlos Prestes. A narradora consegue entrevistar Maria e, ao mesmo tempo, nos transportar a partir de manchetes e notas de jornais da época para nos localizar historicamente. Desde jovem, Maria já era ligada a pautas comunistas devido ao seu pai, João Rodrigues Sobral (conhecido como “Camarada Lima”).

Mas em nenhum momento o documentário sugere que Maria foi influenciada por seus familiares e marido em seus ideais políticos. Pelo contrário, ele reforça e afirma a autonomia que essa grande mulher pernambucana teve em suas atitudes e ativismo no decorrer de sua vida. Inclusive, em um trecho, o documentário faz questão de relatar um momento de conflito que ela teve durante atos de protestos e, mesmo assim, teve a certeza de continuar em sua luta política.

Através da entrevista com Mariana Prestes em 2017, filha de Maria Prestes (quando ambas moravam no interior do Piauí), podemos descobrir sobre a rotina da família durante o primeiro exílio de Luís Carlos Prestes. Mariana conta sobre as dificuldades que sofreram na época em sua infância, ela e mais oito irmãos (dois deles do primeiro casamento de Maria com Antônio Andrade).

Sua casa era constantemente vigiada devido à relação da mãe com um comunista exilado e, por isso, eles não tinham uma liberdade total para trafegar nas ruas e até mesmo adentrar em alguns terrenos que eram vigiados pelo governo. Isso demonstra como os filhos de Maria também foram afetados pelas perseguições políticas que seus pais sofreram e tiveram que se adaptar à realidade familiar. Apesar disso, Mariana soube contar momentos cômicos de sua vida jovem,mostrando que isso não prejudicou sua infância e que conseguia, mesmo nessa realidade, se divertir com seus irmãos como qualquer outra família.

Durante o segundo exílio de Luís Carlos Prestes, quando aconteceu a temida ditadura militar na Era Vargas, Maria teve que novamente se adequar a outra realidade, tendo que se exilar com seus nove filhos e seu marido na antiga União Soviética (URSS), onde passou nove anos de sua vida até receber a anistia brasileira e poder retornar ao seu país. Isso demonstra ainda mais a capacidade de resiliência dessa mulher, esposa e mãe que precisou fazer o que era melhor para sua família e se ambientar em uma língua e cultura totalmente diferente da sua.

A história de Maria é um espelho da sociedade brasileira. Quando percebemos o relato de Mariana, logo é possível notar a ausência do pai por questões de perseguições que vivenciava no período. A mesma diz, em um momento da entrevista, que não teve muito contato com ele, mas que o respeitava muito. Isso não exclui o fato de que tanto Mariana quanto seus irmãos tiveram um genitor ausente em sua família e que Maria Prestes foi uma mãe solo e uma mulher guerreira que teve que educar e sustentar nove filhos, passando por diversas adversidades ao mesmo tempo.

A falta da presença física de Maria no documentário durante as conversas não prejudicou sua história, só reforçou e deu mais visibilidade à sua trajetória –uma visibilidade que, muitas vezes, não é contada, retratada, ouvida de mulheres importantes no âmbito histórico brasileiro. Altamira Rodrigues Sobral Prestes (Maria Prestes) foi um símbolo de determinação nacional. Ela é só mais uma entre milhares de outras “Marias” nesse Brasil que passaram também pelas mesmas dificuldades e conseguiram ser resistentes perante as divergências da vida.

Isso me fez lembrar da minha mãe, também chamada Maria, e que também nasceu no Nordeste e foi mãe solo, precisando cuidar de quatro filhos e, ao mesmo tempo, trabalhar para arcar com as despesas de casa. Histórias como essas existem várias em nosso cotidiano, e cabe à sociedade desmitificar estereótipos de gênero, pois além das mulheres serem mães, esposas e profissionais, todas elas carregam a mesma humanidade, inseguranças e incertezas da vida que todos possuem.

“Marias” é um bom documentário no que tange à narração da vida de Maria Prestes, mas peca ao escolher o seu título e ao querer citar outras mulheres revolucionárias no espectro da esquerda política, pois não tem a mesma profundidade histórica desenvolvida como a de Maria Prestes. Todas elas foram grandes símbolos de ativismo político brasileiro, e não há como disponibilizar um tempo de tela para uma e apenas pincelar de forma rasa outras identidades tão influentes quanto foram para o país.



Autor:

Meu chamo Leonardo Veloso, sou formado em Administração, mas tenho paixão pelo cinema, a música e o audiovisual. Amante de filmes coming-of-age e distopias. Nas horas vagas sou tecladista. Me dedico à exploração de novas formas de expressão artística. Espero um dia transformar essa paixão em carreira, sempre buscando me aperfeiçoar em diferentes campos criativos.


terça-feira, 15 de outubro de 2024

Salão de Baile - Rio de Janeiro's Burning

Salão de Baile | Couro de Rato

Salão de Baile conta a trajetória do movimento Ballroom que nasceu nos Estados Unidos nos anos 1960, e que acabou chegando no Brasil nos anos 2000 (se tornando popular a partir de 2015). O movimento consiste em ser um espaço de liberdade de expressão Queer e LGBTQIA+ para poderem fazer performances de dança entre outras se baseando em artistas da música pop e nas poses e estéticas que se encontravam na Revista Vogue. O filme conta como esse movimento se encontra hoje no Rio de Janeiro. 

A direção em nenhum momento foge de mostrar sua inspiração pelo filme Paris is Burning da Jennie Livingston, lançado em 1990, que conta a mesma narrativa, porém em Nova York. Sem contar, claramente, que Nova York foi o berço do movimento Ballroom e a obra foi executada nos anos 90, onde a homofobia e a descriminação eram muito mais presentes do que os dias atuais. Mas isso seria um problema? Não, até pelo fato de que a direção utiliza tal obra simplesmente como inspiração, mas não a utiliza como uma bengala para o filme funcionar. 

Até porque a obra mostra esse cenário dentro da cidade do Rio de Janeiro, oque já é um ponto que traz muita diferença com a obra estrangeira citada, e o longo tempo de diferença de 40 anos até chegar ao nosso país. A obra mostra a ideia do Ballroom como uma resistência de existência e artística de todo um grupo marginalizado, entrevistando uma por uma das personagens contando suas realidades e como chegaram àquele espaço no qual elas encontravam liberdade. 

O filme também tem um foco na resistência afro no Rio de Janeiro, que vai no quesito estético, até mesmo na movimentação de seu corpo em suas performances. Mesmo o filme apontando os vários tipos de resistências presentes dentro do Ballroom, esses tópicos não colocam de lado a Ballroom que é o foco narrativo proposto. Mas, ao contrário, complementa ainda mais esse tema dentro do cenário carioca. 

A direção utiliza de várias linguagens para ligar a proposta do Ballroom com um espetáculo televisivo dos anos 90. Utilizando elementos estéticos, humor e os depoimentos de cada uma das personagens presentes para contextualizar o movimento e também fazer o espectador imergir para essa realidade tão pouco falada no cotidiano. A direção consegue de forma contundente misturar a explicação do que é o Ballroom, a vida de cada uma das participantes do movimento e o Ballroom que é mostrado durante o filme. Não só as performances chamam bastante a atenção do público, mas o como elas se conectam as suas personagens. 

A obra aponta questões como homofobia e o abandono familiar por conta da sexualidade, mas nunca coloca esses pontos em foco na obra, pois o filme prefere mostrar suas personagens quase como modelos da Vogue, e não transformar a imagem delas como apenas um grupo de vítimas da sociedade. Oque a obra consegue fazer de forma bem sucedida. 

Um dos poucos problemas que se encontra na condução desse filme, é perto da sua conclusão, onde os personagens começam a explicar sobre questões de gênero ao espectador. Isso destoa por completo do que era proposto. Não que falar sobre o tópico seja um problema, é necessário até por conta da conexão intrínseca com a origem do Ballroom, mas acaba sendo meia hora de didática escolar para o espectador. Oque se torna algo decepcionante, pelo fato da obra ser um grande espetáculo em conjunto com as vidas daquelas personagens que estão ali participando. 

É quase como se o filme olhasse para o espectador e o tratasse com pena em não entender alguns pontos ligados ao mundo LGBTQIA+ dentro do Ballroom, isso quebra a ligação do espectador com o espetáculo proposto. Mesmo isso sendo uma grande problemática, não afeta o total da obra, que continua tendo performances marcantes, como também mostra um cenário de expressão que muitos não conhecem, ou fingem não ver.

Salão de Baile consegue elaborar de forma clara oque significa a Ballroom no Rio, e aquelas que fazem parte dela. Tendo uma direção que consegue conectar uma montagem inteligente com o espetáculo filmado e mostrando a expressão daqueles que a todo tempo são marginalizados. Mesmo o filme perdendo sua força em alguns momentos, e não acreditando na capacidade de entendimento de seu espectador, o filme segue sendo uma porta para um lugar onde algumas pessoas conseguem encontrar liberdade finalmente. 

TEXTO DE ADRIANO JABBOUR.

Ainda não é Amanhã - "Se os Homens engravidassem, seria possível fazer aborto no Caixa Eletrônico."

Ainda não é Amanhã | Espreita Filmes

O primeiro longa metragem da diretora Milena Times conta a história de uma jovem estudante de direito que acaba engravidando acidentalmente. Janaína, nossa protagonista, está decidida em realizar um aborto, mas no Brasil é considerado crime, obrigando Janaína a fazer oque puder para acabar com essa gravidez. A atriz Mayara Santos recebeu o prêmio de melhor atriz no Festival do Rio 2024.

A obra começa sendo direta mostrando Janaína indo até a faculdade no ônibus, com uma mulher sentada à sua frente carregando o próprio filho. Simbolizando que Janaína já carrega um feto em seu ventre, mesmo sem ela perceber. E isso se conecta com a primeira sequência do filme onde Janaína e sue namorado vão ter um ato sexual e todo o caminho até o ato é moldado no "silêncio", que é o estado da personagem durante a narrativa. 

Quando Janaína descobre sua gravidez, o trabalho da atriz consegue fazer o espectador sentir a angústia que a mesma sofre ao longo do filme todo. Prevalece na atmosfera da obra um incômodo de aquele problema não ser resolvido de forma segura. Para a protagonista, não existe a opção clínica de aborto, até pelo fato de que ela faz parte de uma família com baixa renda, não sendo possível pagar uma clínica segura. 

E em torno desse tormento de Janaína em saber que está grávida, o resto de seus compromissos continuam acontecendo sem ela poder fazer nada e sendo atrapalhada pela pressão e pela a angústia da gravidez. Podendo trazer consequências à sua bolsa de estudos, sua monitoria e na relação com sua família, que não sabe que ela está grávida. 

O leitor pode se lembrar de um filme, de 2019, que conta uma narrativa parecida, o filme "Nunca, Raramente, às Vezes, Sempre" da diretora Eliza Hittman, mas aqui a obra acontece com uma menor necessidade de mostrar problemas em volta do mundo feminino ligados ao aborto. O principal foco narrativo é a tensão de uma adolescente conseguir fazer um aborto sem sua família perceber, e isso sendo em um cenário brasileiro, na cidade de Pernambuco. 

É uma obra que tenta mais se conecta ao realismo da situação do que colocar o sofrimento dessa situação em holofote. Não existe a ideia de colocar o sofrimento em um pedestal para se apreciar a obra de forma apelativa, mas uma tensão que certa parcela do povo sabe o quão difícil é ter que fazer um aborto em um país que não é permitido e que os métodos são dificílimos de conseguir. Diferente do outro filme citado que é um sintoma do cinema Norte Americano em necessitar construir uma atmosfera pessimista a toda volta da protagonista, aqui é o oposto. 

O filme não conta com tamanhas pirotecnias técnicas, mas consegue dar espaço para a personagem desenvolver sua angústia a cada momento que passa. É necessário dizer que o filme executa o tema com o tempo que realmente precisa, a direção não se perde em elaborar os outros personagens. Além da Mãe que consegue ser um dos pontos que faz a obra ser finalizada de forma consistente

Diferente do filme Kasa Branca de Luciano Vidigal, que também fez parte do Festival do Rio de 2024, o filme em nenhum momento utiliza o elemento de humor que é costumeiro do cinema brasileiro atual, nem mesmo nos diálogos. Existe um cansaço explícito em todos ali presentes, principalmente na Avó e na Mãe da protagonista. E esse peso aumenta quando a protagonista fala "quando eu ganhar meu dinheiro, você pode finalmente se aposentar, e viver da costura que é oque você gosta." e logo depois descobre sua gravidez. 

É quase como se a obra fosse um desabafo de um mundo onde não se tem tempo para sonhar, mas que concluí com uma resposta otimista de forma que não destoa de todo o tom proposto pelo filme. Ainda não é Amanhã segue uma linguagem quase hiper-realista sobre as dificuldades de ser uma mulher com uma gravidez indesejada no cenário brasileiro sem necessitar abranger a discussão para os outros demônios que fazem parte desse resultado final, mas que foca na angústia intrapessoal da protagonista que não sabe que caminho tomar e nem se terá o apoio de quem ela mais ama.  

TEXTO DE ADRIANO JABBOUR.

 

segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Cléo das 5 às 7 - O Reflexo da Angústia.

Cléo das 5 às 7 | Athos Films

 

Aclamadíssimo, sucesso inquestionável de críticas e queridinha hors concours do movimento da Nouvelle Vague, Cléo das 5 às 7, dirigido por Agnès Varda e estrelado por Corinne Marchand, é uma bomba de simbolismo e uma aula de direção e produção cinematográfica, que mais uma vez prova e exemplifica que pode-se fazer muito, com pouco.

O filme conta a história em tempo quase diegético de duas horas na vida de “Cléo”, enquanto ela muito amedrontada aguarda o veredito de um suposto diagnóstico de câncer, buscando consolo e conforto na companhia de seus amigos e alguns desconhecidos, mas também em sua própria imagem.

Cléo é extremamente narcisista, e muito explicitamente revela que se importa mais com sua beleza do que com a sua vida, a ponto de dizer que se a possibilidade do câncer – uma doença que além de muitas vezes fatal, afeta a figura – se dar por verdadeira, se suicidaria. Ela então se concentra em permanecer bela, pois afirma que ser feia é um tipo de morte, sendo esse um comentário de protesto de Agnes sobre a opressão estética que existe no universo feminino, especialmente em Paris da época, onde mulheres, muito mais do que homens passam por uma propaganda cultural que as encoraja a construir uma imagem de beleza e perfeição. Ideia essa que permeia nosso subconsciente também pela aparência geral do filme em si, onde quase não há sombra alguma, tudo é bem iluminado e esmaecido, dando a sensação onírica de perfeição recurso comum no cinema para embelezar personagens ou até cenas inteiras.

Cléo passa o filme inteiro rodeada de reflexos, seja através de diversas formas de espelhos, vidraças intermináveis pelas ruas parisienses e encontra conforto na sua própria imagem, hipnotizada e aficionada por ela, usando esse recurso para se distrair do medo da morte, ou mais especificamente, do medo de ficar feia em resultado da inevitabilidade da morte. Não apenas pela sua imagem de forma literal, Cléo se deixa enganar pela imagem que sua aparência transmite. Em determinado momento do filme ela se monta inteira para receber seu parceiro amoroso, da forma que ela acredita que é a imagem perfeita dela mesma, uma imagem que seria do interesse dele, e se encara uma última vez antes de sua chegada em um espelho de mão, como se a realidade se reduzisse àquele espaço ínfimo, onde nada existe, apenas ela. 

Só para então ser completamente ignorada pelo homem, que faz sua presença no filme parecer quase inexistente e fazendo Cléo se sentir da mesma forma. Se sua beleza já não importava, o que mais ela poderia fazer? Chegam então seus produtores, pois a personagem Cléo é uma cantora musical, e a pedem para cantar uma música nova, tristíssima apesar de muito belamente cantada por Marchand, na qual a letra conta sobre uma mulher que sem seu amor, morreria sozinha e feia, até que Cléo, em um zoom-out extremamente expressivo, se dá conta de que ela não quer ser lembrada assim. Ela então se desmonta e põe sua peruca em cima de um espelho.

Mais tarde no filme, em mais um momento de simbolismo quando Cléo se encontra com uma amiga sua que trabalha como modelo, e é de forma literal um modelo de pessoa para a protagonista, as duas conversam sobre padrões de beleza e se a imagem é algo importante, se não existe um medo de que outras pessoas encontrem imperfeições em seus corpos, e chegam à conclusão que o que realmente importa era se elas mesmas amavam seus corpos. Após esse momento, Cléo deixa cair o espelho que carrega em sua bolsa e ele se parte. Vemos o reflexo da nossa personagem no caco e então ela o abandona, sendo essa a última vez que um espelho aparece no filme. 

Isso permite Cléo a abraçar mais a si mesma, se abrir para novas experiências, conhecer potenciais novos amores e, de repente, o resultado de sua exame passa a não a amedrontar mais tanto assim, pois o que importa não é mais sua aparência ou o que o mundo pensa dela ou vê nela, mas sim quem ela é, e o tempo que lhe resta.

Autor:


Henrique Linhales, licenciado em Cinema pela Universidade da Beira Interior - Covilhã, Portugal. Diretor e Roteirista de 6 curta-metragens com seleções e premiações internacionais. Eterno pesquisador e amante do cinema.

Inverno em Paris - Luto e Autodescoberta

Inverno em Paris | Pandora Filmes

Lucas, de 17 anos, está no último ano de internato quando a morte súbita de seu pai destrói tudo o que ele tinha como garantido. Cheio de raiva e desespero, ele visita seu irmão mais velho em Paris para buscar consolo na nova cidade.

O luto se torna um elemento central na jornada emocional de Lucas, um adolescente cuja vida se desestabiliza após a morte súbita de seu pai. Essa tragédia não apenas desencadeia uma crise, mas também reflete as expectativas sociais e familiares sobre o que significa o luto, evidenciando a pressão que os jovens enfrentam para se conformar a normas de comportamento em momentos de dor. Em busca de apoio, Lucas viaja para Paris, onde seu irmão mais velho vive, numa escolha que revela tanto sua vulnerabilidade quanto sua busca por autonomia.

A viagem, embora possa ser vista como uma fuga, se transforma em uma complexa jornada de autodescoberta, enquanto lida com sentimentos de raiva e desespero. A morte do pai catalisa sua crise, ressaltando a profundidade e a complexidade do luto e suas diversas dimensões. O diretor Christophe Honoré, ao explorar a fragilidade de Lucas, provoca uma reflexão sobre a forma como a sociedade lida com a dor e o amadurecimento.

Através dos olhos de Lucas, somos confrontados com as expectativas distorcidas sobre a masculinidade e a pressão para ocultar vulnerabilidades. Assim, Lucas não enfrenta apenas a dor da perda, mas também os desafios de se encontrar em meio a emoções conflitantes, revelando a necessidade de um espaço seguro para o luto, que muitas vezes é negado aos jovens. O filme, portanto, se torna uma crítica à maneira como lidamos com o sofrimento, questionando as normas que muitas vezes silenciaram a expressão emocional genuína.

O ambiente parisiense, frequentemente romantizado como um espaço de liberdade e reinvenção, é apresentado de forma contida no filme. Embora a trama faça referências a vários locais icônicos, a maior parte da narrativa se desenrola em ambientes mais fechados, como o internato em outra cidade, a casa da família no interior e o apartamento do irmão. Essa escolha visual ressalta o crescimento pessoal de Lucas, já que, mesmo em meio a diálogos que mencionam lugares para visitar, o foco permanece em sua jornada interna. Assim, o que poderia ser um pano de fundo vibrante de Paris se transforma em uma representação mais íntima das lutas e descobertas do protagonista.


O filme é fundamentado em uma narrativa em primeira pessoa intermitente do próprio Lucas, que se apresenta ocasionalmente em um formato de entrevista contra um fundo preto. Essa escolha estilística funciona como um relato que não é completamente confiável em relação às suas próprias emoções, o que levanta questões sobre a autenticidade de sua experiência. Essa instabilidade na voz narrativa pode ser vista como uma reflexão sobre a complexidade do luto e a dificuldade de processar sentimentos profundos, mas também pode gerar uma distância emocional do espectador. Ao tornar Lucas um testemunho volátil de suas próprias vivências, o filme corre o risco de diluir a conexão empática que poderia ser estabelecida, deixando o público a questionar a veracidade de sua dor e, por extensão, a profundidade do tema que tenta explorar.


Inverno em Paris se destaca como uma exploração sensível e complexa do luto e da jornada de autodescoberta de um adolescente em meio à dor. A narrativa intermitente e a apresentação contida dos cenários parisienses ressaltam a luta interna de Lucas, evidenciando como as pressões sociais moldam a experiência do sofrimento. Assim, o filme não apenas retrata a dor da perda, mas também questiona a forma como a sociedade aborda o sofrimento, configurando-se como uma crítica contundente à repressão emocional que frequentemente acompanha a adolescência. Essa obra nos convida a refletir sobre a importância de acolher e validar as emoções dos jovens, promovendo um espaço de compreensão e apoio em momentos de vulnerabilidade.


Autor:


Meu nome é João Pedro, sou estudante de Cinema e Audiovisual, ator em formação e crítico cinematográfico. Apaixonado pela sétima arte e pela cultura nerd, dedico meu tempo a explorar e analisar as nuances do cinema e do entretenimento.

quarta-feira, 9 de outubro de 2024

Anora - Trabalhadoras do Sexo podem sonhar?

Anora | Universal Pictures

O novo filme de Sean Baker conta a jornada de uma dançarina erótica chamada Anora, que prefere ser chamada de Ani, e se envolve de forma amorosa com um cliente um pouco mais jovem e que faz parte de uma família de magnatas russos. Porém a vida de Anora vira de cabeça para baixo quando aqueles que tomam conta do jovem russo descobrem que o mesmo casou com uma dançarina erótica(que chamam de prostituta e entre outras palavras menosprezando ela) e fazem de tudo para divorciar o casal recém casado. 

O filme em sua introdução não tenta colocar a protagonista como uma trabalhadora que sofre a todo tempo com o trabalho que tem e que demoniza o mundo da prostituição como muitos outros filmes norte americanos gostam de construir na maioria das narrativas audiovisuais, é simplesmente Anora fazendo seu trabalho e vivendo seu dia a dia como qualquer trabalhadora em seu cotidiano. Sean Baker sempre propôs fazer filmes onde foca mais na humanidade de seus personagens do que o quão o mundo exterior é capaz de fazer mal ao indivíduo. 

No caso desta obra, o desenrolar da narrativa é Anora não tentando manter um casamento pelo ponto financeiro com que estava, mas realmente por acreditar que alguém a amava mesmo trabalhando no mundo erótico. Sean Baker nos propõe isso na primeira parte do filme, e muda o cenário em um estalar de dedos. No momento em que os comparsas de Toro, o responsável pelo jovem russo, entram em sua casa e começam a buscar uma solução para o fim desse casamento, começa a construção atmosférica da fotografia com a ansiedade provocada pelos personagens, resultando em uma nova proposta ao espectador.

O espectador se quebra em perceber que talvez a jornada que Anora entrou pode resultar em algo muito mais complexo do que o proposto. Não é uma história de amor no final das contas, mas uma história de controle. Anora não tem controle sobre nada enquanto a história acontece, tudo é uma questão de dinheiro e poder para aqueles que estão à sua volta. E qualquer sinal de humanidade aparente dentro daquele mundo, Anora trata com desdém, vide o personagem Igor que facilita Anora mostrar essa faceta. 

O filme utiliza a falta de trilha sonora e a falta de cores na fotografia para ter um contato mais realistico com oque está acontecendo ali, mas não coloca o mesmo realismo nos diálogos, onde se concentra a maior carga de humor negro e caricato entre os personagens. Sean Baker falha em abordar o tema "estupro" nos diálogos, que tentam ser utilizados como uma piada, mas que na segunda vez proposta fica algo deslocado e sem necessidade. O humor aqui funciona mais pelo surrealismo de como as coisas acontecem do que como as coisas são faladas. 

A atriz Mikey Madison além de ter uma forte presença em tela, consegue ter um desenvolvimento maduro e bem executado ao longo da narrativa. Os atores Karren Karagulian, Vache Tovmasyan e Yuri Borisov conseguem ser os melhores elementos cômicos do filme com seu tempo em tela e fazendo plena com o desenvolvimento da protagonista até a conclusão da obra. Anora é o retrato de como o mundo vê e trata as mulheres que trabalham no mundo erótico, mas em nenhum momento as colocando como vítimas do mundo, e sim de poder viver uma vida normal sem as colocarem como só um entretenimento. A dura vida de mulheres que não são vistas como humanas. 

TEXTO DE ADRIANO JABBOUR.

Os Enforcados - Se o Jogo do Bicho fosse uma tragédia de Shakespeare

Os Enforcados | Globo Filmes

Os Enforcados conta a história de um casal, estrelados por Leandra Leal e Irandhir Santos, que está afogado em dívidas e precisam dar um jeito para não perderem toda a casa de luxo que já estava em construção. Para isso, o casal começa a utilizar métodos perigosos que os vão afundando cada vez mais e perdendo a confiança de todos aqueles que estão ao seu lado, sendo os melhores amigos ou os parentes. A direção é de Fernando Coimbra, responsável pelo filme "O Lobo Atrás da Porta".

Necessário enfatizar que a obra não funcionária sem o trabalho de atuação de Leandra Leal e Irandhir Santos, ambos conseguem entregar ainda mais potência à imagem do que a direção de Coimbra já entrega. Mesmo o filme sendo uma releitura de obras como Hamlet e Macbeth, em nenhum momento o filme cai para o lado teatral como muitas vezes acontece quando se aborda elementos vindos de sua origem. Regina, personagem de Leandra Leal, tem um desenvolvimento de personagem em conjunto com todo o resto da obra quase como uma incrível maestra do caos, fazendo o espectador em nenhum momento tendo tempo de respirar e tirar os olhos da tela. 

Além de que Coimbra utiliza a casa dos protagonistas como um personagem a parte. A casa até certo ponto do filme fica parada em sua construção, com as afiações instaladas só até algumas partes e a infiltração nas paredes que são elementos pontuais, elementos que fazem parte do crescer da paranoia de Regina do início ao fim do filme. Até mesmo quando a casa fica completamente pronta, da mesma forma que Regina via em uma revista, entramos na mesma paranoia de Regina em notar que em um local tão limpo, esteja tão lotado de sujeira. 

Os enquadramentos do filme se conectam plenamente com cada sequência na obra, capturando o casal conversando entre uma parede ainda em reforma, pegando eles tomando um rumo para cada corredor em uma mansão imensa, ou até mesmo depois de um tiroteio e Regina fugindo de seu carro com a câmera a capturando pelo canto da janela, quase como o plano de John Wayne saindo pela porta em Rastros de Ódio de John Ford. 

A construção do suspense também consegue atingir seu apogeu com o jogo de desconfiança entre o casal, terminando com o mais puro suco de violência que tem um pouco de referência de Trono Sujo de Sangue do Akira Kurosawa. Onde a única saída que se encontra para tudo aquilo que está entregue em uma sala de estar é a completa aniquilação. Onde nem mesmo o ser mais inocente de todo aquele ambiente consegue fugir do que está por vir.  

Os Enforcados é uma tragédia de Shakespeare no Rio de Janeiro, com interpretações potentes e que fazem parte de uma direção tão forte quanto. Com a mistura de suspense, humor e violência, a obra consegue colocar o espectador em êxtase e querendo sentir mais mesmo o filme entregando tudo aquilo que o espectador está a procura na sala de cinema: Um caos pulsante.  

TEXTO DE ADRIANO JABBOUR.

Sting: Aranha Assassina - Quando o Terror Se Perde em Tentativas de Humor e Drama Familiar

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